Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita - Elio Petri fez obra-prima do Cinema Político que desnuda os abusos, violências, ilegalidades na Itália dos 'Anni di Piombo' (Anos de Chumbo)!
'Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita' - Elio Petri fez obra-prima do Cinema Político que desnuda os abusos, violências e ilegalidades na Itália dos 'Anni di Piombo' (Anos de Chumbo)! - Marcos Doniseti!
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| 'Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita' (1970) é uma obra-prima do cinema político italiano. |
'Indagine su un cittadino..." é um filme absolutamente fantástico de Elio Petri.
A história, resumidamente, é a seguinte: O chefe da Divisão de Homicídios da Polícia italiana, que é chamado de 'Dottore' por todos, comete um assassinato, matando uma mulher, Augusta Terzi, com a qual ele tinha um romance.
Depois, ele faz de tudo (deixando suas digitais pela casa toda de Augusta), para mostrar para todos que ele foi o culpado pelo crime. Ele quer provar que a posição de poder que ocupa atemoriza as pessoas e faz com que seja visto como sendo acima de qualquer suspeita.
Inicialmente não sabemos se a morte de Augusta foi acidental ou intencional. E o motivo do Dottore não ser preso nós descobriremos na sequência final, quando é confrontado pelos chefões da Polícia italiana.
O Dottore é brilhantemente interpretado por Gian Maria Volonté, enquanto que Augusta Terzi é interpretada pela fantástica atriz brasileira Florinda Bolkan, que foi para a Itália, onde se tornou muito requisitada pelos cineastas italianos e tornou-se muito popular no país e na Europa.
Em uma entrevista, Florinda Bolkan disse que Elio Petri amou a sua naturalidade e que ela trabalhou retribuindo com disponibilidade total. A atriz também disse que entendeu que a sua personagem deveria ser transformada em uma metáfora contra o poder. Florinda fala que, apesar do romance que Augusta tem com o Dottore, a sua personagem zombava do policial.
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| O Dottore tem um romance com Augusta Terzi. O uso da roupa preta já antecipa o destino dela. |
Revi o filme há pouco tempo e o mesmo me pareceu ainda melhor do que era quando o assisti pela primeira vez, há muitos anos.
Assim, tive como perceber certos movimentos de câmera, uso da iluminação e enquadramentos que não havia percebido anteriormente. Uma cena, em especial, é belíssima, quando o 'Dottore', o policial que comanda a Divisão de Homicídios, sobe para o local em que o crime que ele cometeu (o assassinato de Augusta Terzi) havia acontecido.
Nesta sequência inicial, a combinação de trilha sonora, criada pelo fantástico Ennio Morricone, movimentos de câmera e a atuação de Gian Maria Volontè é absolutamente perfeita. Isso é cinema feito por gente grande, como é o caso de Elio Petri.
A história, além disso, é coerente e é desenvolvida com muito brilhantismo, sendo que já naquela época o filme denunciava as manipulações dos detentores do Poder no sentido de esconder a podridão dos seus semelhantes.
O lema da polícia italiana, segundo o filme de Elio Petri, parece ser "Corporativismo acima de tudo, Investigações Somente Para os Inimigos do Poder Acima de Todos'. Afinal, salvar a imagem das instituições, mesmo escondendo os podres dos seus membros, é algo rotineiro nos dias atuais.
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| Antonio Pace, jovem estudante revolucionário, encontra-se, pela primeira vez, com o Dottore, quando este saía da residência de Augusta. |
O que Elio Petri mostra é que isso acontecia de forma rotineira na Itália daquela época, quando o país se caracterizava por intensos conflitos políticos, ideológicos e sociais, envolvendo movimentos sociais, partidos políticos (de Esquerda, Extrema Esquerda, Direita e Extrema Direita).
Elio Petri mostra que os movimentos jovens de Extrema Esquerda eram vítimas preferenciais da Polícia italiana nessa época, o que fica evidente com as cenas de repressão intensa e tortura psicológica que o Dottore e a Polícia promove contra alguns desses jovens.
Nesse momento histórico, a Itália vivenciava um período turbulento, que foi chamado de 'Anni di Piombo' (Anos de Chumbo), que durou de 1968 a 1981, com muita violência nas ruas, ocorrendo verdadeiras batalhas nas cidades italianas e, é claro, que as ações repressivas por parte da Polícia faziam parte desse contexto. Atentados terroristas também eram comuns, principalmente por parte da Extrema Direita.
Nos anos 1970 os principais movimentos da Esquerda Radical, na Itália, foram o Lotta Continua, Prima Linea, Brigate Rosse e Autonomia Operária (Antonio Negri foi um dos líderes deste movimento) que contavam com milhares de integrantes.
O 'Lotta Continua' chegou a possuir 20 mil militantes, conseguindo adesões entre operários, estudantes e intelectuais. Estas organizações realizavam inúmeros atos públicos e entravam em conflito, com muita frequência, com os militantes das organizações de Extrema Direita. A Itália viveu uma fase de semi-guerra civil neste período.
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| No filme inteiro o Dottore adota uma postura de imposição física. Isso somente não acontece quando Augusta e Pace o desafiam. |
O que Elio Petri mostra neste belíssimo filme é que, nestas circunstâncias, as forças policiais e do Estado italiano adotaram comportamentos ilegais e criminosos com o objetivo de reprimir e sufocar estes acontecimentos, violando de forma descarada os direitos do cidadão, promovendo prisões ilegais, torturas físicas e psicológicas contra pessoas inocentes, grampeando suas ligações telefônicas sem autorização judicial.
Neste sentido, temos uma cena fantástica, mas trágica, na qual o Dottore interroga um jovem estudante, usando de torturas, para que o mesmo entregue um amigo, acusando-o falsamente de ser o responsável pelo assassinato de Augusta Terzi. Enquanto pratica todos esses crimes, o Dottore faz todo um discurso em defesa da Democracia...
O Dottore, também, não hesita em humilhar os seus subordinados, como ele fez com o Comissário quando o chamou de puxa-saco na frente de inúmeros policiais depois que o mesmo o havia elogiado bastante. Dottore também manipula as pessoas abertamente, o tempo todo, fazendo isso com aqueles que interroga, incluindo os estudantes ativistas (caso de Antonio Pace) e o marido de Augusta.
Até mesmo o jornalista de Esquerda, do jornal 'Paese Sera' (que tinha um perfil mais popularesco, existiu até 1994 e que era ligado ao PCI) é manipulado e feito de idiota pelo Dottore.
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| Augusta Terzi é interpretada pela fantástica Florinda Bolkan. Ela é uma personagem forte e marcante, que enfrenta e desafia o Dottore. |
Apenas dois personagens do filme não são manipulados pelo Dottore, que são Augusta Terzi e Antonio Pace, que são amantes. Ela confronta o Dottore o tempo inteiro e chega a lhe escrever uma carta anunciando o fim do romance deles, o que não é aceito por ele.
Nesse momento, o Dottore diz o seguinte para Augusta:
"Faça o que bem entender. Vá f... com quem quiser. Eu não me importo. Mas quero saber de tudo. Quero vê-la. Precisamos ser cúmplices. Você não pode fazer isso comigo. Sou um homem respeitável. Tenho nome. Eu represento poder, Augusta. Você deveria beijar o chão onde eu piso, ouviu, vagab...?".
Mesmo assim, Augusta recusa-se a se submeter à vontade dele, tratando-o com desprezo, deixando claro que se interessa muito mais pelo jovem revolucionário com que também tem um caso. Ela diz que não é como os pobres vagabundos que ele está acostumado a prender. Ela o desmoraliza por completo quando arremata dizendo que ele 'faz amor como um menino', porque isso é o que ele é. Ela diz, para o Dottore, 'você é incompetente, sexualmente incompetente'.
Toda a impotência do poder do Dottore, que também é sexual, fica explícito nessa sequência. E aqui também fica claro que, na visão de Elio Petri, o Poder, para ser exercido, necessita da cumplicidade de quem é dominado. Sem isso, ele desmorona. Então, não é à toa que o Dottore acaba por matar Augusta e fará de tudo para ser descoberto e condenado pela Polícia.
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| Dottore no local em que a Polícia grampeia os telefones e comunicações do povo italiano, fazendo isso de maneira ilegal. |
Essa é a máxima demonstração de poder do Dottore e do Poder que ele representa: ele comete um crime, é descoberto e, mesmo assim, fica impune, porque senão esse Poder que ele representa será desmascarado e desmoralizado. Isso ocorre com o Dottore porque a lógica do Poder, do seu funcionamento, exige que isso aconteça.
O filme prende a atenção do início ao fim, sendo marcado por uma tensão que vai crescendo à medida que a história vai sendo desenvolvida, com o protagonista (o Dottore...) ficando cada vez mais nervoso e neurótico, pois ele faz de tudo para que descubram que ele é o criminoso e que o prendam em função deste fato, mas isso não acontece.
Florinda Bolkan, na mesma entrevista que citei no início do texto (que está no livro 'Cinema Político Italiano - Anos 60 e 70', de Angela Prudenzi e Elisa Resegotti, da editora Cosac Naify), disse o seguinte sobre 'Investigação...':
"É um filme perturbador por causa do que narra: a relação sexo-poder, os estudantes, a esquerda, a fratura social, a Itália que se pressagiava... Petri, pessoa sensível e verdadeiro artista, foi o primeiro a saber apresentar em imagens todas as contradições da sociedade italiana do momento... é magnífico.".
O filme provocou muita polêmica na Itália na época do seu lançamento, pois a visão que mostrava da Polícia italiana era muito crítica e bastante negativa. Quando Elio Petri exibiu o filme, pela primeira vez, para um grupo de amigos (produtores, atores...), eles se viraram para o cineasta e disseram que ele deveria ir embora da Itália, pois caso permanecesse na Itália ele acabaria sendo preso.
Assim, Petri não estava na Itália quando o filme foi lançado, preferindo ficar na França, durante as três primeiras semanas de exibição. Mas o sucesso gigantesco do filme permitiu que ele voltasse para a Itália sem sofrer retaliações. Filas imensas se formavam nos cinemas, com as pessoas querendo assistir ao filme de qualquer maneira.
Outra história relacionada ao filme tem a ver com a trilha sonora, criada pelo gênio Ennio Morricone. Elio Petri tinha o hábito de, a cada filme que dirigia, mudar o autor da trilha sonora. E para 'Investigação...' ele pediu a Ennio Morricone que a criasse, o que o compositor fez sem assistir ao filme, apenas usando o roteiro como fonte.
E, daí, Elio Petri brincou com Morricone, fazendo uma montagem do filme na qual a música criada por Morricone não estava presente. Morricone falou que se Petri o desejasse poderia descartar o uso da música que ele havia feito. Mas, daí, o cineasta deu uma bronca em Morricone, dizendo que seria impossível alguém fazer uma trilha sonora tão boa quanto a do compositor e que ele, Morricone, deveria dar uns tapas no próprio Petri.
Cotação do filme: Obra-Prima.
Informações Adicionais!
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| O Dottore não hesita até mesmo em humilhar o Comissário. |
Título: Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita;
Diretor: Elio Petri;
Roteiro: Elio Petri e Ugo Pirro;
Duração: 115 minutos; Ano de Produção: 1969.
Gênero: Drama Político;
Trilha Sonora: Ennio Morricone;
Elenco: Gian Maria Volonté (Dottore); Florinda Bolkan (Augusta Terzi); Orazio Orlando (Inspetor Biglia); Arturo Dominici (Mangani); Sergio Tramonte (Antonio Pace); Massimo Foschi (marido de Augusta Terzi); Aldo Rendine (Nicola Panunzio); Gianni Santuccio (Comissário); Salvo Randone (Encanador).
Prêmios: Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1971.
Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes de 1970.
Prêmio FIPRESCI no Festival de Cannes de 1970.
LINKS:
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| Os detentores do Poder não aceitam a confissão do Dottore sobre o assassinato que ele cometeu, afinal isso iria desmascará-lo perante as pessoas. E é isso que o filme de Elio Petri faz. |
Informações sobre o filme:
https://www.imdb.com/pt/title/tt0065889/?ref_=nm_flmg_job_1_accord_1_cdt_t_7
Trailer do Filme:
https://www.youtube.com/watch?v=4GYkDaZcR7s
Trilha sonora - Ennio Morricone:
https://www.youtube.com/watch?v=Uy_aP2Ojp5U&list=PLFZ5kTZU6FlfH9l7qITYK3SnBQH2dg2lx
Filme na íntegra (dublado):
https://www.youtube.com/watch?v=PJYmP6k_Zb8
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| No final o Dottore submete-se à vontade dos poderosos. |










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