'British Sounds': Em filme experimental, Godard e Jean-Henri Roger convocaram os jovens, as mulheres e os trabalhadores para fazer a Revolução na Grã-Bretanha!

'British Sounds': Em filme experimental, Godard e Jean-Henri Roger convocaram os jovens, as mulheres e os trabalhadores para fazer a Revolução na Grã-Bretanha! - Marcos Doniseti! 
'British Sounds' (1969): A bandeira do Reino Unido sendo rasgada por uma mão que faz uma saudação que convoca para a luta revolucionária.

A produção de 'British Sounds'!

'British Sounds'/'See You at Mao' foi um dos inúmeros filmes que Jean-Luc Godard realizou na época em que ele integrou o Grupo Dziga Vertov. E para definir o trabalho do mesmo, reproduzo o que o próprio Godard afirmou:

"Grupo Dziga Vertov: esse nome significa que estamos tentando, mesmo sendo apenas dois ou três, trabalhar em grupo. Não apenas trabalhando como colegas, mas como um grupo político. O que significa lutar, lutar na França. Estar envolvido na luta significa que devemos lutar pelo cinema ... Um grupo não significa apenas caminhar individualmente lado a lado no mesmo caminho, mas caminhar juntos politicamente ... Eu era um cineasta burguês e depois um progressista, e depois, não era mais cineasta, mas simplesmente cineasta". (JL Godard, 1970).

Este filme foi realizado por Jean-Luc Godard e Jean-Henri Roger (jovem estudante francês), por volta de Fevereiro/Março de 1969, no Reino Unido, sendo que o mesmo foi produzido por encomenda de uma emissora de TV britânica, que foi a 'South London Weekend Television'.

Porém, depois que o filme ficou pronto, a emissora não gostou do que viu e decidiu não exibir o mesmo, engavetando o filme. Afinal, os dois cineastas, ambos maoístas franceses, fizeram um filme no qual convocavam a juventude, as mulheres e os trabalhadores para que promovessem uma Revolução Socialista. Algum tempo depois a emissora apresentou um programa (chamado 'Aquarius') no qual foram exibidos trechos do filme, mas nos quais o mesmo foi bastante criticado. 

Tudo normal. 

Afinal, tratava-se de uma empresa capitalista, uma emissora de TV particular, criticando um filme que defendia o fim do Capitalismo, bem como promovia a defesa da criação de uma sociedade de caráter Socialista

Isso mostra que a tentativa de Godard, a partir de 1968, de romper com o sistema industrial que dominava o Cinema europeu e estadunidense possuía sérias limitações e que ele enfrentaria imensos obstáculos e dificuldades (palavra que aparece várias vezes em 'British Sounds'). Afinal, gostasse ou não, ele dependia de recursos que seriam investidos por empresas, ou seja, por capitalistas, para conseguir viabilizar os seus filmes.

As palavras 'British Images Sounds' aparecem no início do filme, mas 'Images' aparece riscada, pois Godard e JH Roger privilegiam os sons, os discursos, os textos, em 'British Sounds'.

A diferença em relação à situação anterior é que os filmes de Godard passaram a ser viabilizados graças a vários canais de TV europeus, alguns deles de caráter público. No entanto, ele nunca conseguiu, tal como desejava, romper com o esquema industrial, tipicamente capitalista, com base no qual o Cinema se estruturava. 


Portanto, Godard acabará percebendo que o Capitalismo estava de tal forma consolidado e estabelecido na Europa Ocidental que não havia como fugir totalmente dos tentáculos do polvo capitalista e que ele teria que recorrer aos mesmos para poder continuar filmando. 

Assim, nos anos seguintes, Godard irá realizar vários filmes que foram viabilizados por canais de TV, públicos e privados. Assim, Pravda', que foi filmado em Março de 1969 na Tchecoslováquia, foi feito por encomenda de um canal de TV alemão (West German Television). 

Embora muitos atribuam a realização do filme ao 'Grupo Dziga Vertov', 'British Sounds' foi realizado sem o envolvimento do mesmo, embora por dois dos seus integrantes, que eram Godard e Henri-Roger. Mas, para Godard, o filme era fruto de um trabalho conjunto e, logo, sem um autor definido. Assim, o espírito do filme está ligado aos trabalhos que foram, a partir de 'Vento do Leste', realizados em nome do Grupo Dziga Vertov. 

'British'Sounds' foi o segundo filme que Godard fez após os eventos do Maio de 68 francês, dos quais ele participou intensamente.  Antes de British Sounds, Godard havia feito ''Le Gai Savoir' (A Gaia Ciência'), mas as filmagens deste começaram antes de Maio de 68 e terminaram depois daquele turbulento mês.

E logo na sequência das manifestações de Maio, Godard realizou o 'Um filme como os outros', que trata justamente dos acontecimentos do 'Maio de 68' francês, mostrando no mesmo cenas de filmagens que ele havia feito usando de uma câmera portátil (Beaulieu 16 mm). Tais filmes eram documentários de apenas três minutos chamados de 'Ciné-tracts'.
 
Jean-Henri Roger era um jovem estudante radical, maoísta como Godard, com quem o consagrado cineasta francês conversava bastante antes mesmo de criar o Grupo Dziga Vertov. Ele dirigiu dois filmes em parceria com Godard, que foram 'British Sounds' e 'Pravda', e também se integrou ao GDV.

No período de Maio/Junho de 1968, Godard e vários outros cineastas, como Alain Resnais, se integraram a um grupo criado por Chris Marker (cineasta ligado a Nouvelle Vague que ficou famoso por seus documentários) e que fizeram estes 'ciné-tracts'. 

E daí, logo depois de 'Un film comme les autres', vieram 'British Sounds' e "One A. M." (One American Movie), que Godard filmou nos EUA e que tratava dos movimentos contestatórios existentes nos EUA naquele período (Panteras Negras, Movimento Estudantil, Psicodelismo...), mas cujas filmagens ele não terminou. Somente em 1971 é que D. A. Pennebaker terminaria de filmar o mesmo, sendo que modificou o título para "One P. M." (One Parallel Movie).

Em comum com os filmes realizados na fase do 'Grupo Dziga Vertov' nós temos o fato de 'British Sounds' ser um filme de caráter experimental (com imagens e sons) e também porque o mesmo faz uma clara convocação aos jovens, mulheres e trabalhadores (as) para que levem adiante um processo revolucionário. 


É bom lembrar que Godard JH Roger já eram, nessa época, integrantes do Grupo Dziga Vertov. Isso talvez explique porque vários estudiosos respeitados da obra de Godard afirmem que 'British Sounds' seria um filme do grupo. 

'British Sounds' é um filme cujo título já entrega qual é a proposta de Godard, ou seja, ouvir o que os britânicos tinham a dizer, fossem eles operários (da British Motor Company), estudantes maoístas (da Universidade de Essex), jornalistas de TV reacionários ou líderes feministas (Sheila Rowbotham). 

É bom ressaltar que este não foi o primeiro filme que Godard fez no Reino Unido, pois no ano anterior (1968) ele havia feito 'One Plus One'/'Sympathy for the Devil' no país, quando filmou os The Rolling Stones (ainda com Brian Jones no grupo) fazendo o arranjo desta clássica canção.
 
O primeiro segmento do filme mostra o trabalho de operários britânicos em uma linha de montagem da 'British Motor Company' e nele ouvimos trechos do 'Manifesto do Partido Comunista'.

"British Sounds" é dividido em vários segmentos distintos, que são:

A) Exploração do Proletariado!

Logo no início do filme nós vemos imagens de trabalhadores de uma indústria automobilística britânica (a BMC: British Motor Company), que produzem os veículos, com o filme mostrando a linha de montagem em funcionamento. Essa sequência dura cerca de 10 minutos e a câmera acompanha o trabalho dos operários na montagem dos veículos.

Enquanto isso, vemos uma série de comentários a respeito de como funciona o Capitalismo e os mecanismos pelos quais ele disciplina e explora os trabalhadores, mostrando que estes são forçados a vender a sua força de trabalho aos Capitalistas para poder sobreviver.

Desta maneira, é dito que os trabalhadores industriais são submetidos a uma disciplina de trabalho que é tipicamente militar, fazendo parte de um verdadeiro 'Exército Industrial', com os gerentes e supervisores das empresas atuando como sargentos e oficiais. E as imagens nesta sequência mostram isso claramente, confirmando aquilo que as palavras transmitem. 

Logo, os trabalhadores são mostrados como sendo escravos da máquina, dos capatazes, da burguesia e dos representantes desta, a cuja autoridade eles estão submetidos, sendo que o trabalho deles visa criar mais Capital e que, para que tal processo não seja interrompido, se faz necessário que novos integrantes sejam incorporados ao 'Exército Industrial'. 

E também é dito que quanto mais competição existir entre os próprios trabalhadores, melhor será para o Capitalismo, pois isso irá resultar em aumento da produtividade e, portanto, em maiores lucros para os Capitalistas. E no fim deste segmento do filme é afirmado que os trabalhadores deveriam saber que já existem as condições materiais e sociais necessárias para que se leve adiante um processo de transformação revolucionária da sociedade. 

Esse trecho, que é lido neste primeiro momento do filme, foi retirado do 'Manifesto do Partido Comunista', de Karl Marx e Friedrich Engels.

No segmento que trata de questões feministas nós vemos uma jovem mulher nua andando pela casa, enquanto a líder feminista e socialista Sheila Rowbotham faz a leitura de um texto de sua autoria. Nesta sequência do filme Godard acaba tirando da jovem o seu caráter de mero objeto sexual.


B) Feminismo!

Depois, na sequência, nós vemos cenas de uma jovem mulher nua andando por uma casa (subindo e descendo a escada da mesma), enquanto ouvimos uma outra mulher explicando a respeito das diferentes maneiras pelas quais as mulheres são exploradas, tanto em seu trabalho, pelos patrões, quanto fora do local de trabalho, em seus relacionamentos com os homens.

A voz que ouvimos no filme é da escritora e líder feminista britânica Sheila Rowbotham, que faz a leitura de um texto retirado da publicação 'Black Dwarf' (Anão Negro).

Em 'British Sounds', a intenção de Godard era a de querer retratar os diferentes movimentos radicais de Esquerda britânicos que existiam naquele momento, incluindo o operário, o estudantil e o feminista. E foi por isso que ele convidou Sheila Rowbotham para ler um texto de sua autoria no filme.

Assim, vemos cenas de uma jovem nua subindo e descendo pela escada de uma casa e conversando ao telefone. Em um outro momento também vemos a imagem fixa do órgão genital feminino, em uma cena absolutamente tediosa, o que foi totalmente intencional da parte de Godard, e que dura vários minutos. E tudo isso é mostrado enquanto Sheila Rowbotham faz a leitura do seu texto de tom socialista e feminista. 

A ideia de Godard era mostrar a nudez feminina de uma maneira que não estimulasse nos espectadores qualquer forma de desejo ou de atração sexual pela mulher nua que vemos andando pela casa, ou seja, ele procurou fazer com que a nudez fosse exibida de uma forma que a mulher pudesse mostrar o seu corpo, ao natural, sem que isso representasse a transformação dela em um mero objeto sexual.

O locutor de TV que ataca jovens, negros, estrangeiros, defende a Guerra do Vietnã, enfim, faz um discurso extremamente retrógrado e que, atualmente, tornou-se bastante popular novamente em inúmeros países. 

E pode-se dizer, sem medo de errar, que Godard foi muito bem sucedido em seu objetivo, pois se tem algo que estas cenas, nas quais a jovem mulher nua aparece, não fazem é despertar a libido ou o desejo de quem quer que seja. 

Afinal, Godard sabe que se alguém quer tirar de uma mulher a condição de mero objeto sexual então basta mostrar essa mulher nua e ao natural, sem roupa nenhuma, sem maquiagem e nem cabelos bem arrumados, sem uma lingerie sexy, enfim, sem uma iluminação bem feita, sem passar óleo no corpo dela, enfim, sem nada que faz dela um objeto de desejo. 


Inclusive, Sheila diz, em seu livro de memórias, que era exatamente contra isso que o movimento Feminista britânico lutava naquele período, ou seja, contra o fato de que as mulheres tinham sido transformadas (pela Mídia, Cinema, Publicidade...) em meros objetos sexuais. 


Inicialmente, Sheila não gostou da proposta que foi apresentada por Godard, mas depois que este lhe fez uma pergunta, ela acabou concordando.
A pergunta de Godard foi: "Don't you think I am able make a cunt boring?" (Você pensa que não sou capaz de filmar uma buceta chata?). 

Posteriormente, quando Sheila escreveu o seu livro de memórias ('Promise of a Dream'; 2000) ela, meio que a contragosto (pois não simpatizou com o cineasta francês), acabou reconhecendo que Godard foi bem sucedido em sua proposta de mostrar uma 'cunt boring' em 'British Sounds'.
 
Quando o locutor de TV faz o seu discurso reacionário e preconceituoso vemos imagens do cotidiano britânico que contrariam o que ele diz.

Em seu texto, que é narrado pela própria Sheila, esta diz que as mulheres são exploradas pelos exploradores (ou seja, pelos Capitalistas), na condição de trabalhadoras, e que também o são pelos explorados, ou seja, pelos seus maridos trabalhadores, na condição de mulheres, pois eles procuram impor a sua vontade às mesmas.

Em um momento de caráter irônico e provocador um narrador fala a respeito da necessidade de se fazer uma 'análise Marxista-Leninista para se descobrir qual é a melhor posição para se fazer sexo'...

C) Direita Radical Racista e Xenófoba!

É um momento do filme em que um locutor de um noticiário de Televisão faz um discurso agressivo e que é marcado pela defesa da repressão ao movimento sindical, proibindo as greves, para que os trabalhadores produzam em favor de enriquecer os Capitalistas.

Além disso, vemos o mesmo locutor atacar os jovens, os negros e os estrangeiros, fazendo um discurso racista e xenófobo.

Assim, ele diz que a juventude deve se qualificar a fim de trabalhar, abandonando o sexo, as drogas e as manifestações, portanto indo na direção contrária ao que Godard e Roger defendiam, pois estes queriam a juventude envolvida em tarefas revolucionárias.
 
Operários trabalhando, propaganda, mulheres vindo de algum mercado ou loja... Assuntos como trabalho, publicidade e consumo são questões que fazem parte da obra de Godard desde o início da sua trajetória como cineasta.

O locutor também defende o fim do que chama de 'sociedade permissiva', ataca os estrangeiros, os comunistas, os hippies, os delinquentes, dizendo que os mesmos devem ser enviados para campos de trabalho forçados para que aprendam a trabalhar. 

Um elemento muito presente no filme, em especial neste bloco, é a presença da ideia de dualidade, pois enquanto o locutor faz um discurso que tenta culpar os negros, jovens e trabalhadores pelos problemas do país, vemos cenas do cotidiano do povo britânico que desmentem o discurso, que o confrontam. 

Afinal, como é dito logo no início do filme: "Em uma palavra, a Burguesia cria um mundo a sua imagem. Camaradas, devemos destruir essa imagem". E o paradoxo é que, ao mesmo tempo, vemos uma bandeira do Reino Unido onde temos três palavras escritas sobre a mesma, que são 'British Images Sounds', sendo que 'Images' aparece riscada. 

Assim, tal frase funciona como sendo uma espécie de declaração de intenções de Godard e JH Roger, como uma maneira de dizer que os Sons que ouviremos durante a exibição são mais importantes do que as Imagens. Logo, o título 'British Sounds' pode ser entendido como o fato de que as palavras que serão ditas e exibidas no filme são mais importantes do que as imagens. 

Ele também defende a necessidade de se continuar com a Guerra do Vietnã, mesmo que seja necessário matar mulheres e crianças, e ainda afirma que os estrangeiros que estão no Reino Unido vivem na imundície, rejeitam os princípios da Civilização e recusam-se a adotar os costumes ocidentais. Ele diz que os estrangeiros deveriam ser esterilizados e exterminados.
 
Em um dos segmentos do filme um grupo de operários britânicos discute sobre as suas condições de vida e trabalho, denunciando a exploração que sofrem por parte dos capitalistas.

Enfim, esse é um momento do filme no qual Godard e Roger denunciam quais são os seus inimigos e mostram o que eles defendem. 

Além disso, ver esse discurso, feito em 1969, há 50 anos, é algo chocante pela sua atualidade e ainda fica claro que esses movimentos e pessoas com ideias obscurantistas, retrógradas e fascistas sempre estiveram por aí, nunca saíram de cena, deixando claro o quanto esse filme é, infelizmente, assustadora e tragicamente atual neste aspecto. 

D) Luta de Classes: O Debate!

É um momento do filme em que os operários da BMC (British Motor Company), que vimos trabalhando no começo do filme, na linha de montagem, debatem entre si as condições de vida e de trabalho que os mesmos desfrutam, dizendo que trabalham por longas jornadas e que mal tem tempo livro suficiente para passar com as suas famílias. 

Os operários reunidos também fazem críticas ao ritmo acelerado do trabalho realizado na linha de produção. Eles dizem que há muita tensão no local de trabalho em função. Um deles diz que foi demitido da empresa em que trabalhava sem qualquer justificativa ou explicação, sendo que naquele momento havia feito uma dívida para comprar uma casa. 

Assim, os trabalhadores reivindicam melhores salários, jornadas de trabalho menores, o fortalecimento dos Sindicatos, bem como a criação de uma sociedade mais justa e igualitária, com base em princípios Socialistas. Mas é claro que os Capitalistas não irão aceitar fazer nada disso.

Os operários também fazem críticas ao Partido Trabalhista britânico, que governava o Reino Unido naquele momento, pois o mesmo limita-se a melhorar o Capitalismo (pois era um partido na linha da Social Democracia) e não a lutar contra o mesmo. 

E os operários também comentam sobre a necessidade de se promover a criação de um partido político verdadeiramente comunista e marxista, de caráter autenticamente revolucionário.
 
Na sequência em que os operários debatem vemos, na parede, o quadro 'Guernica', de Pablo Picasso, um dos quadros mais conhecidos e que denuncia o bombardeio nazista sobre a cidade basca de Guernica durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939).

E) Estudantes Maoístas!

Neste momento do filme nós vemos um grupo de jovens estudantes britânicos maoístas da Universidade de Essex que fazem cartazes políticos e que, também, tentam criar versões mais politizadas e ideológicas de músicas dos Beatles ('Hello Goodbye' e 'Revolution'), modificando as letras das canções, nas quais tentam introduzir, por exemplo, os nomes de Nixon, Mao Tse Tung, Fidel Castro e Ho Chi Minh, dando às mesmas um caráter mais explicitamente politizado.

Nesse último segmento do filme também ouvimos uma série de canções revolucionárias ligadas às lutas dos trabalhadores na época da Resistência ao Nazifascismo, bem como às lutas dos povos da América Latina pela sua libertação nacional e também às lutas que ocorriam em Portugal durante a Ditadura de Antônio Salazar. 

Também vemos uma série de declarações de solidariedade às várias lutas sociais e políticas que se desenvolviam no Reino Unido naquele momento, como a ocupação de casas vazias, as manifestações contra a Guerra do Vietnã, greves operárias, de professores e estudantes.

Esse trecho encerra o filme, que termina com uma convocação para que se faça uma Revolução Socialista: 'Nós queremos a Revolução... Já!' é o grito de Godard e de Jean-Henri Roger. 

Assim, não foi à toa que a emissora de TV britânica que encomendou o filme acabou optando por não exibir o mesmo.
 
'Som dos Estudantes' e 'Luta', camiseta com um punho cerrado e levantado: Expressões e imagens que vemos no filme e que estimulam os estudantes a lutar pela Revolução.

F) Memória Histórica e Revolução!

Por meio da narração feita, aparentemente, por um pai e uma mãe, junto com o seu filho (uma criança, que repete o que os pais dizem), em vários momentos do filme, Godard e Roger relembram momentos importantes da história das lutas dos trabalhadores britânicos ao longo dos séculos.

Assim, eles mostram que essas lutas dos trabalhadores ocorrem desde o período medieval, passam pelas Revoluções Inglesas do século XVII (com os 'Diggers'/'Niveladores'), pelas lutas operárias dos séculos XIX e XX, bem como pela ascensão do Partido Trabalhista britânico ao poder, depois da Segunda Guerra Mundial, que criou uma sociedade e uma economia baseada no 'Welfare State' (Estado de Bem-Estar Social) quando governou o Reino Unido no Pós-Guerra.

Porém, o Partido Trabalhista é duramente criticado no filme pelo fato de que o seu governo não promoveu uma ruptura revolucionária com o Capitalismo, optando por um caminho reformista, procurando melhorar o sistema, mas sem destruir o mesmo.

Assim, no trecho do filme em que debatem com os representantes da BMC, os operários defendem que se crie um novo partido para defender a classe trabalhadora, a fim de que o mesmo lidere uma Revolução.

Logo, o filme de Godard e Roger faz uma conexão entre as lutas históricas dos trabalhadores e as lutas políticas e sociais que ocorriam no Reino Unido em 1969.
 
Jovens estudantes maoístas da Universidade de Essex modificam letras de músicas dos Beatles, a fim de dar às mesmas um caráter explicitamente revolucionário.

G) Experiências com sons e imagens!

Este filme de Godard e JH Roger possui, inegavelmente, um nítido caráter experimental e isso vale tanto para o trabalho que é feito com os sons, como aquele que é realizado com imagens. 

As experiências sonoras são as principais (daí o título do filme ser 'British Sounds'), pois aquilo que é dito e que ouvimos é o mais importante no filme. Tais expermentos são de vários tipos.

No começo do filme, quando Godard mostra a linha de montagem de uma montadora de automóveis, no início do filme, o que nos chama a atenção é o barulho produzido pela fábrica (um zunido constante e irritante), enquanto ouvimos o discurso de um narrador que lê trechos do 'Manifesto do Partido Comunista', de Marx e Engels. 

Já no segmento 'Feminismo' nós temos uma longa narração, feita pela líder feminista britânica Sheila Rowbotham, que lê um texto de sua autoria (publicado em 'Black Dwarf') e que é combinada com cenas de nudez feminina, ao natural, sem qualquer produção prévia, que procura tirar da mulher a condição de objeto sexual, no que Godard foi bem sucedido, como até Sheila Rowbotham, a contragosto, acabou admitindo.  

Assim, aquilo que ouvimos (o 'british sound'/'som britânico') do texto que é lido por Sheila, o seu discurso sobre a condição feminina, torna-se muito mais relevante do que as imagens, que são feitas de maneira a se tornarem pouco atrativas para o espectador que, assim, passa a prestar muito mais atenção no que está sendo falado do que nas imagens deliberadamente tediosas que lhes são oferecidas.


'Sound of Revolution': Combinação de sons e imagens por meios das quais Godard e JH Roger defendem a Revolução Socialista.

Godard também fala, em vários momentos do filme, num tom bem fraco, quase inaudível, palavras como 'Trabalhadores', 'Greve', 'Luta' e 'Organize-se', estimulando o povo britânico a lutar por uma transformação revolucionária da sociedade. O filme de Godard também mostra palavras, frases e slogans que ocupam a tela em inúmeros momentos. 

E várias vezes essas palavras em letras garrafais estão separadas, aparecendo em momentos distintos do filme, mas quando reunidas elas acabam formando frases. Exemplo disso é quando forma-se a frase 'Who is more eager? (Quem está mais ansioso?) durante o segmento em que os trabalhadores discutem sobre as suas condições de trabalho e de vida e reivindicam a criação de uma sociedade Socialista. 

Uma outra frase que lemos no filme é 'To go where the dificulties, these dificulties, are creater' ('Ir para onde as dificuldades, essas dificuldades, são maiores'), sendo que a letra S é mostrada com um cifrão, aparecendo como $. Aliás, isso acontece em vários momentos. 

Seria esta, talvez, uma forma de Godard e JH Roger mostrarem que ao tentarem produzir filmes com forma e conteúdo revolucionários eles tinham muito mais dificuldades para conseguir viabilizar os seus filmes? Pode ser que seja isso mesmo.

Mas uma outra interpretação possível é a de que lutar por uma transformação revolucionária da sociedade também é muito mais difícil do que lutar por melhores salários ou por redução da jornada de trabalho. 

Então, a mensagem transmitida pelo filme seria a de que as pessoas que estivessem dispostas a lutar por uma Revolução Socialista teriam que compreender e aceitar de que fazer isso seria algo extremamente difícil e, como fica claro na sequência final, quando um vemos um braço ensanguentado agarrando e agitando uma bandeira vermelha, essa luta revolucionária iria resultar em derramamento de sangue, sim.
 
Estudantes da Universidade de Essex fazem cartazes com teor revolucionário. O filme deixa claro que caberá ao proletariado a tarefa de liderar a Revolução. 

Então, este é um filme no qual se mostra também as imensas dificuldades em se produzir cinema nestas circunstâncias, que são extremamente difíceis, em que 'British Sounds' foi realizado, com poucos recursos para a sua produção. 

Essa crítica ao modo de se produzir Cinema, mostrando e denunciando as condições em que os filmes são realizados, é um elemento que sempre esteve presente na obra de Godard, tal como pode ser visto em 'Le Mépris' ('O Desprezo'; 1963) e também em 'For Ever Mozart' (1996), por exemplo.

Outro elemento que está presente neste filme é um certo humor, uma ironia, que não aparecem em outros filmes desta fase Maoísta/Revolucionária de Godard e do Grupo Dziga Vertov. Outros filmes do período são mais rígidos, principalmente no conteúdo, com um discurso mais agressivo e sectário, como aquele que temos em 'Pravda' (1969) e 'Lotte in Italia' (1969).

No fim do filme também ouvimos tocar algumas canções revolucionárias de vários lugares do mundo, enquanto um braço ensanguentado (que é o do próprio Godard) se arrasta na neve e passa a segurar e agitar uma bandeira vermelha, símbolo da Revolução. Som e imagem estão interligados de maneira a estimular a luta revolucionária. 

Com isso, Godard e JH Roger promovem uma ruptura revolucionária com a forma cinematográfica, fazendo um filme claramente experimental, ao mesmo tempo em que o mesmo possui um claro conteúdo revolucionário. Logo, 'British Sounds' é revolucionário na forma e no conteúdo.


Um braço ensanguentado vai na direção de uma bandeira vermelha. E segundo Colin McCabe, um dos principais estudiosos da obra 'godardiana', foi o próprio Godard quem se cortou e fez a cena.

A relevância de British Sounds!

Alguém poderia dizer que, do ponto de vista político, o filme de Godard e JH Roger teria se tornado datado, ultrapassado, pois não tivemos nenhuma Revolução Socialista vitoriosa na Europa Ocidental ou em qualquer outro país desenvolvido.

Mas mesmo esse argumento é altamente questionável, pois o discurso do locutor do noticiário de TV, fazendo comentários reacionários e preconceituosos (contra jovens, negros, estrangeiros...) não é muito diferente daquilo que vemos Trump, Salvini, Orban, Boris Johson, Marine Le Pen falarem em seus discursos atualmente, mesmo levando em consideração as mudanças de tons e nuances que existem entre eles.

Além disso, 'British Sounds' contém uma série de experiências com som e imagem as quais Godard deu continuidade, em sua obra, nas décadas subsequentes, tal como pôde ser comprovado em seu filme mais recente, de 2018, que foi o "Le Livre D'Image".

E muitos dos problemas sociais e econômicos que o filme de Godard e JH Roger mostra ainda estão presentes em nossas sociedades, mesmo depois de 50 anos da sua realização.

Assim, continuamos vivendo em sociedades capitalistas que, atualmente, mesmo nos países desenvolvidos (EUA, Europa Ocidental, Japão, Canadá), são muito mais desiguais e injustas do que eram em 1969, pois a exploração da classe trabalhadora, pelos capitalistas, ficou ainda mais intensa do que era quando Godard e JH Roger fizeram essa filme.

A concentração de renda aumentou imensamente nos países desenvolvidos e o poder de compra dos trabalhadores diminuiu. As políticas neoliberais empobreceram e reduziram o tamanho da classe média.
 
Godard filmando as manifestações de Maio de 68, em Paris, com uma câmera portátil 16mm. As filmagens que ele fez foram usadas, depois, no filme 'Um film comme les autres', que foi lançado no mesmo ano.

Muitas indústrias, que pagavam os melhores salários e ofereciam muitos benefícios (saúde, previdência, férias), foram transferidas para países com custos de produção e de mão-de-obra muito menores (México, China, Indonésia, Vietnã, Leste Europeu), gerando um radical processo de desindustrialização dos países desenvolvidos que, somado, com a automação crescente diminuiu drasticamente o número de trabalhadores industriais. 

As mulheres conquistaram muitos diretos mundo afora, mas continuam sendo exploradas como objetos sexuais e são vítimas de violências no mundo inteiro. E os estrangeiros, principalmente os imigrantes ilegais, tornaram-se as principais vítimas dos discursos radicais e preconceituosos feitos por lideranças e partidos de Extrema-Direita pelo mundo afora (EUA, Alemanha, França, Itália, Reino Unido).

E também se desenvolveu, em muitos países, uma mídia poderosa que faz a defesa de muitas dessas políticas, como é o caso de inúmeros comentaristas políticos, apresentadores de TV e radialistas cujos discursos agressivos não estão muito distantes daquele é feito pelo locutor de TV de 'British Sounds'. 

Desta maneira, nestes aspectos, o filme de Godard e JH Roger é de uma atualidade assustadora e preocupante. 

'British Sounds' também tem um tom mais leve e bem humorado do que outros filmes dessa fase Maoísta ou Revolucionária, que combinavam uma estética radical com uma política revolucionária, enquanto que outros filmes realizados nessa fase (como 'Pravda' e 'Lotte in Italia') são mais agressivos e sectários em seu discurso, embora continuem sendo trabalhos de caráter experimental.

Portanto, 'British Sounds' é um filme que possui uma inegável importância nesse período da carreira de Godard e mesmo para as fases posteriores da sua trajetória como cineasta, podendo ser considerado como, provavelmente, o melhor ou, pelo menos, aquele que se vê mais facilmente, filme desse período.
 
Frase que encerra o filme: 'Que a Luta de Classes Nunca Termine'... Bem, ela não terminou, mesmo. Como é dito no filme: Enquanto existirem classes sociais, teremos luta de classes.

Frase!

"Televisão e Filmes não registram  momentos de realidade, só dialética... regiões de contradições. Iluminemos essas regiões com a ofuscante luz da Luta de Classes". 


Informações Adicionais!

Título: British Sounds/See You at Mao;
Diretor: Jean-Luc Godard e Jean-Henri Roger;
Roteiro: Jean-Luc Godard e Jean-Henri Roger;
Duração: 52 minutos;
País de Produção: Reino Unido;
Ano de Produção: 1969.


Filmes da Fase Maoísta - Grupo Dziga Vertov de Jean-Luc Godard!


Os filmes abaixo relacionados foram feitos por Godard, Jean-Pierre Gorin e Jean-Henri Roger. Nem todos são atribuídos ao Grupo Dziga Vertov, mas eles fazem parte da fase maoísta e revolucionária de Godard. 

1) Le Gai Savoir (JL Godard; A Gaia Ciência; 1968); 

2) Um film comme les autres (JL Godard; JP Gorin; 1968);

3) One Plus One/Sympathy for the Devil (JL Godard; 1968);

4) One American Movie (JL Godard; 1968) / One Paralllel Movie (D.A. Pennebaker; 1971); 

5) British Sounds - See You at Mao (JL Godard; Jean-Henri Roger; 1969); 

6) Pravda (JL Godard; JH Roger; Paul Burron; 1969); 

7) Le Vent d'Est (O Vento do Leste; JL Godard e JP Gorin; 1969); 

8) Lotte in Itália (Lutas Ideológicas na Itália; JL Godard e JP Gorin; 1970); 

9) Vladimir et Rosa (Vladimir e Rosa; JL Godard e JP Gorin; 1970); 

10) Jusqu'à la Victoire (Até a Vitória; JL Godard; JP Gorin; 1970); 

11) Tout va Bien (JL Godard e JP Gorin; 1972); 

12) Letter to Jane: An investigation about a Still (JL Godard e JP Gorin; 1972); 

13) Ici et Ailleurs (JL Godard e Anne-Marie Miéville; 1976).

Godard e Glauber Rocha durante as filmagens de 'Vento do Leste', de 1970, que foi um dos principais filmes desta fase ultrapolitizada da carreira de Godard.

Links:

Trecho do livro de Sheila Rowbotham sobre 'British Sounds':
https://www.theguardian.com/books/2000/jul/15/features.weekend

British Sounds:
http://sensesofcinema.com/2005/cteq/british_sounds/

Grupo Dziga Vertov:
https://proyectoidis.org/grupo-dziga-vertov/

Godard e o Grupo Dziga Vertov:
https://cineastoria.wordpress.com/2008/07/09/jean-luc-godard-y-el-grupo-dziga-vertov/

Grupo Dziga Vertov - Fazendo filmes politicamente:
https://www.noticiasaominuto.com/cultura/1006076/godard-o-grupo-dziga-vertov-e-a-decisao-de-fazer-filmes-politicamente

https://24.sapo.pt/atualidade/artigos/maio-de-68-godard-o-grupo-dziga-vertov-e-a-decisao-de-fazer-filmes-politicamente

Entrevista com Godard, em Paris, em 1969, sobre o filme 'Até a Vitória':
https://www.youtube.com/watch?time_continue=64&v=GQsvOwq7QFU

Godard - Maio de 68 e 'Um filme como os outros':
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Cinema/Godard-Um-filme-como-os-outros/59/40120

Em busca do Godard militante:
http://www.contracampo.com.br/01-10/embuscadogodardmilitante.html

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