'Milagre em Milão': De Sica mostra o esgotamento da proposta original do Neo-Realismo e o triunfo do Liberalismo burguês na Itália do Pós-Guerra!
'Milagre em Milão': De Sica mostra o esgotamento da proposta original do Neo-Realismo e o triunfo do Liberalismo burguês na Itália do Pós-Guerra! – Marcos Doniseti!
As origens do Neo-Realismo Cinematográfico Italiano!
O diretor deste ‘Milagre em Milão’, Vittorio De Sica, foi um dos criadores do Neo-Realismo italiano e junto com Roberto Rossellini e Luchino Visconti ele foi integrante de uma espécie de ‘Santíssima Trindade’ deste que foi um dos mais importantes e influentes ‘movimentos’ cinematográficos da história.
Obs1: O roteirista Cesare Zavattini também é considerado uma das figuras centrais do Neo-Realismo, sendo o seu mais importante teórico.
O ponto de partida do Neo-Realismo foi o filme "Ossessione" (que já foi comentado aqui no blog), uma produção de 1943, ou seja, ele foi realizado já nos estertores do regime Fascista de Mussolini, que foi derrubado em Julho de 1943, quando os Aliados (EUA e Grã-Bretanha) iniciaram a invasão da Itália.
‘Ossessione’ foi dirigido por Luchino Visconti e se baseou em uma romance policial ‘Noir’ de autoria de James M. Cain (O Destino Bate à Sua Porta), embora isso não tenha sido informado pelo cineasta italiano, temeroso de ser censurado pelo regime fascista.
Afinal, o romance de Cain era um retrato duro e pessimista da sociedade estadunidense da época da Grande Depressão e mostrava que a ascensão social não era possível naquele momento, a não ser por meio de atividades criminosas.
Inclusive, quando Vittorio Mussolini, o filho mais velho do Duce que era um entusiasta e apaixonado pelo Cinema, assistiu ‘Ossessione’ ele disse ‘Esta não é a Itália’, pois o filme mostrava um retrato muito realista da pobreza e do atraso da sociedade italiana do período.
Em ‘Ossessione’, as mulheres italianas também foram retratadas de forma totalmente diferente da versão idealizada pelo Fascismo. No filme de Visconti elas tomavam a iniciativa, possuíam amantes, praticavam a prostituição, participavam de crimes e enfrentavam os homens sem medo algum e de forma pública.
Nos anos seguintes à produção de ‘Ossessione’ tivemos a realização de uma série de filmes Neo-Realistas, que se tornaram verdadeiros clássicos do Cinema italiano e mundial, tais como ‘Roma, Cidade Aberta’ e ‘Alemanha, Ano Zero’ (ambos de Roberto Rossellini), ‘Ladrões de Bicicleta’ e ‘Vítimas da Tormenta’ (de Vittorio de Sica), ‘A Terra Treme’ (Luchino Visconti), ‘O Caminho da Esperança’ (Pietro Germi) e ‘Arroz Amargo’ (Giuseppe De Santis).
É bom ressaltar que o Neo-Realismo se desenvolveu devido à existência de um ambiente político e social altamente favorável, quando a Itália possuía um governo de ‘União Nacional’.
Este era formado pelos representantes dos vários segmentos políticos e sociais que lutaram contra o Nazifascismo (liberais, conservadores, democrata-cristãos, socialistas, comunistas).
Neste momento, existiam muitas esperanças de que a Itália pudesse caminhar na direção de algum tipo de Socialismo, pois os partidos Socialista e Comunista, somados, conquistaram quase 40% dos votos na primeira eleição democrática que foi realizada no país, em 1946.
Com isso, os cineastas do país desfrutaram de ampla liberdade criativa e puderam mostrar, em seus filmes, a realidade de pobreza, miséria, fome, exploração, desemprego, criminalidade e desigualdades sociais que caracterizavam a Itália do imediato Pós-Guerra.
Mas a partir de 1948 o cenário político e cultural europeu e italiano passou por grandes mudanças, que representaram um claro retrocesso em relação à situação imediatamente anterior, pois tivemos o início da Guerra Fria entre EUA e URSS.
Desta maneira, os governos de ‘União Nacional’ que existiam em vários países (Itália, França, Polônia, Hungria, Tchecoslováquia) chegaram ao fim.
Nos países do Leste Europeu tivemos a subida ao poder de governantes ligados aos interesses da URSS stalinista, enquanto que no Ocidente tivemos a ascensão de governos conservadores e direitistas, inteiramente comprometidos com os interesses dos EUA. Isso resultou na divisão da Europa no Pós-Guerra em dois blocos: Capitalista, liderado pelos EUA; Socialista, liderado pela URSS.
Tal fenômeno aconteceu mesmo que na França os Socialistas e Comunistas somassem, juntos, 50% dos votos e na Itália esse percentual dos dois partidos chegasse a 40%.
No entanto, em 1948, na Itália, uma nova eleição deu ao PDC (Partido Democrata-Cristão) uma grande votação (48,5%), obtida graças ao apoio maciço da Igreja Católica, da Máfia, da Burguesia italiana (industriais, banqueiros, latifundiários) e do governo dos EUA (incluindo a CIA, que injetou milhões de dólares na campanha da PDC).
E o novo governo conservador do PDC passou a criticar e a censurar os filmes Neo-Realistas, afirmando que os mesmos mostravam uma imagem muito negativa da Itália. Inclusive, censores a serviço da Igreja Católica passaram a controlar a produção cinematográfica italiana, desestimulando a produção de filmes Neorrealistas.
Para o governo do PDC os filmes Neo-Realistas eram obra de cineastas ligados ao PCI (Partido Comunista Italiano), o que é apenas parcialmente verdadeiro. Afinal, vários diretores ligados ao Neo-Realismo nunca tiveram qualquer conexão com os Comunistas italianos (casos de Roberto Rossellini e de Pietro Germi).
Até mesmo o clássico ‘Ladrões de Bicicleta’ chegou a ter o seu visto de exportação negado pelo conservador governo italiano. Mesmo assim ele chegou a fazer muito sucesso no exterior e conquistou o Oscar de Melhor Filme estrangeiro em 1951.
Para tirar espaço dos filmes Neo-Realistas, o governo do PDC também estimulou a importação de filmes de Hollywood, que mostravam uma visão idealizada da realidade, e não exigia que um percentual mínimo de filmes italianos fosse exibido nas salas comerciais, tal como determinava a lei da época.
É neste contexto que os cineastas ligados ao Neo-Realismo passaram a realizar filmes com um teor de crítica social mais ameno, passando a se utilizar do humor, da comédia, ou explorando a beleza física de atrizes como Silvana Mangano (‘Arroz Amargo’) e Lucia Bosé ('Páscoa de Sangue') em suas produções. Estes dois filmes, aliás, foram dirigidos por Giuseppe De Santis, um dos criadores do Neo-Realismo.
Essa nova postura dos cineastas Neo-Realistas deu origem ao que se convencionou chamar de ‘Neo-Realismo Rosa’, que gerou filmes que combinavam a comédia com uma crítica social mais amena. Um ótimo exemplo disso é ‘Le Ragazze di Piazza di Spagna’, de Luciano Emmer (que já foi comentado aqui no blog).
A trama do filme!
E até mesmo cineastas como Vittorio De Sica passaram a fazer isso, o que se comprova por este ótimo ‘Milagre em Milão’. A história do filme gira em torno de um conflito envolvendo a posse de uma propriedade na periferia de Milão, na qual se descobriu água e petróleo.
A propriedade havia sido ocupada por algumas centenas de miseráveis sem teto que são liderados por um jovem bom e ingênuo chamado Totó.
Este gostava de dar ‘Bom Dia’ para cumprimentar a todos, incluindo pessoas que ele não conhecia, sendo que era considerado um ‘retardado’ em função disso.
Totó havia sido encontrado, ainda bebê, por uma mulher idosa em meio a sua plantação de couve (qualquer referência a Moisés não é mera coincidência). Ela cuidou dele, que se tornou uma criança amável, mas morreu quando ele ainda era muito novo. Com isso, Totó foi levado a um orfanato, de onde saiu quando completou 18 anos.
Ele sai com uma pequena maleta e uns poucos objetos, mas ela é furtada por um morador miserável das redondezas. Totó o persegue e concorda em lhe dar a maleta, tornando-se amigo do pobre ladrão. Este o convida para morar em seu barraco. E junto com outros miseráveis eles vão ocupar uma propriedade abandonada, onde criam a sua comunidade.
Totó tenta organizar o local, dando nome às ruas (cujos nomes têm um caráter educativo) e determinando onde cada um iria morar.
Os moradores do local criam um forte senso de coletividade, lutando e colaborando entre si, com a exceção de apenas um morador, que age de forma individualista e que considera os moradores dali como sendo um bando de vagabundos. Mas, apesar disso, ali temos todos os tipos de pessoas: generosas, arrogantes, ambiciosas.
Enquanto isso, Totó procura ajudar a todos, tentando amenizar o sofrimento dos seus moradores e procurando espalhar otimismo e esperança entre eles. Ele consegue impedir, inclusive, que um dos moradores chegue a cometer suicídio.
Porém, ao descobrirem água e, depois, petróleo na localidade, isso acaba por atiçar o interesse do Sr. Mobbi, um rico capitalista da cidade, que acaba comprando a propriedade.
Em sua primeira visita ao local, o capitalista Mobbi se compromete a manter os moradores no lugar, agindo como se fosse igual aos mesmos. Afinal, todos eles possuem cinco dedos, não importando se eles são ricos ou pobres.
Porém, não muito tempo depois, o mesmo Mobbi decide pedir ao governo que expulse os moradores da propriedade. E a Polícia se mobiliza para isso. Totó e uma comissão de moradores vai conversar com Mobbi, que os trata muito bem e os convence de que eles irão continuar morando no mesmo lugar. Mas enquanto conversa com os mesmos, a Polícia já está sendo mobilizada para expulsar os sem teto da propriedade.
Assim, quando chegam à propriedade, Totó e os demais percebem que foram enganados por Mobbi, que manda a Polícia reprimir e expulsar os sem teto do local.
Afinal, no Capitalismo, o Estado está a serviço da Burguesia, certo?
Mesmo assim, os moradores decidem enfrentar a Polícia, que arremessa bombas de gás e joga água sobre os sem-teto.
Obs2: Qualquer semelhança com as operações de retirada de moradores sem-teto nas cidades brasileiras não é mera coincidência, embora no Brasil as ações de despejo sejam bem mais brutais e violentas do que essa que é mostrada em ‘Milagre em Milão’.
Neste momento, os moradores recebem uma inesperada ajuda espiritual, vinda da falecida mãe adotiva de Totó. Ela entrega uma espécie de ‘Pomba Mágica’ para Totó, sendo que a mesma tem o poder de atender a todos os desejos do jovem.
Assim, quando a Polícia joga água nos moradores, Totó pede por guarda-chuvas e todos ali passam a possuir os mesmos. Ele também usa deste poder para transformar um Policial em General, fazendo com que este desistisse de obrigar os moradores a sair da propriedade. Quando os oficiais tentam ordenar um ataque contra os moradores, Totó faz com que eles cantem com uma voz bem aguda, expondo os mesmos ao ridículo.
Quando os sem teto percebem quais são os poderes de Totó, no entanto, eles demonstram possuir apenas preocupações de caráter individualista, pensando apenas em seus desejos e necessidades estritamente pessoais. Uma moradora pede por belas roupas, outros querem ficar milionários (ou seja, virar capitalistas) e pedem milhões de Liras, outro pede para aumentar de tamanho, outros pedem por eletrodomésticos (uma enceradeira, por exemplo, embora o piso dos barracos seja de madeira ou terra).
Assim, nenhum dos sem teto pensa em pedir um título de propriedade que os transformasse em donos do local. Nenhum dos seus pedidos é feito pensando nos interesses da comunidade.
Esta foi uma maneira que Vittorio De Sica encontrou de mostrar que embora os sem teto estejam lutando coletivamente, eles possuem uma mentalidade individualista, tipicamente capitalista.
Logo, eles são trabalhadores miseráveis, mas já assimilaram as ideias, os valores e o comportamento da Burguesia, pensando apenas em seus próprios interesses. Eles deixaram de pensar e de agir coletivamente.
O Capitalismo triunfou e o Socialismo fracassou, pelo menos na Itália, essa é a mensagem deste belo e clássico filme de Vittorio De Sica, pois os valores burgueses triunfaram na sociedade italiana do Pós-Guerra.
Outra interpretação para isso, talvez seja que esta foi uma maneira que Vittorio De Sica usou para criticar o fato de que, após 1947, o público italiano não se interessava mais em assistir às produções Neo-Realistas, preferindo assistir aos filmes de Hollywood, que atraíam um público imenso para as salas de cinema. E com isso os valores capitalistas e individualistas do ‘American Way of Life’ acabaram se impondo na Itália.
Afinal, como diziam Lênin e Mussolini, ‘O Cinema é a arte mais forte’ e poderia influenciar o modo de pensar e de agir das pessoas, até porque, naquele momento histórico (década de 1950) não existia Televisão de massa. A TV já existia, mas era acessível a poucas pessoas, mesmo nos países europeus. Na Europa, a massificação da TV é um fenômeno que irá ocorrer apenas na década de 1960.
Enquanto isso, os locais que ainda exibiam os filmes Neo-Realistas ficavam às moscas, sendo frequentados por um pequeno numero de pessoas, pois os mesmos insistiam em mostrar a realidade miserável e os problemas da Itália daquela época.
Já as produções de Hollywood mostravam um mundo de luxo e fantasia, a vida dos ricos, tal como acontecia na era fascista, que produziu um grande número de filmes do estilo chamado de ‘Telefone Bianchi’, que mostravam a vida dos italianos ricos, da Burguesia e da Nobreza. A expressão 'Telefone Branco' para estes filmes deve-se ao fato de que esta era a cor dos aparelhos de telefones da Burguesia e da Nobreza italianas, enquanto que os telefones das camadas populares eram pretos.
Assim, passou a existir um total contraste entre as produções Neo-Realistas e o gosto dominante do povo italiano, ocorrendo uma verdadeira ruptura entre eles. E é justamente isso que parece ter sido objeto de crítica por parte de Vittorio De Sica nesta produção.
É como se, em ‘Milagre em Milão’, De Sica estivesse antecipando, em algumas décadas, aquela famosa frase do carnavalesco Joãozinho Trinta: ‘O povo gosta de luxo. Quem gosta de miséria é intelectual’.
Essa mudança no gosto do público italiano, que abandonou os filmes Neorrealistas, junto com a política de censura e perseguição que estes passaram a sofrer, mostram que o projeto Neo-Realista de contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, ou seja, Socialista, acabou fracassando.
Logo, junto com a derrota política e eleitoral dos Socialistas e, em especial, dos Comunistas (PCI), tivemos o esvaziamento e o esgotamento do Neorrealismo. Afinal, havia uma forte conexão entre ambos (PCI e Neo-Realismo).
E isso abriu caminho para o surgimento do ‘Neo-Realismo Rosa’ e para produções que até mostravam a exploração e a pobreza existentes na Itália, mas que valorizavam o humor e ou exaltavam muito mais a beleza das atrizes do que os problemas sociais da Itália, como já foi comentado aqui.
Em ‘Milagro em Milão’, De Sica acabou também por sugerir que dentro dos estreitos limites do Capitalismo Liberal que se impõem ao país a partir de 1948 simplesmente não haveria soluções para os principais problemas que afetavam o povo italiano. Tal ideia também estará presente em seu filme posterior, o belíssimo ‘Umberto D’.
As soluções, portanto, somente poderiam vir do Céu, de algum poder Divino. Mesmo assim, Vittorio De Sica finaliza o seu filme com uma mensagem de esperança, o que é uma característica marcante da sua obra.
Obs3: Quando vemos os sem teto viajando em direção ao Céu, em vassouras, vemos de onde Spielberg tirou aquela famosa cena do filme ‘E.T.’, que foi um dos seus maiores sucessos.
Informações Adicionais!
Título: ‘Milagro a Milano’ (Milagre em Milão);
Diretor: Vittorio De Sica;
Roteiro: Vittorio De Sica, Cesare Zavattini, Mario Chiari, Adolfo Franci, Suso Cecchi D'Amico; Baseado em livro de Cesare Zavattini;
País de Produção: Itália;
Ano de Produção: 1950;
Gênero: Comédia Dramática;
Duração: 97 minutos;
Fotografia: G.R. Aldo;
Música: Alessandro Cicognini;
Elenco: Francesco Golisano (Totó); Paolo Stoppa (Rappi); Guglielmo Barnabò (Mobbi); Emma Grammatica (Lolotta, mãe adotiva de Totó); Brunella Bobo (Edvige); Arturo Bragaglia (Alfredo); Erminio Spalla (Gaetano).
Prêmios: Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1951.
'Miracolo a Milano' (1950), de Vittorio De Sica, mostra que os valores burgueses passaram a predominar na Itália do Pós-Guerra. |
O diretor deste ‘Milagre em Milão’, Vittorio De Sica, foi um dos criadores do Neo-Realismo italiano e junto com Roberto Rossellini e Luchino Visconti ele foi integrante de uma espécie de ‘Santíssima Trindade’ deste que foi um dos mais importantes e influentes ‘movimentos’ cinematográficos da história.
Obs1: O roteirista Cesare Zavattini também é considerado uma das figuras centrais do Neo-Realismo, sendo o seu mais importante teórico.
O ponto de partida do Neo-Realismo foi o filme "Ossessione" (que já foi comentado aqui no blog), uma produção de 1943, ou seja, ele foi realizado já nos estertores do regime Fascista de Mussolini, que foi derrubado em Julho de 1943, quando os Aliados (EUA e Grã-Bretanha) iniciaram a invasão da Itália.
‘Ossessione’ foi dirigido por Luchino Visconti e se baseou em uma romance policial ‘Noir’ de autoria de James M. Cain (O Destino Bate à Sua Porta), embora isso não tenha sido informado pelo cineasta italiano, temeroso de ser censurado pelo regime fascista.
Afinal, o romance de Cain era um retrato duro e pessimista da sociedade estadunidense da época da Grande Depressão e mostrava que a ascensão social não era possível naquele momento, a não ser por meio de atividades criminosas.
Totó foi encontrado à beira de um rio, em meio à uma plantação de couves. Será que ele é um 'Moisés' moderno que levará os deserdados para a Terra Prometida? |
Em ‘Ossessione’, as mulheres italianas também foram retratadas de forma totalmente diferente da versão idealizada pelo Fascismo. No filme de Visconti elas tomavam a iniciativa, possuíam amantes, praticavam a prostituição, participavam de crimes e enfrentavam os homens sem medo algum e de forma pública.
Nos anos seguintes à produção de ‘Ossessione’ tivemos a realização de uma série de filmes Neo-Realistas, que se tornaram verdadeiros clássicos do Cinema italiano e mundial, tais como ‘Roma, Cidade Aberta’ e ‘Alemanha, Ano Zero’ (ambos de Roberto Rossellini), ‘Ladrões de Bicicleta’ e ‘Vítimas da Tormenta’ (de Vittorio de Sica), ‘A Terra Treme’ (Luchino Visconti), ‘O Caminho da Esperança’ (Pietro Germi) e ‘Arroz Amargo’ (Giuseppe De Santis).
É bom ressaltar que o Neo-Realismo se desenvolveu devido à existência de um ambiente político e social altamente favorável, quando a Itália possuía um governo de ‘União Nacional’.
Totó, logo depois de ter saído do orfanato, onde ficou por vários anos, após a morte de Lolotta. |
Neste momento, existiam muitas esperanças de que a Itália pudesse caminhar na direção de algum tipo de Socialismo, pois os partidos Socialista e Comunista, somados, conquistaram quase 40% dos votos na primeira eleição democrática que foi realizada no país, em 1946.
Com isso, os cineastas do país desfrutaram de ampla liberdade criativa e puderam mostrar, em seus filmes, a realidade de pobreza, miséria, fome, exploração, desemprego, criminalidade e desigualdades sociais que caracterizavam a Itália do imediato Pós-Guerra.
Mas a partir de 1948 o cenário político e cultural europeu e italiano passou por grandes mudanças, que representaram um claro retrocesso em relação à situação imediatamente anterior, pois tivemos o início da Guerra Fria entre EUA e URSS.
Desta maneira, os governos de ‘União Nacional’ que existiam em vários países (Itália, França, Polônia, Hungria, Tchecoslováquia) chegaram ao fim.
A comunidade que os sem teto construíram em um terreno abandonado da periferia de Milão. |
Tal fenômeno aconteceu mesmo que na França os Socialistas e Comunistas somassem, juntos, 50% dos votos e na Itália esse percentual dos dois partidos chegasse a 40%.
No entanto, em 1948, na Itália, uma nova eleição deu ao PDC (Partido Democrata-Cristão) uma grande votação (48,5%), obtida graças ao apoio maciço da Igreja Católica, da Máfia, da Burguesia italiana (industriais, banqueiros, latifundiários) e do governo dos EUA (incluindo a CIA, que injetou milhões de dólares na campanha da PDC).
E o novo governo conservador do PDC passou a criticar e a censurar os filmes Neo-Realistas, afirmando que os mesmos mostravam uma imagem muito negativa da Itália. Inclusive, censores a serviço da Igreja Católica passaram a controlar a produção cinematográfica italiana, desestimulando a produção de filmes Neorrealistas.
Totó tenta ensinar algo para a miserável população da comunidade, que os sem teto criaram, até mesmo na hora de dar nome às 'ruas'. |
Até mesmo o clássico ‘Ladrões de Bicicleta’ chegou a ter o seu visto de exportação negado pelo conservador governo italiano. Mesmo assim ele chegou a fazer muito sucesso no exterior e conquistou o Oscar de Melhor Filme estrangeiro em 1951.
Para tirar espaço dos filmes Neo-Realistas, o governo do PDC também estimulou a importação de filmes de Hollywood, que mostravam uma visão idealizada da realidade, e não exigia que um percentual mínimo de filmes italianos fosse exibido nas salas comerciais, tal como determinava a lei da época.
É neste contexto que os cineastas ligados ao Neo-Realismo passaram a realizar filmes com um teor de crítica social mais ameno, passando a se utilizar do humor, da comédia, ou explorando a beleza física de atrizes como Silvana Mangano (‘Arroz Amargo’) e Lucia Bosé ('Páscoa de Sangue') em suas produções. Estes dois filmes, aliás, foram dirigidos por Giuseppe De Santis, um dos criadores do Neo-Realismo.
Totó organiza a vida da população na comunidade dos sem teto. |
A trama do filme!
E até mesmo cineastas como Vittorio De Sica passaram a fazer isso, o que se comprova por este ótimo ‘Milagre em Milão’. A história do filme gira em torno de um conflito envolvendo a posse de uma propriedade na periferia de Milão, na qual se descobriu água e petróleo.
A propriedade havia sido ocupada por algumas centenas de miseráveis sem teto que são liderados por um jovem bom e ingênuo chamado Totó.
Este gostava de dar ‘Bom Dia’ para cumprimentar a todos, incluindo pessoas que ele não conhecia, sendo que era considerado um ‘retardado’ em função disso.
Totó havia sido encontrado, ainda bebê, por uma mulher idosa em meio a sua plantação de couve (qualquer referência a Moisés não é mera coincidência). Ela cuidou dele, que se tornou uma criança amável, mas morreu quando ele ainda era muito novo. Com isso, Totó foi levado a um orfanato, de onde saiu quando completou 18 anos.
Totó ajuda as pessoas, de todas as maneiras. Seu espírito solidário contagia os moradores. |
Totó tenta organizar o local, dando nome às ruas (cujos nomes têm um caráter educativo) e determinando onde cada um iria morar.
Os moradores do local criam um forte senso de coletividade, lutando e colaborando entre si, com a exceção de apenas um morador, que age de forma individualista e que considera os moradores dali como sendo um bando de vagabundos. Mas, apesar disso, ali temos todos os tipos de pessoas: generosas, arrogantes, ambiciosas.
Enquanto isso, Totó procura ajudar a todos, tentando amenizar o sofrimento dos seus moradores e procurando espalhar otimismo e esperança entre eles. Ele consegue impedir, inclusive, que um dos moradores chegue a cometer suicídio.
Porém, ao descobrirem água e, depois, petróleo na localidade, isso acaba por atiçar o interesse do Sr. Mobbi, um rico capitalista da cidade, que acaba comprando a propriedade.
O capitalista comanda a força policial que tenta expulsar os sem teto do terreno que ocupam. Qualquer semelhança com a situação atual não é mera coincidência. |
Porém, não muito tempo depois, o mesmo Mobbi decide pedir ao governo que expulse os moradores da propriedade. E a Polícia se mobiliza para isso. Totó e uma comissão de moradores vai conversar com Mobbi, que os trata muito bem e os convence de que eles irão continuar morando no mesmo lugar. Mas enquanto conversa com os mesmos, a Polícia já está sendo mobilizada para expulsar os sem teto da propriedade.
Assim, quando chegam à propriedade, Totó e os demais percebem que foram enganados por Mobbi, que manda a Polícia reprimir e expulsar os sem teto do local.
Afinal, no Capitalismo, o Estado está a serviço da Burguesia, certo?
Mesmo assim, os moradores decidem enfrentar a Polícia, que arremessa bombas de gás e joga água sobre os sem-teto.
Obs2: Qualquer semelhança com as operações de retirada de moradores sem-teto nas cidades brasileiras não é mera coincidência, embora no Brasil as ações de despejo sejam bem mais brutais e violentas do que essa que é mostrada em ‘Milagre em Milão’.
A falecida mãe de Totó entrega uma 'pomba mágica' para o mesmo. E essa 'pomba' transformará em realidade os desejos dos sem teto. |
Assim, quando a Polícia joga água nos moradores, Totó pede por guarda-chuvas e todos ali passam a possuir os mesmos. Ele também usa deste poder para transformar um Policial em General, fazendo com que este desistisse de obrigar os moradores a sair da propriedade. Quando os oficiais tentam ordenar um ataque contra os moradores, Totó faz com que eles cantem com uma voz bem aguda, expondo os mesmos ao ridículo.
Quando os sem teto percebem quais são os poderes de Totó, no entanto, eles demonstram possuir apenas preocupações de caráter individualista, pensando apenas em seus desejos e necessidades estritamente pessoais. Uma moradora pede por belas roupas, outros querem ficar milionários (ou seja, virar capitalistas) e pedem milhões de Liras, outro pede para aumentar de tamanho, outros pedem por eletrodomésticos (uma enceradeira, por exemplo, embora o piso dos barracos seja de madeira ou terra).
Assim, nenhum dos sem teto pensa em pedir um título de propriedade que os transformasse em donos do local. Nenhum dos seus pedidos é feito pensando nos interesses da comunidade.
Quando a Polícia joga água sobre os moradores, Totó usa a 'pomba mágica' para dar guarda-chuvas para todos. |
Logo, eles são trabalhadores miseráveis, mas já assimilaram as ideias, os valores e o comportamento da Burguesia, pensando apenas em seus próprios interesses. Eles deixaram de pensar e de agir coletivamente.
O Capitalismo triunfou e o Socialismo fracassou, pelo menos na Itália, essa é a mensagem deste belo e clássico filme de Vittorio De Sica, pois os valores burgueses triunfaram na sociedade italiana do Pós-Guerra.
Outra interpretação para isso, talvez seja que esta foi uma maneira que Vittorio De Sica usou para criticar o fato de que, após 1947, o público italiano não se interessava mais em assistir às produções Neo-Realistas, preferindo assistir aos filmes de Hollywood, que atraíam um público imenso para as salas de cinema. E com isso os valores capitalistas e individualistas do ‘American Way of Life’ acabaram se impondo na Itália.
Afinal, como diziam Lênin e Mussolini, ‘O Cinema é a arte mais forte’ e poderia influenciar o modo de pensar e de agir das pessoas, até porque, naquele momento histórico (década de 1950) não existia Televisão de massa. A TV já existia, mas era acessível a poucas pessoas, mesmo nos países europeus. Na Europa, a massificação da TV é um fenômeno que irá ocorrer apenas na década de 1960.
O policial tenta dar a ordem de ataque, mas não consegue, pois Totó usou a 'pomba mágica' para fazê-lo cantar. |
Já as produções de Hollywood mostravam um mundo de luxo e fantasia, a vida dos ricos, tal como acontecia na era fascista, que produziu um grande número de filmes do estilo chamado de ‘Telefone Bianchi’, que mostravam a vida dos italianos ricos, da Burguesia e da Nobreza. A expressão 'Telefone Branco' para estes filmes deve-se ao fato de que esta era a cor dos aparelhos de telefones da Burguesia e da Nobreza italianas, enquanto que os telefones das camadas populares eram pretos.
Assim, passou a existir um total contraste entre as produções Neo-Realistas e o gosto dominante do povo italiano, ocorrendo uma verdadeira ruptura entre eles. E é justamente isso que parece ter sido objeto de crítica por parte de Vittorio De Sica nesta produção.
É como se, em ‘Milagre em Milão’, De Sica estivesse antecipando, em algumas décadas, aquela famosa frase do carnavalesco Joãozinho Trinta: ‘O povo gosta de luxo. Quem gosta de miséria é intelectual’.
Essa mudança no gosto do público italiano, que abandonou os filmes Neorrealistas, junto com a política de censura e perseguição que estes passaram a sofrer, mostram que o projeto Neo-Realista de contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, ou seja, Socialista, acabou fracassando.
Logo, junto com a derrota política e eleitoral dos Socialistas e, em especial, dos Comunistas (PCI), tivemos o esvaziamento e o esgotamento do Neorrealismo. Afinal, havia uma forte conexão entre ambos (PCI e Neo-Realismo).
E isso abriu caminho para o surgimento do ‘Neo-Realismo Rosa’ e para produções que até mostravam a exploração e a pobreza existentes na Itália, mas que valorizavam o humor e ou exaltavam muito mais a beleza das atrizes do que os problemas sociais da Itália, como já foi comentado aqui.
Em ‘Milagro em Milão’, De Sica acabou também por sugerir que dentro dos estreitos limites do Capitalismo Liberal que se impõem ao país a partir de 1948 simplesmente não haveria soluções para os principais problemas que afetavam o povo italiano. Tal ideia também estará presente em seu filme posterior, o belíssimo ‘Umberto D’.
As soluções, portanto, somente poderiam vir do Céu, de algum poder Divino. Mesmo assim, Vittorio De Sica finaliza o seu filme com uma mensagem de esperança, o que é uma característica marcante da sua obra.
Obs3: Quando vemos os sem teto viajando em direção ao Céu, em vassouras, vemos de onde Spielberg tirou aquela famosa cena do filme ‘E.T.’, que foi um dos seus maiores sucessos.
Os sem teto viajam, em suas vassouras, rumo ao Céu. Qualquer semelhança com a cena de 'E.T', de Spielberg, não é mera coincidência. |
Título: ‘Milagro a Milano’ (Milagre em Milão);
Diretor: Vittorio De Sica;
Roteiro: Vittorio De Sica, Cesare Zavattini, Mario Chiari, Adolfo Franci, Suso Cecchi D'Amico; Baseado em livro de Cesare Zavattini;
País de Produção: Itália;
Ano de Produção: 1950;
Gênero: Comédia Dramática;
Duração: 97 minutos;
Fotografia: G.R. Aldo;
Música: Alessandro Cicognini;
Elenco: Francesco Golisano (Totó); Paolo Stoppa (Rappi); Guglielmo Barnabò (Mobbi); Emma Grammatica (Lolotta, mãe adotiva de Totó); Brunella Bobo (Edvige); Arturo Bragaglia (Alfredo); Erminio Spalla (Gaetano).
Prêmios: Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1951.
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