'Sbatti il Mostro in Prima Pagina': Marco Bellocchio mostra de que maneira a Grande Mídia manipula e distorce os fatos!
Filme denuncia as manipulações da Grande Mídia!
"Sbatti il Mostro in Prima Pagina" ('Golpeando o Monstro na Primeira Página'; 1972), de Marco Bellocchio, é um filme bastante didático sobre como funciona, de fato, a Grande Mídia em uma sociedade capitalista.
Nas grandes empresas de comunicação, os interesses de classe dos donos dos jornais, revistas, redes de rádio e TV, entre outras mídias, são muito mais importantes do que informar corretamente a população. Com isso, eles acabam deixando de lado aquela que seria a missão fundamental de uma imprensa séria e honesta, que é a de informar corretamente população, sem quaisquer distorções, mentiras, falsidades ou invenções.
No Brasil, em especial, não faltam veículos de comunicação que funcionam exatamente como o 'Il Giornale' ('O Jornal'), que é mostrado no filme de Bellocchio. Quem assistir ao filme e, depois, ler alguma revista semanal de informação ou algum dos grandes jornais diários brasileiros acabará comprovando esse fato.
Desta maneira, em 1972, o excepcional e extremamente talentoso cineasta italiano Marco Bellocchio fez aquele que é, provavelmente, o mais revelador e devastador filme a respeito de como a Grande Mídia produz, manipula, distorce e divulga as notícias, com o objetivo de se transformar em protagonista dos acontecimentos.
Atuando desta maneira, os proprietários dos grandes veículos de comunicação podem atingir os seus objetivos, que são de natureza comercial, sim, mas que também possuem um caráter nitidamente classista, e tal postura reflete a sua visão política e ideológica a respeito da realidade.
Logo, Bellocchio demonstra, de forma clara, a maneira como um grande veículo de comunicação funciona e que o papel do mesmo vai muito além de se limitar a divulgar os acontecimentos, desempenhando também a função de participar do seu processo de criação, visando manipular a população, de maneira a poder conduzi-la na direção que interessa aos seus proprietários, que são, é claro, membros da Grande Burguesia.
O filme de Bellocchio é uma verdadeira e fantástica aula, bem didática, de como esse processo de manipulação se desenvolve.
Até mesmo Joseph Goebbels é citado no filme, na sua famosa afirmação (feita por Bizanti, diretor de redação do 'Il Giornale') de que as massas são, em outras palavras, muito burras e é preciso se utilizar de uma linguagem bem simples, a fim de que elas possam compreender a mensagem que lhes é transmitida pela imprensa/mídia.
A trama do filme!
A história do filme se desenvolve em torno do estupro e assassinato de uma jovem estudante (Maria Grazia Martin) que é filha de um respeitado professor universitário (Italo Martini), sendo que o trágico fato ocorre faltando poucos dias para a realização de uma importante eleição, que será disputada pelos mais importantes partidos políticos da época (Partido Comunista Italiano, Democracia-Cristã, Partido Socialista Italiano, Social-Democrata, Liberal, entre outros).
A partir daí veremos como este fato será devidamente manipulado e distorcido pelo diretor de redação, Bizanti, de um grande jornal diário ('Il Giornale') a fim de tentar responsabilizar um militante de Extrema-Esquerda pela morte e estupro da jovem e, desta maneira, poder beneficiar aos partidos mais conservadores, principalmente ao Democrata-Cristão.
O protagonista do filme, Bizanti, é interpretado de forma brilhante, como sempre, pelo absurdamente fantástico ator Gian Maria Volontè, que dá outra aula de interpretação, o que era comum nos filmes dos quais participava.
Para confirmar isso, sugiro que vocês também assistam a outros filmes fundamentais desta verdadeira 'Era de Ouro' do Cinema Italiano, como foram os casos de 'Investigação sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita' (de Elio Petri, 1970), 'A Classe Operária Vai ao Paraíso' (de Elio Petri, 1971) e 'O Caso Mattei' (de Francesco Rosi, 1972).
Assim, Bizanti é um inescrupuloso diretor de redação de um jornal de grande circulação (500.000 exemplares diários), chamado 'Il Giornale' ('O Jornal'). No caso do filme de Bellocchio, vemos como funciona, no dia-a-dia, este jornal, nos mínimos detalhes, desde a apuração do fato, passando pela maneira como este é manipulado, distorcido e, finalmente, divulgado para o grande público, para as massas.
E fica claro que estas massas são inteiramente desinformadas de como tudo isso se dá, demonstrando não suspeitar o quanto este processo é viciado, e está intimamente conectado aos interesses políticos, econômicos, ideológicos e comerciais de setores poderosos do Estado e da Sociedade (os donos do jornal; o governo; a polícia; partidos políticos conservadores).
Há uma cena, inclusive, na qual Bizanti crítica e ridiculariza a sua própria esposa, que ao vê-lo comentando sobre a morte de uma estudante, adolescente, na TV, faz inúmeros elogios ao marido.
No entanto, o próprio Bizanti a deixa perplexa quando fala que o discurso dele, feito para o grande público, é totalmente diferente da sua verdadeira forma de pensar. Fica claro que ele considera que a sua esposa é mais uma integrante das massas desinformadas que não fazem a menor ideia de como se dá o processo de produção da notícia, ou seja, ela não passa de uma 'midiota'.
Bellocchio também deixa claro que tudo isso está intimamente relacionado a um processo político, social e histórico que já foi devidamente analisado e desvendado por Marx, Engels, Lenin, Gramsci, entre outros teóricos de grande importância, que é a Luta de Classes.
No filme, há um diálogo antológico entre Bizanti e Roveda, o melhor jornalista do diário, que confronta o diretor de redação a respeito de toda a manipulação que o jornal está fazendo a respeito da morte da adolescente (Maria Grazia) e no qual essa conexão entre a maneira como as notícias são produzidas e divulgadas e os conflitos de classe existentes na sociedade estão intimamente relacionados.
Em outro momento do filme também temos um diálogo no qual o dono do jornal, Montelli, e Bizanti também conversam a respeito de como se poderia manipular a morte da jovem, Maria Grazia, de maneira a beneficiar os Democrata-Cristãos e a prejudicar a Esquerda nas eleições que estão prestes a se realizar.
Bellocchio também estabelece, em seu genial filme, uma clara conexão entre a realidade política e social italiana do período, na qual os conflitos de rua entre membros de grupos de Extrema-Direita, de Extrema-Esquerda e a polícia italiana eram praticamente diários, e a maneira como a Grande Imprensa os relatava, sempre procurando tomar partido dos interesses do proprietário do jornal, ou seja, da classe capitalista.
Em uma cena na qual jovens militantes de extrema-esquerda atacaram a sede do 'Il Giornale', Bizanti se preocupa muito mais em tirar uma foto do fato e que será publicada pelo jornal no dia seguinte, mostrando fogo no local, do que em apagar o mesmo.
Entre o final dos anos 1960 e início da década de 1980 (1969-1981), a Itália viveu um período extremamente turbulento, durante o qual todas as forças políticas e sociais organizadas entraram em choque diariamente, por meio de greves, protestos, manifestações, atos terroristas.
E no filme de Bellocchio, como o 'Il Giornale' adotava posições políticas conservadoras, de maneira a agradar às classes média e burguesa do país, o mesmo sempre adotava um viés bem mais direitista na forma de divulgar as notícias, distorcendo-as na cara-dura.
Extremamente didática, neste sentido, é uma cena na qual Bizanti dá uma bronca em Roveda, pois este havia escrito uma matéria a respeito de um trabalhador, desempregado e pai de cinco filhos, que comete suicídio.
Bizanti mostra a Roveda como é possível divulgar um fato tão trágico quanto esse de maneira a não assustar aos leitores conservadores e de classe média do 'Il Giornale', dando uma verdadeira aula de como é possível manipular o processo de criação e de divulgação da notícia.
Também fica nítida, no filme de Bellocchio, a maneira como o diretor de Redação, Bizanti, procura usar e manipular uma mulher, Rita Zigai, que enviou uma carta para 'Il Giornale' dizendo que tinha informações a respeito da morte de Maria Grazia.
Bizanti não se faz de rogado e vai até a casa de Rita, entrando na mesma sem nem ao menos pedir licença, agindo de forma arrogante com a velha mulher. Ele procura obter mais informações, com Rita, a respeito do caso da morte da jovem, mas ela resiste a falar qualquer coisa, lhe dizendo que havia se arrependido de ter enviado a carta.
Com o desenvolvimento da trama, Bizanti fica sabendo que Rita é amiga de militantes de Extrema-Esquerda, incluindo Mario Boni, um jovem com quem Maria Grazia teve um namoro rápido (hoje o termo usado seria 'ficar'). Bizanti usa de seus contatos com o Comissário de Polícia, que manda prender e torturar Mario Boni, para que o mesmo confesse o crime que resultou na morte de Maria Grazia.
Gian Maria Volontè tem mais uma brilhante atuação neste excepcional filme de Marco Bellocchio. Sua interpretação é digna de aplausos exaustivos, sem dúvida alguma. |
E é claro que o manipulador e inescrupuloso Bizanti faz o maior sensacionalismo, mesmo com Rita tendo se recusado a lhe passar maiores informações sobre o caso. Indignada, esta vai até o jornal para tirar satisfações com Bizanti, mas fica arrasada quando o mesmo lê um falso depoimento, que obteve junto à Polícia, no qual Mario Boni teria feito inúmeros ataques pessoais à Rita, ridicularizando-a totalmente.
Mario Boni havia prestado um depoimento à Polícia, no qual foi barbaramente espancado, e no mesmo disse que, na hora da morte de Maria Grazia, ele estava participando de uma reunião junto com outros integrantes do movimento do qual participava intensamente, o 'Lotta Continua'.
Obs1: O 'Lotta Continua' não é invenção de Bellocchio. Ele foi o maior e mais ativo movimento político de Extrema-Esquerda que atuou na Itália a partir do final dos anos 1960, tendo chegado a possuir cerca de 20 mil militantes. Seus integrantes conseguiram ter uma relevante penetração junto aos movimentos sociais do período (estudantil, operário, intelectuais) mas eles se recusavam a participar das eleições.
Assim, Rita acaba sendo manipulada por Bizanti e concorda em prestar um falso depoimento à Polícia, no qual procura culpar Mario Boni pela morte de Maria Grazia, dizendo que o mesmo não estava na reunião do movimento no momento em que a jovem havia sido morta.
Daí, é claro que Bizanti irá se aproveitar desta situação, que foi criada por ele mesmo, e com a conivência da Polícia, para fazer uma manchete bombástica dizendo que um integrante de um movimento de Extrema-Esquerda era o responsável pela morte de Maria Grazia, de maneira a beneficiar os Democratas-Cristãos nas eleições que se aproximam.
Desta maneira, Bizanti encarrega todos os principais jornalistas do diário para investigar o suposto envolvimento de Mario Boni e da Extrema-Esquerda na morte de Maria Grazia.
Assim, Boni já foi devidamente condenado pela imprensa. Logo, resta apenas encontrar, ou fabricar, se necessário for (e muitas vezes é...), os fatos que comprovem que ele cometeu o crime. Apenas um jornalista mais jovem, Roveda, é que irá seguir por um caminho diferente, procurando descobrir o que realmente aconteceu.
Outra cena que mostra o caráter desonesto da Grande Mídia se dá quando Bizanti envia Roveda para uma entrevista coletiva dos integrantes do 'Lotta Continua' com a missão de fazer uma pergunta provocativa, a fim de fazer com que o jornalista fosse agredido fisicamente pelos integrantes do movimento.
Na redação do 'Il Giornale', no entanto, a matéria dizendo que o jornalista havia sido agredido já estava pronta, antes mesmo da entrevista ser realizada, mas Bizanti teve que jogá-la fora, para a sua imensa decepção, pois Roveda o informou que não havia sido agredido, mas apenas expulso da entrevista.
Ingegner Montelli é o dono do 'Il Giornale' e manda Bizanti esconder a verdade da população, ou seja, que Mario Boni não era o culpado pelo estupro e morte de Maria Grazia. |
Percebendo que estava sendo manipulado, Roveda vai até a casa do porteiro da escola, a fim de obter informações a respeito de Maria Grazia, pois ele havia sido informado por alguns estudantes de que ela era bastante namoradeira e tinha um caso com Mario Boni, mas que este não a havia matado.
No local, Roveda descobre a verdadeira obsessão que o porteiro da escola, onde Maria Grazia estudava, possuía pela jovem e percebe que ele pode ser o assassino da mesma. Porém, ao levar as informações que descobrira para Bizanti, esse o demite do jornal.
Mas o próprio Bizanti decide ir até a casa do porteiro e consegue fazer com que o mesmo confesse que era apaixonado por Maria Grazia e que havia cometido o crime, contando em detalhes como é que o mesmo havia acontecido. Assim, confirma-se a inocência de Mario Boni. Mas, ao consultar o dono do jornal, Ingegner Montelli, a respeito da sua descoberta, Bizanti e o proprietário da publicação decidem esconder a verdade da população.
E no fim vemos a cena de um esgoto a céu aberto... Qualquer semelhança deste com a Grande Mídia não é mera coincidência.
A última cena do filme resume o que Marco Bellocchio pensa a respeito da Grande Mídia, ou seja, que esta é um verdadeiro esgoto a céu aberto. |
Obs2: É inacreditável, mas um filme tão fundamental quanto esse é muito difícil de ser encontrado, mesmo na Internet. É necessário pesquisar bastante para poder assisti-lo. Será que nenhuma empresa se dispõe a lançá-lo em DVD, não?
Informações Adicionais!
Título: Sbatti il Mostro in Prima Pagina ('Golpeando o Monstro na Primeira Página');
Diretor: Marco Bellocchio;
Roteiro: Sergio Donati e Goffredo Fofi;
Duração: 83 minutos;
Ano de Produção: 1972;
País de Produção: Itália e França;
Elenco: Gian Maria Volontè (Bizanti); Fabio Garriba (Roveda); Laura Betti (Rita Zigai); Jacques Herlin (Lauri); John Steiner (Ingegner Montelli; Publisher do jornal); Jean Rougeul (Editor-Chefe do Jornal); Carlo Tatò (Esposa de Bizanti); Corrado Solari (Mario Boni); Enrico DiMarco (Comissário de Polícia); Silvia Kramar (Maria Grazia Martini); Massimo Patrone (Porteiro da Escola); Gianni Solaro (Italo Martini).
Obs3: A respeito do filme 'Sbatti il Mostro in Prima Pagina', Marco Bellocchio disse o seguinte: "Observando meus filmes, parece-me que todos correspondem a essa ideia de cinema em que a forma prevalece sobre a mensagem, com uma única exceção: Sbatti il Mostro in Prima Pagina (1972), um filme que surgiu num momento peculiar da minha vida, durante o qual o ativismo político privado tornou-se público. 'Sbatti il Mostro...' se ressente dos efeitos do meu engajamento e também da colaboração com Goffredo Fofi, que, diferentemente de mim, foi um intelectual que tomou partido e usou politicamente a sua produção cultural'.
Prudenzi, Angela e Resegotti, Elisa. Cinema Político Italiano – Anos 60 e 70. Cosac Naify. São Paulo. Págs. 146/147. 2006.
Links:
Marco Bellocchio e a sua obra:
http://inkiostrando.blogspot.com.br/2011/10/tysw-marco-bellocchio.html
A obra Bellocchio a partir de três filmes:
http://www.contracampo.com.br/72/tresfilmesbellocchio.htm
Nuclei Armati Proletari (NAP):
http://glianni70.it/nuclei-armati-proletari-%E2%88%92-italia/
O Lotta Continua:
http://ojs.fe.unicamp.br/ged/histedbr/article/view/6524
A Esquerda italiana nos anos 1970:
https://www.diplomatique.org.br/print.php?tipo=ac&id=2317
Será que o Gramsci estava errado? |
A autonomia operária na Itália a partir do final dos anos 1960:
https://www.nodo50.org/insurgentes/textos/autonomia/06autonomiaitalia.htm
Enrigo Berlinguer e o Compromisso Histórico:
http://www.acessa.com/gramsci/?id=681&page=visualizar
Nas trilhas íngremes da luta armada:
https://diplomatique.org.br/nas-trilhas-ingremes-da-luta-armada/
Informações sobre o filme:
http://www.imdb.com/title/tt0070641/?ref_=nm_flmg_dr_37
A Itália nos anos 70:
http://blogln.ning.com/profiles/blogs/a-italia-nos-anos-setenta-1
Comentários
Postar um comentário