'Détective': Godard fez um filme policial que subverte as regras do gênero e que se conecta com Literatura, Física Quântica, Política e Existencialismo!
'Détective': Godard fez um filme policial que subverte as regras do gênero e que se conecta com Literatura, Física Quântica, Política e Existencialismo! - Marcos Doniseti!
'Détective (1985) - Sinopse!
Em um filme policial Noir, cujas regras Godard subverte inteiramente, temos um detetive (William Prospero) que retorna ao hotel no qual trabalhou por 15 anos e do qual foi demitido por não ter conseguido solucionar o caso de um assassinato que ocorreu no local dois anos antes.
Prospero volta ao hotel para tentar descobrir o que aconteceu, exatamente, no dia do crime e porque este foi cometido. Para isso ele conta com a ajuda de um sobrinho (Isidore Neveu), que é inspetor da Polícia, e da noiva dele (a jovem, bela e inteligente estudante Arielle).
Enquanto isso, outras duas histórias se desenvolvem: Um chefão mafioso chamado 'Príncipe' (que também é o nome da vítima do crime que ocorreu no hotel) se instala no hotel para cobrar a dívida de um treinador de boxe (Jim Fox Warner) que lhe roubou muito dinheiro.
E o mesmo Jim também deve dinheiro para um casal (Françoise e Emile Chenal), cujo casamento está em crise e que possui uma pequena empresa de táxi aéreo, que também passa por dificuldades financeiras. Jim tenta ganhar dinheiro com uma luta de boxe para pagar a Máfia, mas os dois credores não querem esperar pela mesma e ameaçam matá-lo antes.
Também formam-se vários triângulos amorosos no filme, no qual temos críticas de caráter político-ideológico e uma reflexão sobre a produção cinematográfica. No final, os personagens das três histórias acabam se encontrando e temos um conflito caótico no final, do qual nem todos sairão vivos.
Em 'Détective', Godard mistura linhas temporais e também usa de elementos da Literatura, da Filosofia Existencialista, da História Política e da Ciência (Física Quântica) para criar o seu filme.
'Détective' (1985) - A produção!
Godard reunido com o elenco de 'Détective' (1985) durante o 38o .Festival de Cannes, realizado em Maio de 1985: Johnny Hallyday, Nathalie Baye, Alain Cuny e Jean-Pierre Léaud. |
'Détective' (1985) surgiu de um projeto do produtor Alain Sarde, que via no filme uma possibilidade de obter alguns lucros. Godard aceitou a proposta, dizendo o seguinte: "Sou um pintor renascentista em busca de encomendas. Michelangelo não teve sozinho a ideia de pintar o teto da Capela Sistina. O Papa foi procurá-lo".
Alain Sarde impôs algumas vontades suas ao cineasta, tal como a obrigatoriedade de Godard fazer o filme junto com uma equipe numerosa e de ter que trabalhar com um diretor de fotografia (Bruno Nuytten), que não era o preferido de Godard, que desejava Raoul Coutard, antigo companheiro da gloriosa fase Nouvelle Vague (1959-1967).
Apesar disso, Godard procurou fazer do filme uma obra de arte de caráter estritamente pessoal, subvertendo totalmente as regras do filme policial clássico, deixando claro a sua despreocupação com a bilheteria do filme, e colocando no filme inúmeras questões políticas, filosóficas e existenciais.
Um exemplo disso é que apesar do filme se chamar 'Détective', aquele que é o detetive da história (William Prospero, interpretado por Laurent Terzieff), e portanto é o encarregado de investigar um assassinato, é um personagem secundário, que pouco aparece no filme. Ele fica dentro de um quarto de hotel do início até o final.
E aquela que deveria ser a femme fatale, uma belíssima jovem chamada 'Princesa das Bahamas' (interpretada por Emmanuelle Seigner, com apenas 19 anos), também é uma coadjuvante e não tem qualquer participação relevante na história. E o assassino nunca aparece no filme e jamais ficamos sabendo quem ele é.
Então, três personagens centrais (o assassino, o detetive e a femme fatale) em qualquer filme policial Noir são inteiramente secundários, ou que pouco ou nada aparecem, em 'Détective'
Toda a história se desenvolve em um único local, que é o luxuoso 'Hotel Concorde Saint Lazare', em Paris. As poucas cenas externas do filme também ocorrem em frente ao hotel.
O filme também tem as habituais citações e referências literárias que são comuns nos filmes de Godard, incluindo Joseph Conrad ('Lord Jim'), Shakespeare ('A Tempestade'), André Gide ('Escola de Mulheres'), Dostoiévski ('Humilhados e Ofendidos').
Também são citados dois livros de Edouard Peisson ('Le Voyage d'Edgar', 'Fugir de Liverpool'), os quais Godard leu em sua infância e também citou em 'Éloge de l'Amour' (2001). E também vemos uma pilha de livros da série 'Noire', da editora Gallimard.
Uma das citações cinematográficas presentes no filme é o sobrenome de Emile e Françoise, Chenal, que é uma referência ao cineasta francês Pierre Chenal, que dirigiu muitos filmes policiais.
Além disso, Godard faz referência a vários dos seus próprios filmes dos anos 1960, que são 'Le Petit Soldat' (1960), em uma cena de um casal se beijando enquanto é filmado, e 'La Chinoise' (1967), quando é explicado o motivo do assassinato do 'Príncipe', bem como também temos referências a 'Acossado' (1959), 'Alphaville' (1965) e 'Made in U.S.A' (1966).
Também temos a exibição, em aparelhos de TV, de cenas de 'A Bela e a Fera' (1946), de Jean Cocteau, e de 'A Esquadrilha Perdida' (1932), de George Archainbaud.
E o filme também faz referências esportivas, citando grandes boxeadores da história, como Jake LaMotta, Roberto 'Mano de Piedra' Durán, Muhammad Ali, entre outros. É bom ressaltar que Godard sempre gostou de esportes e praticava muita atividade física, apreciando muito o Tênis.
O
filme também conta com a participação de várias estrelas do cinema
francês. Assim, o personagem do 'Príncipe' é interpretado por Alain
Cuny, um veterano ator
francês que atuou em mais de 70 produções. Alain Cuny faleceu em 1994, aos 85 anos.
Já o papel do detetive William Prospero foi interpretado por Laurent Terzieff, talentoso ator francês (falecido em 2010, aos 75 anos) que foi cogitado por Godard para interpretar Michel Poiccard, o personagem de Belmondo, em 'A Bout de Souffle' ('Acossado', 1959).
Terzieff
trabalhou em mais de 80 produções sua carreira e, entre as principais, nós
temos 'Les Tricheurs' (Marcel Carné; 1958), 'La Notte Brava' (Mauro
Bolognini; 1959), 'Kapò' (Gillo Pontecorvo; 1960), 'Via Láctea' (Luis
Buñuel; 1969), 'Medea' (Pier P. Pasolini; 1969), 'Deserto dos Tártaros'
(Valerio Zurlini; 1976) e 'Germinal' (Claude Berri; 1993). Logo, ele foi
outro ator que trabalhou com excepcionais cineastas.
Outros atores veteranos que participam do filme são Claude Brasseur, que interpretou Arthur em 'Bande à Part' (1964), do próprio Godard, e Johnny Hallyday, astro do rock francês dos anos 1960 e que era casado com Nathalie Baye, outra estrela que está presente no filme, em um papel importante.
Também tivemos a
presença de Jean-Pierre Léaud, que era o ator preferido de Godard e
de Truffaut, e de Natalie Baye, que já havia trabalhado com Godard em
'Salve-se Quem Puder (a vida)', de 1980.
Aliás, tudo indica que a ideia de Godard parece ter sido justamente essa, ou seja, a de trabalhar com intérpretes veteranos, pois ele também estava, de certa forma, retomando um antigo, tradicional e popular gênero cinematográfico, que é o filme policial de detetive.
Essa retomada de um antigo gênero cinematográfico explica também as referências a vários filmes do passado (inclusive vários filmes do próprio Godard) que, de alguma forma, estão ligados ao gênero Policial.
A trama do filme!
Este é mais um filme no qual Godard subverte por completo as regras de um tradicional gênero cinematográfico, que é o clássico filme policial de detetive, um dos mais antigos e populares do cinema mundial e cujas origens remetem à época do cinema silencioso, nos anos 1920, e nos primeiros anos do cinema falado, nos anos 1930, com os chamados filmes de Gângster e, depois, com os filmes policiais Noir.
E 'Détective' tem vários dos elementos dos filmes policiais Noir, mas nele vemos Godard quebrando as convenções do mesmo.
Afinal, a história do filme gira em torno de uma investigação a respeito de um assassinato, mas aqueles que deveriam ser os protagonistas da história (o assassino, o detetive e a femme fatale) quase não aparecem no filme ou são meros coadjuvantes.
Um detetive (William Prospero; Terzieff) trabalhou 15 anos em um hotel de Paris (Saint-Lazare) e foi demitido porque não conseguiu impedir um assassinato que ocorreu no local. Daí, ele volta para o hotel, no qual já permanece durante dois anos, a fim de descobrir quais foram as circunstâncias do crime e, também, para saber quem foram os responsáveis pelo assassinato.
William Prospero, cujo nome remete ao personagem Prospero, da peça 'A Tempestade' (uma tragicomédia, tal como é o próprio filme de Godard), de Shakespeare, recebe, nessa missão, a ajuda de um inspetor da Polícia, que é o seu sobrinho (Isidore).
Este sobrinho se chama Isidore Neveu (interpretado por Jean-Pierre Léaud), e da jovem noiva de Neveu, que é a bela e inteligente Arielle, uma estudante de 18 anos que se prepara para os exames universitários e que deseja se casar com Neveu.
Em sua investigação, Isidore e sua noiva, Arielle, se utilizam de imagens de vídeo para tentar descobrir o que aconteceu no hotel dois anos antes. O uso do vídeo para conseguir entender e captar a realidade também remete às experiências que o próprio Godard e a sua companheira Anne-Marie Miéville realizaram durante os primeiros anos da década de 1970.
Godard e Anne-Marie Miéville começaram o seu relacionamento, de trabalho e como um casal, por volta de 1972 e, depois, eles trabalharam e viveram juntos por 50 anos, até o fim da vida do grande artista e cineasta.
No filme, é muito sugestivo que o hotel em que tudo acontece se chame 'Saint Lazare', pois desta maneira Godard dá a entender que a vítima do crime, de certa maneira, ressuscitou.
Afinal, a vítima do crime era conhecida com a denominação 'Príncipe' e é descrito como alguém que era uma boa pessoa, que não possuía nenhum inimigo.
Porém, durante o filme, vemos um personagem com esse mesmo nome ('Príncipe'), e que está vivo, sendo que ele é um chefe da Máfia siciliana. Assim, podemos descartar o fato dele não possuir inimigos e de ser uma boa pessoa. Chefões da Máfia não combinam com uma descrição dessas.
Mais adiante no texto irei comentar sobre esse paradoxo.
Esse 'Príncipe' mafioso vai até o hotel para se encontrar com um treinador de boxe que lhe roubou um dinheiro (40 milhões de francos franceses) e quer cobrar a devolução do mesmo. O nome do personagem remete ao livro 'O Pequeno Príncipe', de Saint-Exupéry. Um outro livro desse escritor francês aparece no filme, que é 'Voo Noturno'.
O filme, como já afirmei, conta com a participação de várias estrelas de períodos anteriores do cinema francês, como Alain Cuny, Jean-Pierre Léaud e Laurent Terzieff.
Aliás, tudo indica que a ideia de Godard parece ter sido justamente essa, ou seja, a de trabalhar com intérpretes veteranos, pois ele também estava, de certa forma, retomando um antigo, tradicional e popular gênero cinematográfico, que é o filme policial de detetive.
Godard sempre foi um grande admirador de filmes policiais, que exerceram uma clara influência sobre a sua obra, mas cujas regras ele irá subverter totalmente neste 'Détective', como já afirmei.
Aliás, Godard fez o mesmo em 'A Bout de Souffle' ('Acossado'; 1959), outro filme influenciado pelos clássicos policiais Noir de baixo orçamento de Hollywood e no qual rompeu com a forma clássica de se fazer filmes, revolucionando o cinema mundial.
Além da história do assassinato (???) do 'Príncipe', temos mais duas histórias no filme. E no final todas elas acabam se mesclando, com os personagens das três histórias se cruzando e entrando em conflitos. E para mostrar isso Godard usa de um 'jogo' de bilhar no qual sempre temos três bolas na mesa.
A posição na qual as bolas de bilhar são colocadas na mesa servem como uma representação simbólica das três tramas presentes no filme e indica o que ocorre a cada momento da trama.
Uma dessas histórias envolve um treinador de boxe (Jim Fox Warner, interpretado por Hallyday) que está bastante endividado com o chefão mafioso chamado de 'Príncipe', de quem ele roubou uma grande soma de dinheiro (40 milhões de francos franceses).
E para tornar tudo muito pior, Jim também tem outra dívida, com um casal cuja relação está em crise, que é formado por Emile (Claude Brasseur) e Françoise (Nathalie Baye).
Emile e Françoise são proprietários de uma pequena empresa de táxi aéreo, mas a mesma está passando por um período de dificuldades financeiras, o que os levou a fazer uma sociedade e dividir a empresa com outro dono.
Além disso, o casamento deles passa por um situação difícil, pois Emile sofre de impotência, o que leva Françoise a ter casos temporários com outros homens, incluindo Jim Fox Warner.
Jim Fox Warner é frequentemente chamado, pelos outros, de 'Monsieur Jim', ou seja, de 'Lord Jim', o que é uma referência ao livro do escritor polaco-britânico Joseph Conrad, cuja história remete diretamente à trajetória de JFW e, também, ao próprio Godard. Monsieur Jim também pode ser uma referência a um personagem do filme 'Jules et Jim' (1962), de Truffaut.
O nome Jim Fox Warner remete à literatura e, também, ao cinema, sendo o nome de dois grandes estúdios de Hollywood, misturando arte e comércio, pois este filme foi meio que imposto à Godard pelo produtor Alain Sarde, que desejava obter um bom lucro com o mesmo.
Porém, a maneira como Godard o dirigiu e o montou fizeram com que o público do filme não fosse dos mais numerosos, apesar da presença de várias estrelas conhecidas do público francês e europeu no mesmo, incluindo um grande nome da Nouvelle Vague, Jean-Pierre Léaud, e outras estrelas, como Nathalie Baye, Claude Brasseur, Johnny Hallyday, Laurent Terzieff e Alain Cuny.
Jim Fox Warner planeja pagar as dívidas que possui por meio de uma luta de boxe de um lutador chamado Tiger Jones, mas esse é meio relapso na sua preparação para a luta (come chocolate aos montes e não treina...).
Porém, o lutador que JFW treina, Tiger Jones, não demonstra muito entusiasmo pela luta e a sua jovem namorada, que se chama 'Princesa das Bahamas' (interpretada pela jovem e belíssima Emmanuelle Seigner, com apenas 19 anos), quer fazê-lo desistir da luta e ir embora com ele para o seu país. Ela também convida Jim a fazer o mesmo, livrando-o de ter que pagar as dívidas acumuladas.
Além disso, Jim também é pressionado por Françoise e Emile para que lhes pague o que deve ao casal. Emile também chega a ameaçar Jim, que fica numa situação difícil, pois também sofre ameaças do 'Príncipe' mafioso.
Enquanto isso, Prospero, Isidore e a noiva deste, a bela Arielle, também tentam descobrir as circunstâncias de um personagem que também se chama 'Príncipe' e que foi assassinado dois anos antes no mesmo quarto de hotel no qual eles estão hospedados. Esse outro 'Príncipe', como já disse, era uma boa pessoa.
Godard mostra as condições em que o filme foi realizado!
As mãos estão muito presentes no filme de Godard, refletindo a dualidade da história e se relaciona com os dois temas centrais do filme, que são a morte e a impossibilidade de amar. |
O personagem JFW é um alter-ego de Godard, que também vivia tendo que procurar pelos
produtores, para conseguir financiamentos que pudessem viabilizar a produção de seus filmes, o que o obrigava a
fazer concessões para os mesmos, como a de aceitar a participação de estrelas com as quais, muitas vezes, não desejava trabalhar e com as quais ele não desenvolvia um bom relacionamento durante as filmagens.
Logo, o relacionamento entre Jim Fox Warner e o chefão da Máfia siciliana, chamado de 'Príncipe', está conectado com a maneira com que Godard encarava a sua ligação com os produtores de cinema.
No filme, o 'Príncipe' cobra as dívidas que JFW tem com ele e, também, manipula os resultados das lutas de boxe para conseguir lucrar, tal como os produtores de cinema manipulam os filmes, pois querem usá-los também com objetivos de obter mais lucros.
Logo, para Godard, não há diferença entre a maneira de agir dos chefões da Máfia e dos grandes produtores de cinema, que são duas categorias sociais que se interessam apenas em acumular cada vez mais riqueza e poder.
Assim, 'Détective' é mais um dos inúmeros filmes de Godard no qual ele torna explícita as condições em que o próprio filme foi realizado, com o produtor Alain Sarde cobrando de Godard que faça um filme comercial (com a luta de boxe funcionando como uma metáfora dessa situação), que lhe permita lucrar bastante.
Neste sentido, 'Détective' pode ser comparado com 'Le Mépris' ('O Desprezo', 1963), filme em que Godard também deixou claras as condições da realização do filme, no qual ele também entrou em conflito com os produtores (Carlo Ponti e Joseph Levine) devido às pressões que eles fizeram sobre o cineasta.
Essas pressões foram feitas para que Godard tornasse o filme mais atrativo comercialmente, permitindo que os produtores lucrassem bastante com o mesmo.
E Godard, que resistiu à essas pressões, tratou de expor esses conflitos no próprio 'Le Mépris' (1963). Agora, em 'Détective' (1985), ele fez a mesma coisa, mas de uma outra maneira.
'Détective', Física Quântica e a Dualidade da Luz!
Segundo a Física Quântica, a Luz é onda e partícula ao mesmo tempo. É o que se chama de Dualidade. Daí, alguém poderia perguntar: Mas o que é que isso tem a ver com o filme do Godard? Bem, entendo que isso está inteiramente relacionado com o filme.
Como assim? Godard sempre trabalhou com a ideia de Dualidade em sua trajetória de cineasta. Ele sempre colocou elementos em situação de oposição e de conflito e fez isso mesmo em sua fase maoísta, na época em que integrou o Grupo Dziga Vertov (1968-1972). E neste filme ele fez o mesmo.
É que, em 'Détective', Godard criou um personagem, chamado 'Príncipe', que parece estar vivo e morto ao mesmo tempo, da mesma maneira que a Luz é onda e partícula simultaneamente, tal como diz a Física Quântica.
Assim, Godard coloca todos os personagens do filme em um único espaço, que é o Hotel Concorde Saint Lazare, onde se desenvolvem todos os relacionamentos entre os personagens. Tudo que vemos no filme acontece no espaço do hotel.
Então, nós podemos enxergar o hotel Saint-Lazare como se o mesmo fosse uma espécie de micro Universo. E neste local Godard estaria usando da ideia de dualidade da Luz para contar a história da vida e da morte de um personagem chamado 'Príncipe', que é, também, o nome de um chefão da Máfia siciliana.
Emile, Françoise e Jim discutem sobre a dívida deste último com o casal. Jim representa a pessoa que tenta se livrar da escravidão do dinheiro, do Capital, cujos detentores controlam o mundo. |
Mas, além do 'Príncipe' mafioso, nós temos um outro, que é descrito pelos investigadores (Isidore e Prospero) como sendo uma boa pessoa e que não possuía inimigos. E essa descrição não combina, é claro, com a de um chefão da Máfia, que sempre possui muitos inimigos.
Então, tudo indica que temos dois 'Príncipes' no filme: aquele que foi assassinado, que era uma boa pessoa, e o que está vivo, que é o chefão da Máfia siciliana. Mas em nenhum momento do filme fica claro se eles são o mesmo personagem ou não.
Oras, então, como é que poderia existir duas versões de um mesmo personagem? Bem, isso seria possível se pensarmos que Godard poderia estar usando o conceito de dualidade da Luz, originário da Física Quântica, que se comporta como onda e partícula ao mesmo tempo.
Assim, teríamos duas versões do mesmo Príncipe, com ele estando vivo e morto ao mesmo tempo. Desta maneira, um deles seria a Onda e o outro seria a Partícula.
No
filme, outros personagens parecem possuir duas versões, embora sejam o
mesmo personagem, como ocorre com Isidore Neveu, que é um inspetor
policial que ajuda Prospero na investigação e que, ao mesmo tempo, se
disfarça de maitre do restaurante do hotel. E Isidore também tem uma jovem amante.
Além disso, algo que está muito presente no filme é o uso das mãos. As mãos dos personagens estão sempre em evidência, sendo que eles estão o tempo inteiro fazendo alguma coisa com elas: contando dinheiro, tocando um instrumento musical, tocando nas mãos de outro personagem, filmando, lendo e assim por diante.
E sempre temos duas mãos aparecendo, reforçando a ideia de dualidade como ideia motriz do filme. Assim, teríamos a representação, por meio das mãos (que são sempre duas), da representação simbólica do caráter dual da investigação e da trama que vemos no filme.
E a presença de uma câmera de vídeo no quarto do hotel onde Prospero, Isidore e Arielle estão hospedados para observar os acontecimentos da rua e, também, dentro do próprio hotel, também reforçam a presença da ideia de dualidade no filme. Assim, nós temos a câmera de Godard e a câmera dentro do filme.
É como se Godard estivesse chamando o espectador para participar do filme, como se fosse um detetive, estimulando o mesmo a tentar compreender e assimilar aquilo que estamos assistindo. Assim, temos o detetive do filme, que é Prospero, e o espectador, que assiste ao filme e é chamado para investigar e, assim, poder compreender o que acontece no mesmo.
Outro exemplo dessa Dualidade é que a personagem Françoise está dividida quanto ao rumo que deve dar à sua vida, não sabendo se deve continuar com o seu marido (Emile), ou então se ela deve largar do mesmo para ter um caso com Jim Fox Warner.
O nome dele também reflete uma dualidade, pois o primeiro nome remete ao livro 'Lord Jim', de Joseph Conrad, enquanto que Fox e Warner são referências a dois grandes estúdios de Hollywood. Assim, temos a Dualidade representada pelo Cinema e pela Literatura.
E o próprio Jim Fox Warner tem duas dívidas que precisa pagar, uma delas sendo com o Príncipe e outra com o casal (Françoise e Emile). Ele também está com dúvidas sobre qual das dívidas ele deveria pagar, o que é outro exemplo de Dualidade que está presente no filme.
'O Médico e o Monstro' e o Calvinismo!
Nathalie Baye interpreta Françoise, que vive uma situação de indefinição com relação ao rumo que deseja dar para a sua vida. |
Outras
duas hipóteses com as quais se pode trabalhar, para se tentar
compreender o filme, são o livro 'O Médico e o Monstro', de Robert L.
Stevenson, e a teoria Calvinista da Predestinação. Aliás, é bom
ressaltar que Stevenson era um Calvinista. E o mesmo acontece com as
famílias do pai (os Godards) e da mãe (os Monods) de Jean-Luc Godard.
Assim,
no filme, esses dois 'Príncipes' de 'Détective' seriam como a versão
godardiana de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, do livro 'O Médico e o Monstro', de
Robert L. Stevenson.
Assim, um destes personagens é o 'Príncipe' bom, que foi assassinado dois anos antes. Portanto, ele representaria o Dr. Jekyll. Enquanto isso, o 'Príncipe' mau, o chefão mafioso, seria o seu lado maligno, o Mr. Hyde.
E
daí viria uma possível solução para o crime: Quem matou, ou mandou
matar, o 'Príncipe' bom (Dr. Jekyll) foi o 'Príncipe' mau (o Mr. Hyde), o
chefão mafioso. Portanto, o fato do 'Príncipe' mafioso sobreviver e
sair impune no final representaria o triunfo do Mal na Terra, refletindo uma visão pessimista de Godard sobre o mundo e a vida.
Uma outra hipótese para explicar o filme estaria no Calvinismo, que se combinaria com a história do livro de Robert L. Stevenson.
Como
já afirmei, Godard vinha de duas famílias Calvinistas, a do seu pai (os
Godards) e a da sua mãe (os Monods). Segundo o Calvinismo, Deus já
escolheu quem será salvo e quem já está condenado, independente do que
as pessoas façam das suas vidas.
E quando o conflito explode entre todos (Jim, Emile, Françoise, Isidore, Arielle, o chefão mafioso e seu seguidores) no final os únicos, entre os protagonistas, que se salvam, além do 'Príncipe' mafioso e seu séquito familiar, são Isidore e Neveu, que apesar dos problemas que enfrentaram, se amavam e terminaram juntos.
Assim, é como se Godard estivesse dizendo, com base na teoria da Predestinação do Calvinismo, que eles estão entre os eleitos por Deus, pois o ser humano possui, em seu interior, tanto a Luz (Dr. Jekyll), quanto as Trevas (Mr. Hyde).
Assim, os outros personagens principais já estariam condenados previamente, fosse Jim, que roubou e emprestou dinheiro de outras pessoas e não as pagou, seja o casal, Emile e Françoise, ele por ser um contrabandista e ela por suas várias traições ao marido.
E até mesmo o detetive Prospero não conseguiu se salvar, pois ele demorou para compreender as circunstâncias do crime, falhando em sua missão de solucioná-lo dois anos antes. Além disso, embora ele tenha solucionado o caso posteriormente, a salvação no Calvinismo independe das ações humanas.
Desencanto Político e Existencialismo!
Além de questões relacionadas à Ciência, Literatura e ao Calvinismo, entendo que temos, também, no filme de Godard elementos que remetem à questões políticas e ideológicas, bem como ao Existencialismo.
Godard mostra, no filme, um grande desencanto com a política, sendo que vemos um dos personagens, o 'Príncipe mafioso', chegar a dizer que não há mais Direita e Esquerda, o que existe é apenas o submundo, ou seja, o crime organizado.
Em um determinado momento o 'Príncipe' mafioso faz a leitura do trecho de um livro no qual é dito o seguinte: "Mas um dia o rato se viu brincando bem com o gato, nas garras de seu novo amigo. Ele percebeu que tudo seria como antes. Com uma vaga esperança, ele lembrou ao gato as novas leis. Sim, respondeu o gato, mas eu sou um dos criadores das nova leis".
Bem, se levarmos em consideração todos os escândalos, conflitos e casos de corrupção que atingiram o mundo político nas últimas décadas (escândalos financeiros, superfaturamentos, guerras, etc) em inúmeros países da Europa, América Latina, Ásia, entre outros, bem como o envolvimento de movimentos e lideranças políticas com grupos criminosos organizados, então podemos concluir que Godard não está errado nesta sua avaliação.
Muito pelo contrário.
Logo, as sucessivas crises políticas, econômicas, financeiras e sociais, e também as guerras, das últimas décadas dão total razão para Godard.
Basta ver o que aconteceu depois que estourou a grande crise financeira de 2008-2009 (Derivativos, Lehman Brothers, Crise da Grécia e do Euro), que resultou em grandes cortes nos salários e nos programas sociais, enquanto que os banqueiros e especuladores foram beneficiados, mesmo tendo os responsáveis por tal crise.
Em vários outros filmes do seu Período Tardio (1980 em diante) o cineasta deixou claro o seu desencanto com a política, fazendo duras críticas aos sistemas políticos existentes pelo mundo afora. Isso pode ser visto em filmes como 'For Ever Mozart' (1996) e 'Le Livre D'Image' (2018; este foi o seu último filme), por exemplo.
Além disso, vemos Jim falar, quando ele tenta fugir da cobrança das dívidas que é feita pelo Príncipe mafioso, que a sociedade moderna é marcada pela livre iniciativa, enquanto que Emile diz que na democracia todos deveriam ter direito ao dinheiro.
No filme também temos personagens que vivem e enfrentam situações que os fazem sofrer e que exigem deles uma reflexão sobre as suas vidas, levando-os a querer dar um outro rumo para elas.
Esses são os casos de Françoise, que é infeliz no casamento e está pensando em abandonar o marido, e de Jim, que tem escolher para quem pagar as dívidas que possui (sendo que qualquer uma das escolhas poderá levá-lo à morte).
Também temos o caso de Emile, que tem que cobrar as dívidas de Jim e, ao mesmo tempo, sofre com a possibilidade de perder a esposa e de ver a sua empresa de táxi aéreo falir, o que o leva a retomar atividades de contrabando.
Enquanto isso, o boxeador Tiger Jones se prepara muito mal para uma luta decisiva, enquanto a sua bela noiva tenta convencê-lo a ir embora antes que ela aconteça. Ele hesita e somente no final é que toma uma decisão, de ir embora antes de luta, o que salva a sua vida e a da sua bela noiva.
Assim, é como se Godard estivesse dizendo, em 'Détective', que a única maneira de alguém não se corromper nesse mundo sujo é caindo fora de tudo, isolando-se da sociedade, que é o que ele e Anne-Marie Miéville fizeram quando foram viver em Rolle, uma pequena cidade localizada próxima de Genebra, em 1977.
Até mesmo o jovem casal formado por Isidore e Arielle enfrenta problemas, pois enquanto eles tentam resolver o caso do assassinato eles tem casos com outras pessoas: Arielle se envolve, brevemente, com o detetive Prospero, enquanto que Isidore tem um caso, também breve, com uma jovem funcionária do hotel que é informante de Angelo (assistente do chefão mafioso).
'Détective': Como é possível interpretar o filme?
Como já afirmei, Godard trabalha, no filme, com a ideia de Dualidade da Luz, fazendo uma conexão com a Física Quântica.
É que no filme temos dois personagens chamados 'Príncipe', um que era uma boa pessoa, mas que foi assassinado em circunstâncias misteriosas dois anos antes, e um outro que é um chefão da Máfia siciliana e que é uma pessoa autoritária, intolerante, um assassino que vive humilhando o seu assistente (Angelo) e que não hesita em matar alguém quando lhe é conveniente.
Eles parecem ser duas versões de um mesmo personagem que acabou se dividindo. Eles são Onda e Partícula, simultaneamente. Essa interpretação também faz referência à Literatura, ao livro 'O Médico e o Monstro', de Robert L. Stevenson, referindo-se a um personagem que se divide em Dr. Jekyll e Mr. Hyde.
Também temos um elemento Existencialista no filme, no qual temos inúmeras reflexões sobre as crises dos relacionamentos interpessoais, com vários casais cujos relacionamentos estão em crise ou correndo riscos.
Existe, também, no filme, um claro desencanto com a política e com a ideologia, aspectos que estão relacionados com as decepções de Godard com relação às lutas políticas e sociais das quais ele mesmo participou, até o início dos anos 1970, bem como tem relação com a Teoria da Predestinação do Calvinismo.
Também temos uma crítica não muito sutil à própria indústria do cinema, que se preocupa apenas com o comércio e com os lucros. E o que fica claro é que, no filme, a soma das suas diferentes partes é maior do que o todo.
Assim, Godard inverte a famosa frase de Aristóteles, que disse que 'o todo é maior do que a soma das partes'.
Na visão de Godard, expressa em 'Détective', essa frase de Aristóteles não se concretiza, pois as ambições e desejos de cada personagem não cabem no todo, o que gera um conflito mortal entre os personagens no final do filme.
E essa situação faria com que a sociedade moderna tivesse uma tendência natural para o Totalitarismo, que é uma ideia que Godard em vários de seus filmes, levando a que surgissem movimentos e governos fascistas que procuram eliminar da sociedade segmentos que são considerados inferiores ou que prejudicam o progresso.
Enfim, este é mais um filme de Godard que pode ser interpretado sob várias perspectivas. E nenhuma delas é a única que pode ser considerada válida.
Informações Adicionais!
Título: Détective;
Diretor: Jean-Luc Godard;
Roteiro: Alain Sarde e Philippe Setbon; JL Godard e Anne-Marie Miéville (adaptação);
Direção de Fotografia: Bruno Nuytten, Pierre Novion e Louis Bihi;
Música/Supervisão: Jean Schwarz;
Produção: Alain Sarde e Christine Gozlan;
Montagem: Marilyne Dubreuil;
País de Produção: França; Ano de Produção: 1985;
Elenco: Jean-Pierre Léaud (Inspetor Isidore Neveu); Nathalie Baye (Françoise Chenal); Laurent Terzieff (William Prospero); Johnny Hallyday (Jim Fox Warner); Claude Brasseur (Emile Chenal); Alain Cuny (Príncipe); Aurelle Doazan (Arielle); Julie Delpy (Jovem clarinetista); Emmanuelle Seigner (Princesa das Bahamas); Stéphane Ferrara (Tiger Jones); Cyrille Autin (Punk).
Arielle (Aurelle Doazan) e Isidore (Jean-Pierre Léaud) conversam sobre o que aconteceu naquela semana em que ficaram hospedados no hotel. Ela diz que 'o amor é eterno' e que 'testemunha é mártir'. |
Links:
Informações do filme:
https://www.imdb.com/title/tt0089066/?ref_=nm_flmg_dr_60
Links: Física Quântica: Luz é Onda e Partícula ao mesmo tempo:
https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-exatamente-e-a-luz/
Resenha sobre o filme:
https://grunes.wordpress.com/2010/01/20/detective-jean-luc-godard-1985/
Texto sobre o filme:
https://www.blu-ray.com/movies/Detective-Blu-ray/239708/#Review
O Calvinismo e a Teoria da Predestinação:
O todo é maior do que a soma das partes:
Cena de 'Détective' na qual Godard antecipou o estado em que se encontra grande parte do mundo atual, inclusive do Brasil. |
Trailer do filme:
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