"Buongiorno, Notte": Marco Bellocchio mostra porque as 'Brigadas Vermelhas' foram derrotadas! - Marcos Doniseti!
"Buongiorno, Notte" ('Bom Dia, Noite'; 2003), dirigido por Marco Bellocchio, é um ótimo filme e que mostra o rapto e morte de Aldo Moro (líder da Democracia-Cristã italiana) por integrantes das 'Brigate Rosse', retratando também o complexo cenário político e social italiano da década de 1970, quando movimentos extremistas (de Direita e de Esquerda) usaram da violência para atingir os seus objetivos: implantar uma Ditadura Militar e promover uma Revolução Socialista, respectivamente. | |
O Contexto Histórico da Itália nos anos 1970!
Esse ótimo filme de Marco Bellocchio mostra o caso do sequestro de Aldo Moro pelo grupo de extrema-esquerda "Brigadas Vermelhas" ("Brigate Rosse" em italiano) em Março de 1978 e que, após 55 dias de cativeiro, acabou sendo executado pelos membros do grupo.
Portanto, este é um filme cuja história nós já conhecemos de antemão, inclusive também sabemos qual será o final da mesma, embora Bellocchio tenha modificado o mesmo, o que provocou muita polêmica na Itália na época do lançamento. Mas vale a pena vê-lo, pois é uma bela aula de cinema.
Para se compreender esse bonito drama político de Bellocchio, que filmou vários outros filmes de caráter explicitamente político, como é o caso de "Sbatti il Mostro in Prima Pagina", no qual crítica a Grande Mídia, e de "La Cina è Vicina", sobre a influência do maoísmo em setores da juventude italiana nos anos 1960, é necessário, no entanto, saber um pouco mais sobre a complexa realidade política italiana da década de 1970.
Aldo Moro tinha sido Primeiro-Ministro italiano em várias oportunidades (ocupou o cargo por cinco vezes entre o final de 1963 e o início de 1976) e era um dos principais líderes da DC (Democracia-Cristã, um partido conservador que era fortemente ligado à Igreja Católica e que governava o país desde 1945). A DC liderava uma coalizão de forças políticas conservadoras e, ao lado do PCI (Partido Comunista Italiano), era o maior partido político da Itália.
O fato do PCI ter se transformado no maior partido comunista do Ocidente do Pós-Guerra, mantendo uma sólida base eleitoral até a sua dissolução (em 1991) fez com que as forças políticas conservadoras fizessem de tudo para impedir que os comunistas chegasse ao poder por vias eleitorais.
Essa ascensão dos comunistas ao governo quase aconteceu nos primeiros anos da década de 1970, quando o secretário-geral do PCI, Enrico Berlinguer, adotou a política do chamado 'Compromisso Histórico', por meio da qual ele buscou uma aproximação com os Democratas-Cristãos.
O objetivo era formar um governo de União Nacional que fosse liderado pelos dois partidos, os maiores da Itália, a fim de se evitar um Golpe de Estado e a implantação de uma Ditadura Militar no país, tal como havia ocorrido no Chile (Setembro de 1973) e na Grécia (Novembro de 1973).
A Itália estava dividida politicamente desde o final da Segunda Guerra Mundial e sucessivos governos subiam ao poder para, logo depois, serem derrubados, enfrentando uma situação de crônica e permanente instabilidade política, embora tais governos sempre fossem comandados pela Democracia-Cristã.
Além disso, desde 1969 o país estava sendo assolado por inúmeros atentados terroristas, sequestros e ações violentas por parte de vários grupos extremistas, tanto de Direita, como de Esquerda, sendo que as "Brigate Rosse" eram o principal grupo extremista de Esquerda.
A extrema-direita, com apoio do serviço secreto italiano, da CIA, de lideranças conservadoras da Democracia Cristã, apostou na chamada 'Estratégia de Tensão' (criada pela 'Operação Gladio'), ou seja, na radicalização das lutas políticas e ideológicas, a fim de desestabilizar o país e justificar a instalação de uma Ditadura.
Inclusive, Um processo semelhante a esse ocorreu no Brasil, no governo Jango, entre 1961-1964, e o resultado disso foi o Golpe de 64 e a Ditadura Militar de 21 anos.
A instabilidade política crônica na Itália levou ao início do que se chamou de 'Compromisso Histórico' entre o PCI e a DC. Esta linha política foi defendida, inicialmente, pelo secretário-geral do PCI, Enrico Berlinguer, a partir de 1973.
Aldo Moro (era o líder da Democracia-Cristã que tinha posições mais progressistas dentro do partido, que era bastante conservador) acabou aceitando firmar tal compromisso.
Porém, tal política de Moro não era aceito pelos grupos e lideranças mais direitistas dentro da Democracia Cristã e que também contava com a oposição da Igreja Católica, dos governos dos EUA e, até, da URSS (pois o PCI seguia uma estratégia política muito diferente daquela que era preconizada pelo Partido Comunista soviético).
Chiara e Primo, mais um dos raptores de Aldo Moro. |
O que criou as condições para o 'Compromisso Histórico' foi o fato de que, nos primeiros anos da década de 1970, quando Enrico Berlinguer liderou o PCI, ocorreu um expressivo crescimento eleitoral dos comunistas.
Neste período também tivemos uma perda significativa de votos de partidos aliados dos Democratas-Cristãos, principalmente do PSI (Partido Socialista Italiano), que conquistou apenas 9,6% dos votos em 1976, seu pior resultado desde 1946 (quando conquistou 20,7% dos votos, o segundo mais votado).
Anteriormente, a Democracia-Cristã conseguia uma votação suficiente para, junto com outras forças políticas conservadoras, formar governos com apoio majoritário no Parlamento.
Assim, na eleição para o Parlamento italiano de 1976 o PCI cresceu bastante e conquistou 34,4% dos votos (contra 27,1% em 1972; em 1963 havia conquistado 25,3% e em 1968 obteve 26,9%), alcançando a maior votação da sua história.
Esse crescimento significativo da votação do PCI acabou impedindo que a DC pudesse formar um governo majoritário, embora ela tivesse sido o partido mais votado, conquistando os mesmos 38,7% dos votos de 1972 (desde a eleição de 1963 que a votação da DC oscilava na faixa de 38% a 39%, mostrando uma notável estabilidade).
O principal objetivo desse 'Compromisso Histórico', entre os dois principais partidos políticos italianos, era o de manter a democracia no país, ameaçada cada vez mais pelas ações dos grupos extremistas (de Direita e de Esquerda) e pela adoção da 'Estratégia da Tensão', criada por meio da 'Operação Gladio'.
A 'Operação Gladio' foi criada pela CIA e pela OTAN em 1958 e contava com a participação dos serviços secretos italianos e da Loja Maçônica P2.
Ela tinha como objetivo promover uma 'Estratégia de Tensão', por meio de um processo de desestabilização (via atentados terroristas e outros atos violentos) que tinha como meta inviabilizar a ascensão dos fortes partidos de Esquerda aos governos europeus ocidentais, principalmente na Itália (PCI), França (PCF) e Espanha (PCE), três países que possuíam fortes, populares e organizados Partidos Comunistas.
O verdadeiro Aldo Moro, no cativeiro. |
Enrico Berlinguer imaginava que, com a política de 'Compromisso Histórico', a Itália poderia passar a ter um governo que unisse as três grandes forças políticas do país, que eram os Democratas-Cristãos, os Comunistas e os Socialistas (estes participavam do governo italiano, junto com a DC, desde 1963), dando um mínimo de estabilidade política à nação italiana, o que permitiria aprofundar a Democracia e futuramente, conduzir o país, pacificamente e por meio de sucessivas reformas, a um Socialismo Democrático.
Foi nesse contexto político complexo que as 'Brigate Rosse' decidiram sequestrar Aldo Moro, o que fizeram em 16/03/1978.
Aldo Moro, inclusive, quando do momento do rapto, estava se dirigindo ao Parlamento italiano, no qual iria aprovar a proposta de formação de um governo que reuniria, pela primeira vez na história italiana, o PCI e a DC, os dois maiores partidos políticos do país. Até então o PCI dava sustentação ao governo liderado pela DC mas não ocupava cargos no mesmo.
Na visão dos líderes Brigadistas, o sequestro de Aldo Moro, além de inviabilizar o novo governo, do qual fariam parte o PCI e a DC, desencadearia algum tipo de levante popular, revolucionário, contra o governo e o Estado italianos. Eles acreditavam que Moro simbolizava um Estado que era odiado pelos italianos e que, ao sequestrá-lo, eles seriam vistos como heróis pela população.
É verdade que, na Itália dos anos 1970, existiam fortes e organizados movimentos operários e populares que mobilizavam milhares de pessoas que lutavam pela construção de uma sociedade mais justa e igualitária (Socialista), e que contribuíram decisivamente para algumas conquistas importantes, como a aprovação da lei do divórcio (em 1970), mesmo enfrentando uma grande oposição da Igreja Católica.
E as Brigadas Vermelhas e outras organizações de Extrema-Esquerda ('Lotta Continua', 'Prima Linea', etc), que se recusavam a participar das eleições, tinham apoio de uma parcela significativa destes movimentos sociais (operário, estudantil, de intelectuais), mas os mesmos eram muito fragmentados politicamente, existindo dezenas de organizações, cada uma delas seguindo uma linha política própria.
Inclusive, uma destas organizações acaba sendo citada no filme de Bellocchio, que é a 'Lotta Continua', quando Chiara vai até uma banca de jornais e compra exemplares do 'Corriere Della Sera' (conservador), do 'l'Unità' (jornal do PCI) e do 'Lotta Continua' (Extrema-Esquerda; tal movimento chegou a possuir mais de 20 mil militantes ativos) a fim de levar os mesmos para os raptores de Moro, que não saem do apartamento que é usado como cativeiro.
Porém, o efeito político do sequestro foi exatamente o contrário do que os brigadistas previam (e isso é mostrado com clareza no filme de Bellocchio), ou seja, a decisão das 'Brigadas Vermelhas' (ou BR, de 'Brigate Rosse', Brigadas Vermelhas em italiano) de sequestrar e, depois, executar Aldo Moro transformou este num mártir e jogou a imensa maioria dos italianos totalmente contra os brigadistas.
A morte de cinco seguranças de Aldo Moro pelos Brigadistas, durante a ação de sequestro, também foi fundamental para jogar os italianos contra a 'Brigate Rosse' e, junto com a execução de Aldo Moro, criou as condições para que o Estado italiano promovesse uma brutal repressão contra os movimentos extremistas nos anos seguintes, inclusive com o uso de torturas em larga escala, o que levou à destruição dos mesmos, incluindo as 'Brigate Rosse'.
Aldo Moro (interpretado por Roberto Herlitzka, em excelente atuação) dorme no cativeiro. |
O livro de Anna Laura Braghetti, o filme de Bellocchio e as 'Brigate Rosse'!
O filme de Marco Bellocchio é baseado em um livro ("Il Prigioniero") escrito pela brigadista (e sequestradora de Aldo Moro) Anna Laura Braghetti, obra essa que contou com a participação da jornalista Paola Tavella na condição de coautora.
Porém, o cineasta italiano deixou claro que a história que mostra em seu filme é uma adaptação livre, ou seja, ele se baseou no livro, mas não foi totalmente fiel ao conteúdo do mesmo, promovendo várias mudanças em relação ao livro de Anna Laura-Paola.
Anna Laura Braghetti tinha entrado para as 'Brigate Rosse' em 1977, poucos meses antes do sequestro de Aldo Moro. Logo, ela era uma militante da organização há pouco tempo. Nos anos seguintes ela continuou participando de ações violentas promovidas pelas 'Brigate Rosse'.
Anna Laura foi presa em 1980 e acabou condenada à prisão perpétua. Em 1987 ela rompeu com as 'Brigate Rosse' e em 1994 ela obteve um regime de semiliberdade. E no ano de 1998 ela escreveu e publicou o livro 'Il Prigioniero', junto com a jornalista Paola Tavella, no qual o filme de Bellocchio se inspirou.
A trama do filme!
O filme trata do sequestro de Aldo Moro pelas 'Brigate Rosse', que se desenvolveu entre Março e Maio de 1978, ação essa que contou com a participação de Anna Laura Braghetti, e a maioria das cenas se passa no apartamento que funciona como o cativeiro no qual o líder da Democracia-Cristã italiana ficou até ser morto pelos brigadistas.
Bellocchio também mostra como a sociedade italiana reagiu ao sequestro e de que maneira Anna Laura foi, gradualmente, se convencendo de que aquela ação tinha sido um grave erro estratégico das 'Brigate Rosse' e que a mesma seria imensamente prejudicial para a organização.
O cineasta também acaba se incluindo na história do filme, por meio de um personagem (Enzo) que atua como o seu alter ego. Enzo deixa claro a sua condenação do sequestro de Moro e defende que a libertação do líder político deveria ter sido a solução que as 'Brigate Rosse' deveriam ter adotado.
A se destacar no filme a bela atuação da também bonita atriz Maya Sansa, que interpreta Chiara, uma brigadista que participa do sequestro e que era a única a sair, diariamente, do apartamento que era usado como cativeiro e para onde Aldo Moro foi levado, pois ela trabalhava numa biblioteca do governo italiano e comprava os jornais para os sequestradores que viviam no cativeiro, onde Aldo Moro ficou por 55 dias.
Desta maneira, Chiara era a única integrante do grupo de sequestradores que conversava com outras pessoas, que tinha contato com a realidade exterior e percebeu, claramente, que aquela ideia de que os brigadistas seriam vistos como heróis pelo povo italiano ao sequestrar Aldo Moro havia sido totalmente desmentida pelos fatos.
Com isso, ela se dá conta do brutal erro estratégico que as 'Brigate Rosse' haviam cometido ao sequestrar Aldo Moro e percebe que a violência que eles estavam usando para promover a Revolução Socialista no país estava totalmente equivocada, pois em vez de aproximá-los do povo, acabou fazendo o oposto, afastando a população dos brigadistas.
Desta forma, progressivamente Chiara vai mudando a sua forma de pensar e, no final, ela se coloca totalmente contra a ideia de executar Moro, mas a liderança da organização já havia tomado essa decisão, que se revelou fatal para a mesma.
Aliás, é muito interessante a maneira pela qual o diretor Bellocchio mostra essa gradual mudança de postura de Chiara. Inicialmente, quando o sequestro aconteceu ela chegou a vibrar, mas depois de algum tempo, a sua convivência com Aldo Moro e a forte reação negativa dos italianos ao sequestro a levaram a perceber que aquela ação tinha sido um grave erro.
Além disso, as cartas que Aldo Moro envia para as lideranças políticas, para o Papa e, principalmente, para os seus familiares, acabam por emocionar Chiara.
Com isso, ela passou a se lembrar de cartas que membros da Resistência italiana (os 'Partigiani' ou Guerrilheiros) escreveram para seus familiares pouco antes de serem executados pelos Fascistas. Desta maneira, ela acaba percebendo que as ações dos "Brigadistas" não eram diferentes, na essência, daquelas dos Fascistas.
E daí vemos, em vários momentos, cenas nas quais a realidade e a ficção acabam se misturando, pois Chiara passa a imaginar e a sonhar com possibilidade de se promover a libertação de Aldo Moro, evitando que ele fosse assassinado.
Logo, em seu belo filme, Bellocchio usa de vários elementos para mostrar essa mudança, na forma de pensar e de agir, pela qual Chiara está passando, incluindo a memória histórica, os sonhos e a imaginação, misturando a realidade com a ficção. O fato concreto é que um diretor comum jamais faria isso, mas Bellocchio é um excepcional cineasta, um Mestre do Cinema, e não um diretor igual a tantos outros.
Nós também vemos um personagem (Enzo) que é um jovem que trabalha com Chiara na biblioteca do ministério e que demonstra interesse por ela. Enzo está escrevendo um roteiro de uma peça de teatro (que também se chama 'Buongiorno, Notte') no qual o sequestro de Aldo Moro conta com a participação de uma jovem que possui características (de aparência e personalidade) muito semelhantes às de Chiara.
Enzo conta para Chiara que a jovem da sua peça está cada vez mais duvidando de que aquela ação (de sequestrar Aldo Moro) fosse correta. E é exatamente isso que está acontecendo com a própria Chiara, que é uma das sequestradoras de Aldo Moro, embora Enzo não tenha conhecimento disso. Então, existe uma conexão direta entre a peça escrita por Enzo e a trama do filme.
Muito provavelmente isso acontece porque o personagem de Enzo é uma espécie de alterego do próprio Bellocchio, que demonstra no filme (no final, em especial) que gostaria que o sequestro de Aldo Moro tivesse terminado de outra forma, com o mesmo sendo libertado e voltando a viver com a sua família. Bellocchio também disse (em uma entrevista) que, de fato, Enzo poderia ser a consciência da própria Chiara, que falava com ela e lhe mostrava como ela deveria agir.
O próprio Moro diz para os brigadistas no cativeiro que ele era o representante de um partido que tinha, sim, bases populares e que as pessoas não queriam fazer nenhuma revolução, mas ter uma vida boa, calma e tranquila. E Aldo Moro também diz, acertadamente, que a sua morte irá transformá-lo em um mártir e que a mesma será usada para justificar uma política que irá levar ao extermínio das 'Brigate Rosse' por parte do Estado italiano.
Aliás, foi exatamente isso que aconteceu nos anos seguintes, principalmente em 1979 e 1980.
Também é interessante notar como Bellocchio mostra os brigadistas no filme.
Em nenhum momento eles são mostrados como seres irracionais, brutais ou como verdadeiros animais estúpidos e desprovidos de lógica, algo que é muito comum nos filmes ianques quando se trata de mostrar guerrilheiros ou terroristas. Nos estúpidos filmes comerciais dos EUA nunca ficamos sabendo o que motiva os 'terroristas' a agir daquela forma ou quais são as suas razões. Já no filme de Bellocchio, isso não acontece.
Neste filme de Bellocchio, os brigadistas são pessoas comuns, que usam terno e gravata, fazem o sinal da cruz antes de comer, sendo indivíduos com os quais qualquer um de nós poderia cruzar na ruas e dizer 'bom dia' para elas sem jamais suspeitarmos que seriam membros de uma organização extremista e revolucionária de Esquerda.
Chiara sai da casa e tem contato frequente, diariamente, com o 'mundo lá fora' (afinal ela tem um emprego) e em nenhum momento qualquer pessoa suspeita que ela estaria envolvida no sequestro de Aldo Moro ou que pudesse ser uma 'brigadista'. No fim das contas quem acaba sendo preso é o colega de trabalho dela, que inclusive é um crítico das "Brigate Rosse", dizendo que os integrantes da organização são 'loucos e estúpidos'.
Os membros das "Brigate Rosse" são, de fato, líderes políticos que fizeram uma análise equivocada da realidade política do país e, com isso, acabaram adotando uma estratégia de luta que fracassou e que acabou resultando no extermínio das "Brigadas Vermelhas" pelo aparato repressivo do Estado italiano.
Também fica claro o quanto os brigadistas são rígidos no aspecto ideológico e não conseguem compreender, quando assistem ao noticiário da TV a respeito do sequestro de Aldo Moro, porque a população não os apoia. Eles procuram se apegar a qualquer sinal de que os italianos estariam os apoiando de forma intensa, mesmo que isso não passe de uma ilusão.
Uma cena que demonstra isso claramente é quando Chiara conta aos demais brigadistas que picharam o símbolo das 'Brigadas Vermelhas' em um elevador e tal fato foi interpretado pelos sequestradores de Aldo Moro de que o funcionalismo público como um todo estaria ao lado deles, o que não acontecia, é claro. Aliás, tal cena, da pichação no elevador, foi usada por Bellocchio para mostrar justamente o contrário, ou seja, que a quase totalidade do povo italiano estava contra as 'Brigate Rosse', pois quando as pessoas iam entrar no elevador e viam o símbolo das 'Brigadas Vermelhas' pichado eles ficavam assustadas e se afastavam, demonstrando o seu repúdio aos extremistas. Os integrantes das 'Brigate Rosse' também pensam que são os legítimos representantes do proletariado e em uma cena um dos 'Brigadistas' chega a dizer, para Aldo Moro, que ele representava 'todo o proletariado', o que não acontecia, é claro, até porque a imensa maioria dos operários italianos da época votava nos Comunistas (PCI) e nos Democratas Cristãos (DC).
Ele também diz que a morte de Aldo Moro será fruto da 'justiça proletária', embora os brigadistas, de fato, não quisessem eliminar o presidente da Democracia Cristã.
Inclusive, Bellocchio deixa bem claro no filme o quanto, na sua visão, a estratégia de luta violenta das "Brigate Rosse" estava equivocada. E isso é mostrado por meio da personagem Maya.
No filme, temos uma cena na qual Chiara está junto com os seus parentes, participando de uma grande festa em família. Muitos dos seus parentes, e tal como os seus pais, eram antigos 'partisans', ou seja, guerrilheiros comunistas que lutaram contra o Fascismo e que participaram da luta para derrubar o governo ditatorial de Benito Mussolini e contra as forças nazistas alemãs que ocuparam o Norte da Itália entre Setembro de 1943 e Abril de 1945.
Obs1: Neste período da história italiana (Setembro de 1943 a Abril de 1945) tivemos a instalação na região norte do país da chamada 'República de Saló' ou 'República Social Italiana', que foi um regime fascista fantoche controlado pelos nazistas alemães.
Em uma outra cena, durante um determinado momento do encontro festivo com seus familiares, e do qual Chiara participa, eles começam a cantar 'Bella Ciao', uma canção popular de origem italiana que simboliza a luta dos trabalhadores do mundo todo por justiça, liberdade e igualdade e que virou símbolo dos partisans italianos na luta anti-fascista durante a Segunda Guerra Mundial.
E ao ver tal cena (com todos cantando), Chiara fica pensativa, como que percebendo que os Partisans venceram porque tinham o povo italiano ao seu lado. No entanto, ela era uma brigadista e ninguém da sua família sabia disso e tampouco tinham conhecimento de que ela estava envolvida no sequestro de Aldo Moro. Então, é como se ela pensasse: 'Sem ter o povo ao nosso lado, como poderemos vencer?'.
Aliás, o filme de Bellocchio também mostra que, embora fosse Aldo Moro o sequestrado, ele tinha mais contato com o mundo externo do que os próprios sequestradores (com a exceção de Chiara, é claro), pois enquanto o líder democrata-cristão escrevia sucessivas cartas para familiares, amigos e lideranças políticas, os brigadistas eram obrigados a ficar presos no cativeiro e não podiam ter contato com outras pessoas fora dali.
Apenas um dos sequestradores (Ernesto) ousou desafiar essa decisão e saiu do cativeiro para se encontrar com a sua namorada, embora o líder do grupo afirmasse que aquele não era um comportamento de um revolucionário. Mesmo assim, Ernesto saiu, encontrou a namorada e a família e, assim, pôde constatar, tal como dizia Chiara, que quase todos os italianos estavam contra eles e a favor de Aldo Moro.
E isso é algo que o filme de Bellocchio não deixa margem para dúvidas: Os brigadistas fazem uma análise errada da situação política italiana e adotam uma estratégia de luta equivocada, o que gera o seu isolamento político, afastando-os do povo italiano.
E isso, por sua vez, ´permitirá que o Estado italiano, controlado pelas forças conservadoras e direitistas, promova um verdadeiro massacre contra as Brigate Rosse e os demais grupos da Extrema Esquerda italiana, o que os levará à derrota.
Exemplo desse equívoco é que eles acreditavam que o sequestro de Moro os transformaria em heróis aos olhos da população italiana, sendo que aconteceu exatamente o contrário, até porque toda a imprensa da época, até a ligada ao PCI (que publicava o jornal 'l'Unità'), condenou o sequestro e execução de Aldo Moro.
Até porque, o governo italiano e a imprensa deram muito destaque ao fato de que a ação do sequestro de Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas resultou na morte de cinco seguranças, fato este que jogou quase todo o povo italiano contra a ação do grupo extremista.
O filme de Bellocchio mostra, e muito bem, como esse sentimento de solidariedade com as famílias dos seguranças assassinados foi importante para jogar o povo italiano contra os sequestradores e que, para isso, a mídia teve uma atuação fundamental.
O filme também mostra que os brigadistas permitiram a Moro escrever inúmeras cartas aos governantes italianos, e até ao Papa, para convencer os líderes do país a negociar a sua libertação, em troca da concessão da liberdade para alguns prisioneiros políticos.
Mas isso não aconteceu, o que levantou a suspeita (que é certeza para muitos, inclusive para mim) de que, de fato, os líderes conservadores e direitistas da Democracia Cristã queriam se livrar de Moro, que era um defensor do diálogo com os comunistas (o que era algo bastante polêmico em plena era da Guerra Fria) e da formação de um governo junto com o PCI, política esta que eles rejeitavam.
Aliás, além dos líderes conservadores Democracia Cristã, a Máfia, a Igreja Católica, o governo dos EUA e o governo da URSS também eram contrários ao acordo entre a DC e o PCI. O governo soviético combatia a estratégia do 'eurocomunismo' que era defendida pelos PCs da Itália, França e Espanha e que tinha na figura do grande líder do PCI, Enrico Berlinguer, a sua principal liderança política e teórica no continente europeu.
Berlinguer deixou bem claro nas comemorações do 60o. aniversário da Revolução Russa em Moscou, em 1977, que defendia um Socialismo Democrático, no qual todas as liberdades individuais e coletivas fossem respeitadas, bem como existisse na sociedade socialista uma clara pluralidade política, partidária, ideológica e cultural.
Berlinguer também foi um pioneiro na crítica ao consumismo desenfreado que caracteriza os países capitalistas desenvolvidos, fazendo a defesa, já naquela época, da preservação ambiental e de um desenvolvimento sustentável.
Tal política entrava em choque frontal com o regime Stalinista autoritário, de partido único e burocratizado que vigorava na URSS e nos demais países do bloco dito Socialista, cujo modelo de desenvolvimento restringia as liberdades individuais e desprezava as questões ambientais.
Aldo Moro (interpretado por Roberto Herlitzka), no cativeiro, conversando com um dos seus raptores. |
Portanto, a lista de interessados em sacrificar Aldo Moro e, assim, inviabilizar o 'Compromisso Histórico', que resultaria na formação de um governo unindo DC e PCI, o que era defendido por Aldo Moro e Enrico Berlinguer, era muito extensa, variada e bastante poderosa, para dizer o mínimo.
Assim, a recusa do governo italiano em negociar a libertação de Aldo Moro acabou praticamente forçando as Brigadas Vermelhas a matá-lo, o que vai resultar na adoção de leis anti-terroristas que literalmente deram ao Estado italiano o direito de fazer o que fosse necessário para destruir as 'Brigate Rosse' e demais grupos de Extrema-Esquerda.
E assim foi feito. Aliás, dentro da Itália o maior beneficiado com a morte de Moro foi o seu adversário dentro da Democracia Cristã, o direitista Giulio Andreotti (então Primeiro Ministro italiano), que, anos depois, foi acusado de envolvimento com a Máfia e de corrupção, bem como de envolvimento na morte de Aldo Moro.
Os erros das Brigadas Vermelhas também foram inegáveis.
Assim, o fato de que cinco seguranças de Moro foram mortos na ação de seu rapto pelas 'Brigate Rosse' também foi largamente explorado pela imprensa, que não cansava de lembrar que eles tinham família, algo que, inegavelmente, comove muitas pessoas (a imensa maioria, pelo menos, independente da sua postura política e ideológica).
Desta forma, os brigadistas passaram a ser vistos, pela imensa maioria dos italianos, como assassinos frios e sanguinários por muitos italianos. No filme, como já comentei, a personagem Chiara é a única que sai do apartamento, para trabalhar, e percebe tudo isso claramente. Os demais brigadistas somente tem contato com a realidade por meio da leitura dos jornais e da TV.
Chiara participa de um casamento com familiares que são ligados historicamente ao PCI e que lutaram na Resistência contra o Nazifascismo. |
Aliás, algo semelhante aconteceu aqui no Brasil, na época da luta armada dos grupos guerrilheiros contra a Ditadura Militar. Eles nunca conseguiram apoio popular para a sua luta, a Ditadura Militar fez uma repressão brutal e uma propaganda intensa (que contou com a participação e o apoio descarado da Grande Mídia, que os chamava de terroristas e de assassinos que matavam famílias inteiras.
E isso resultou no total isolamento dos guerrilheiros em relação à população, o que os levou a ser massacrados pela Ditadura Militar. E tal como ocorreu na Itália, as torturas também foram largamente empregadas para derrotar os grupos de guerrilha brasileiros.
Enfim, o filme de Bellocchio é altamente recomendável, sendo conduzido com leveza, inteligência e sensibilidade, virtudes que somente grandes artistas possuem e o mesmo estimula as pessoas a se informarem melhor e com mais profundidade a respeito do complexo cenário político italiano da época, que foi exatamente o que eu fiz, aliás.
E mesmo que você não se interesse tanto por política italiana, o filme de Bellocchio vale a pena ser visto pois, acima de tudo, é cinema de alta qualidade, feito por um verdadeiro Mestre.
Obs2: Nem todos concordam com essa visão a respeito do sequestro de Moro que é mostrada no filme de Bellocchio.
Bernardo Bertolucci foi um dos que criticou o filme, dizendo que o mesmo passa a ideia de que apenas as Brigadas Vermelhas teriam sido as responsáveis pela morte de Moro. Bem, o filme mostra os brigadistas pedindo a Moro que escrevesse mais cartas para os governantes do país, a fim de que pudessem negociar a sua libertação, mas Moro responde que já tinha escrito cartas para todos, até para o Papa.
Assim, entendo que fica clara no filme a vontade das "Brigate Rosse" de não matar Moro, bem como das lideranças políticas direitistas italianas de se livrar deste líder que insistia em dialogar com o PCI. Assim, os conservadores italianos permitiram que ele fosse morto pela "Brigadas Vermelhas". Então, eu não concordo com a crítica de Bertolucci ao filme, não.
Obs3: Bruto Barreto, que fez o péssimo filme 'O que é isso, Companheiro?', falseando a história e os seu personagens, deveria assistir a este belo filme de Bellocchio e, desta forma, ele poderia aprender como se faz um filme político sem distorcer os fatos e sem descaracterizar os personagens, transformando-os em crianças imaturas ou em monstros irracionais e trogloditas, que foi o que ele fez com os raptores do embaixador americano, Charles B. Elbrick, que eram integrantes do MR-8 e da ALN (liderada por Carlos Marighella).
Líderes da Democracia Cristã italiana, que não fizeram muito esforço para conseguir a libertação de Aldo Moro, pois discordavam da política de 'Compromisso Histórico', que Moro apoiava. |
Informações Adicionais!
Título: Buongiornno, Notte (Bom Dia, Noite);
Diretor: Marco Bellocchio;
Roteiro: Marco Bellocchio e Daniela Ceselli; O roteiro foi baseado no livro "Il Prigioniero", de autoria de Anna Laura Braghetti (única sequestradora no cativeiro de Aldo Moro) e da jornalista Paola Tavella;
País de Produção: Itália; Ano de Produção: 2003;
Duração: 102 minutos; Gênero: Drama Político;
Música: Riccardo Giagni; Fotografia: Pasquale Mari;
Elenco: Maya Sansa (Chiara), Roberto Herlitzka (Aldo Moro), Luigi Lo Cascio (Mariano), Paolo Briguglia (Enzo), Giulio Bosetti (Papa Paulo VI); Pier Giorgio Bellocchio (Ernesto), Giovanni Calcagno (Primo), Roberta Spagnuolo (Sandra), Giulio Bosetti (Papa Paulo VI), Alberto Cracco (médium), Antônio De Matteo (irmão de Chiara), Fabio Camilli (voz de Aldo Moro).
Links:
Votação do PCI na Itália:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Partido_Comunista_Italiano
Votação da DC na Itália:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Democracia_Cristã_(Itália)
Votação do PSI na Itália:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Partido_Socialista_Italiano
Texto analisando o filme 'Bom Dia, Noite':
http://www.contracampo.com.br/70/bomdianoite.htm
Biografia resumida de Anna Laura Braghetti:
https://www.babelio.com/auteur/Anna-Laura-Braghetti/161724
Enrigo Berlinguer e o Compromisso Histórico:
http://www.acessa.com/gramsci/?id=681&page=visualizar
A Esquerda italiana nos anos 1970:
https://www.diplomatique.org.br/print.php?tipo=ac&id=2317
Aldo Moro e o Cinema Italiano:
http://cinemaitalianorao.blogspot.com.br/2015/03/aldo-moro-e-o-cinema-italiano.html
A autonomia operária na Itália a partir do final dos anos 1960:
https://www.nodo50.org/insurgentes/textos/autonomia/06autonomiaitalia.htm
O que é Operaísmo italiano:
http://uninomade.net/tenda/o-que-e-operaismo-italiano/
Carlos A. Lungarzo: Estado italiano usou da tortura contra as Brigadas Vermelhas:
http://www.institutojoaogoulart.org.br/noticia.php?id=4342
A atriz Maya Sansa conversa com o diretor Marco Bellocchio. |
Guilherme Scalzilli: O mistério de Aldo Moro:
http://guilhermescalzilli.blogspot.com.br/2009/03/o-misterio-de-aldo-moro.html
Ex-funcionário do Departamento de Estado dos EUA admite que Moro foi sacrificado:
http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/1581425/US-envoy-admits-role-in-Aldo-Moro-killing.html
Enrico Berlinguer e o Eurocomunismo como caminho para se construir o Socialismo Democrático:
http://www.lainsignia.org/2006/diciembre/cul_060.htm (1)
http://www.lainsignia.org/2007/enero/cul_002.htm (2)
http://www.lainsignia.org/2007/enero/cul_007.htm (3)
As contribuições teóricas do PCI:
http://www.cartacapital.com.br/cultura/sugestoes-de-bravo-para-ler-10
Giulio Andreotti:
http://www.publico.pt/mundo/noticia/morreu-giulio-andreotti-o-divino-1593481
PCI: Partido Comunista Italiano:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Partido_Comunista_Italiano
A Operação Gladio e a morte de Aldo Moro:
http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2011/01/operacao-gladio-porque-o-governo.html
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