'Godard Seul Le Cinéma': Sem precisar mentir, Cyril Leuthy mostra um Godard genial, complexo, solitário, que se reinventou sempre e que nunca abriu mão de sua arte!

'Godard Seul Le Cinéma': Sem precisar mentir, Cyril Leuthy mostra um Godard genial, complexo, solitário, que se reinventou sempre e que nunca abriu mão de sua arte!  - Marcos Doniseti!

'Godard Seul Le Cinema' (2022): Ótimo filme de Cyril Leuthy sobre Godard  chega ao Brasil, sendo exibido no Festival 'É Tudo Verdade'. Espera-se que o filme seja exibido, no Brasil, em algum cinema de arte ou alternativo em breve, pois isso ajudará a que muitos possam conhecer a trajetória de um dos mais importantes cineastas da história e sobre o qual sabe-se tão pouco. E também seria importante que fosse feito o lançamento do DVD do filme.

'Godard Seul Le Cinéma' (Cyril Leuthy; 2022; 100 minutos)!

Godard - O cineasta que morava no Cinema!

Sinopse!

Este documentário, que foi dirigido e roteirizado por Cyril Leuthy, mostra a trajetória de Jean-Luc Godard, um dos mais importantes e influentes cineastas da história e que realizou um filme ('À Bout de Souffle'; 1959) que mudou a história da Sétima Arte, dividindo-a em antes e depois. 

Se o revolucionário 'A Bout de Souffle' tivesse sido o único filme da vida de Godard, então ele já seria suficiente para deixar o seu nome marcado na história do Cinema. Mas a obra de Godard foi muito além de 'Acossado', o que este filme de Leuthy deixa bem claro.

O filme mostra a evolução familiar, pessoal e artística de Godard, passando por todas as fases, dos anos de formação cinematográfica (na Cinemateca e nos cineclubes de Paris), a partir do final da década de 1940 e que mostra o início da sua amizade com os outros membros da 'Gangue Schérer' (Truffaut, Chabrol, Rivette e Rohmer), até o seu último longa metragem, que foi "Le Livre D'Image".

Assim, vemos o seu trabalho junto com os outros membros da 'Gangue Schérer', como um dos críticos da 'Cahiers du Cinéma', que desejavam revolucionar o cinema francês, os anos iniciais da Nouvelle Vague, o grande impacto do revolucionário 'À Bout de Souffle' ('Acossado'; 1959).

Godard, nome que se tornou sinônimo de um cinema marcado pela liberdade criativa e inovação permanente. Do uso dos jump cuts, em 'Acossado' (1959), até o uso da tecnologia 3D, em 'Adeus à Linguagem' (2014), Godard nunca se acomodou, nunca ficou restrito a uma 'zona de conforto', como fazem tantos outros cineastas talentosos, mas que não se arriscam tanto.

Também vemos o incômodo de Godard em ser tratado, cada vez mais, durante a década de 1960, como uma estrela da mídia e uma celebridade, e até como um guru, algo que ele nunca desejou.

Este foi um dos fatores que o levou, por volta de 1967-1968, a querer se isolar de tudo e de quase todos com quem convivia, rompendo inteiramente com o cinema da sua primeira fase (Nouvelle Vague, entre 1959 e 1968), inclusive com ele passando a repudiar tais filmes durante um certo período de tempo.

Isso foi algo que ele reviu, mais adiante, após o fim do período maoísta, que durou até 1972. Inclusive, em vários filmes dos anos 1980 (casos de 'Prénom Carmen', de 1983, e de 'Détective', de 1987) veremos Godard fazer referências aos seus filmes dos anos 1960, mostrando que já havia se reconciliado com eles. Ele se deu conta de que estes filmes faziam parte da sua história e do próprio cinema.

Assim, também está presente neste belo filme de Cyril Leuthy, é claro, a complexa transição de Godard para o período militante marcado pelo Maoísmo (1966-1968), pela criação, com Jean-Pierre Gorin, do Grupo Dziga Vertov (1968-1972), seus casamentos frustrados com Anna Karina e Anne Wiazemsky, sua relação de uma vida toda com Anne-Marie Miéville (viveram e trabalharam juntos por 50 anos) e suas permanentes reinvenções como pessoa e como cineasta. 

Para ajudar a traçar um retrato minimamente honesto de Godard, Cyril também fez uso de entrevistas e depoimentos antigos e atuais de inúmeras pessoas que trabalharam com Godard, incluindo técnicos (Romain Goupil, Gérard Martin), atrizes (Hanna Schygulla, Macha Méril, Marina Vlady, Nathalie Baye...), atores (Belmondo, Bourseiller...). 

Também temos a participação de estudiosos de sua obra, incluindo o historiador Antoine de Baecque, que é autor de uma imensa biografia de Godard, com suas quase mil páginas e que, infelizmente, nunca foi traduzida e lançada no Brasil. Aliás, o mesmo vale para as biografias escritas por Colin MacCabe e Richard Brody.

Macha Méril era uma jovem atriz quando trabalhou com Godard em 'Uma Mulher Casada' (1964).

Estes depoimentos mostram o quando Godard foi uma pessoa complexa e absolutamente singular, que tinha dificuldades para se relacionar com os outros devido à sua recusa em abrir mão de suas ideias e convicções, incluindo o seu projeto de uma vida toda, que era o de promover uma permanente revolução da linguagem cinematográfica. Godard sempre viu o cinema como a mais importante forma de arte.

Desta maneira, o filme mostra que Godard sempre procurou inovar, incluindo, por exemplo, novas tecnologias em seu trabalho (o vídeo, as câmeras digitais, o 3D), o que ele fez até o fim de sua vida, sendo um pioneiro no uso destas tecnologias. Ele até ajudou a desenvolver um novo modelo de câmera portátil de 35 mm.

Assim, no filme, temos um retrato humanizado e honesto de Godard e que deixa claro não apenas a sua importância como cineasta e artista, mas o quanto é difícil reduzi-lo a uma única categoria. 

O filme mostra que Godard não foi nem um Deus e nem um Monstro (como o invejoso Hazanavicius tentou mostrar em seu patético e mentiroso sobre o cineasta), mas um artista genial, revolucionário e inovador, bem como um ser humano único e complexo e que mudou muito durante a sua existência. 

Em '2 ou 3 Coisas Que Eu Sei Sobre Ela' temos uma cena na qual o filho (Christophe) pergunta para a mãe (Juliette) o que era Linguagem e a mãe responde que 'Linguagem é onde o ser humano mora', citando uma frade de Heidegger.

No caso de Godard a linguagem, para ele, significava o mesmo que Cinema. Afinal, era por meio do cinema que Godard se comunicava com as pessoas e com o mundo. O cinema era o local onde Godard morava.

For Ever Godard!

O Filme - Um retrato honesto e plural de Godard!

Jean-Luc Godard no início da sua carreira. Os óculos escuros eram uma marca registrada e foram uma parte essencial da imagem que ele criou e projetou para o público.

Demorou, mas até que enfim um talentoso e honesto cineasta (Cyril Leuthy) realizou um filme sobre Godard que não está repleto de mentiras abjetas e imundas sobre este que foi um dos mais brilhantes e inovadores artistas das ultimas décadas.

O filme anterior sobre Godard que chegou ao grande público foi o repugnante 'Le Redoutable/O Formidável' (2017), do mentiroso, manipulador e invejoso Michel Hazanavicius. O abjeto filme de Hazanavicius é um verdadeiro festival de mentiras imundas do início ao fim. Nele, são inventadas situações que nunca aconteceram, enquanto que outras são inteiramente deturpadas.

Um exemplo disso são as cenas da briga no carro (que nunca aconteceu) quando Godard e os demais (Anne Wiazemsky, Michel Cournot...) voltam do Festival de Cannes para a capital, Paris, durante o Maio de 68 francês, bem como a participação de Godard nas manifestações deste período, mostrando ele como sendo grosseiro com os que protestavam, o que é uma deslavada mentira, como a própria Anne Wiazemsky deixa claro em seu livro 'Um Ano Depois'. 

Em 'Le Redoutable' também temos outras situações que foram deturpadas totalmente pelo mentiroso do Hazanavicius, incluindo como se desenvolveu a participação de Godard no Grupo Dziga Vertov, no qual trabalhou junto com Jean-Pierre Gorin, Jean-Henri Roger, Daniel Cohn-Bendit, entre outros, com o objetivo de criar filmes revolucionários.

Paul-Jean Godard, pai de Jean-Luc, conta que o filho sempre se comportou conforme as próprias ideias e valores, algo que Godard fará durante a sua trajetória de cineasta.

Assim, o filme de Hazanavicius tem a característica de não contar com qualquer informação correta ou verdadeira a respeito de Godard (com exceção dos óculos que ele vivia quebrando quando participava das manifestações durante o Maio de 68).

Desta maneira, o patético 'Le Redoutable' termina sem que o espectador fique sabendo qualquer coisa real, correta e honesta sobre o verdadeiro Godard, que é muito mais complexo do que o personagem inventado por Hazanavicius e que existe apenas na mente invejosa deste. 

Enquanto isso, este bonito e correto filme de Cyril Leuthy mostra a trajetória de Godard desde o período de formação familiar e passa por todas as fases da sua inovadora e revolucionária carreira, e para isso ele não precisou mentir e nem deturpar os acontecimentos. Bastou ele mostrar o que foi que Godard fez e falou, sem deturpar absolutamente nada.

Assim, o filme mostra o quanto Godard sempre teve dificuldades para se relacionar com os outros, devido ao fato de ser uma pessoa absolutamente única, singular, totalmente diferente daquelas com as quais ele convivia em sua vida e em seu trabalho e que isso acontecia, também, porque ele não abria das suas convicções como cineasta e artista, recusando-se a permitir que a sua obra fosse corrompida por interesses escusos (comerciais, políticos...).

Talvez o único ponto negativo do filme tenha sido o pouco espaço dado, bem como a ausência de maiores informações, sobre o período final da carreira de Godard, ou seja, sobre os últimos 27 anos (1995-2022). Mas isso talvez se justifique porque estes foram filmes assistidos, infelizmente, por um público reduzido. Eles foram filmes que mereciam uma repercussão maior do que aquela que tiveram.

Véronique Godard, a irmã mais nova de Godard, também tem um depoimento exigido no documentário. Seu filho, Paul Grivas, trabalhou com Godard nos últimos filmes deste.

Godard fez vários, reflexivos e bonitos Filmes Ensaio neste último período de sua vida, sendo que eles retratam criticamente o mundo contemporâneo, ao qual ele via com uma mistura de desespero (devido à situação global, com inúmeras guerras, aumento da miséria, do racismo, da devastação ambiental...) e de esperança (acreditando que seria possível mudar os rumos da humanidade). 

Em vários destes filmes temos o uso da técnica da colagem, criada pelos Cubistas e que Godard utilizou em grande parte da sua obra.

Entre estes filmes, nós temos "For Ever Mozart" (1996), "Éloge de l'amour" (2001), 'Notre Musique' (2004), 'Filme Socialismo' (2010), 'Adeus a Linguagem' (2014) e 'Le Livre D'Image' (2018). Deste último ainda vemos algumas cenas no encerramento do filme. Mas entendo que faltou um comentário mais aprofundado que explicasse algo sobre os temas principais destes filmes. 

Um ponto importante do filme de Cyril Leuthy é o destaque que ele dá para uma obra monumental de Godard, mas que foi vista e é conhecida por poucas pessoas, que foram as "Histoire (s) du Cinéma" (1989-1998), oito episódios produzidos para a TV e que é uma das mais brilhantes e relevantes da trajetória do cineasta e da história do Cinema. 

Nela, Godard conectou a sua história, com a história do Cinema e com os grandes acontecimentos históricos do século XX (as duas Guerras Mundiais e as Revoluções, por exemplo).

Como alguém que já leu duas grandes biografias de Godard (escritas por Colin MacCabe e Richard Brody), bem como vários outros livros (sobre o Grupo Dziga Vertov, por exemplo) e também muitos textos sobre a obra e a vida de Godard, posso assegurar que não há mentiras no filme de Cyril Leuthy, o que já é uma gigantesca vantagem sobre o filme desonesto e mentiroso de Hazanavicius.

Marina Vlady conta como foi trabalhar com Godard em '2 ou 3 Coisas Que Eu Sei Sobre Ela' (1966).

O que temos, no filme de Cyril Leuthy, são visões diferentes e conflitantes sobre o homem Godard e a sua obra, o que é algo absolutamente normal e que é necessário para se estabelecer um debate de alto nível sobre uma pessoa e um artista tão complexo e singular quanto foi Godard.

Este caráter complexo e singular de sua personalidade se refletiu em sua vasta, rica, diversificada e complexa obra, que reúne cerca de 140 filmes e que acaba englobando trailers, vídeos, curtas, médias e longas metragens. Afinal, é literalmente impossível separar Godard e a sua obra. Vida e obra, no caso de Godard, são inseparáveis.

'Godard Seul Le Cinéma' está dividido em 4 capítulos, como se fosse um livro, tal como o próprio Godard fez em muitos dos seus filmes, incluindo o 'Viver a Vida' (1962), e também em seu último longa metragem, que foi o belo "Le Livre D'Image" (2018), pelo qual o cineasta recebeu uma Palma de Ouro Especial no Festival de Cannes de 2018.

'Godard Seul Le Cinéma' também conta com importantes e significativos depoimentos e comentários de vários críticos e estudiosos da sua obra de (Alain Bergala, Antoine de Baecque, David Faroult, Dominique Paini, Thierry Jousse), bem como de atores e atrizes que trabalharam com ele (Julie Delpy, Macha Méril, Nathalie Baye, Hanna Schygulla, Marina Vlady, Christophe Bourseiller). 

O filme também conta com a participação de outros que, em algum momento, também trabalharam com Godard, incluindo o montador Romain Goupil, que em 1967 era um jovem esquerdista que diz que detestou 'A Chinesa' (1967), Daniel Cohn-Bendit, que trabalhou com Godard e Jean-Pierre Gorin em 'Vento do Leste' (1970).

'Vento do Leste' foi um filme no qual se tentou levar adiante um projeto de criação coletiva, mas que não deu certo em função dos conflitos que ocorreram entre os membros dos vários grupos esquerdistas que participaram do projeto (maoístas, comunistas tradicionais e anarquistas libertários). Daí, Godard e Gorin assumiram o controle do projeto e finalizaram o filme.

'Vento do Leste' também contou com a participação de Glauber Rocha (de quem Godard foi um grande amigo) e de Gérard Martin, que trabalhou com Godard e Anne-Marie Miéville nos anos 1970 e que diz o quanto era difícil trabalhar com os dois, devido às suas exigências e ambições como artistas.

Daniel Cohn-Bendit, líder estudantil durante o Maio de 68 francês, também prestou depoimento para o filme. Bendit chegou a integrar o Grupo Dziga Vertov e, depois, tornou-se amigo próximo de Godard.

Também temos, no filme, imagens raras de arquivo que mostram comentários do pai de Godard (Paul-Jean Godard) e de sua irmã caçula (Véronique Godard) sobre o filho rebelde que, em sua juventude e graças à sua paixão pelo Cinema, chegou a vender edições raras da valiosa biblioteca da família para financiar o primeiro filme de Jacques Rivette ('Le Quadrille'; 1950), do qual Godard foi o produtor e o ator principal.

E também vemos comentários, feitos em entrevistas antigas, de Jean-Paul Belmondo, Anna Karina e Johnny Hallyday (astro do rock francês que atuou em 'Détective', filme de 1987). Também vemos comentários antigos de Jean-Pierre Gorin sobre o período em que trabalhou com Godard e, também, de algumas atrizes que interpretam falas e textos de autoria de Anna Karina e de Anne Wiazemsky sobre o relacionamento delas com o cineasta. 

Assim, as ex-esposas de Godard também tem voz no filme, mesmo quando fazem críticas a certos comportamentos de Godard. 

Desta maneira, o filme mostra as inúmeras facetas e as diferentes personalidades que Godard encarnou durante seus quase 92 anos de vida. Não se trata de um visão única e tampouco unilateral, mas de múltiplas visões sendo expressas e que ajudam a compreender um pouco melhor sobre quem foi, afinal, Jean-Luc Godard.

Este é um procedimento muito mais honesto e correto do que aquele que foi adotado pelo mentiroso Hazanavicius em seu patético e desonesto filme. Diferente do que vimos no filme de Hazanavicius, neste belo 'Godard Seul Le Cinéma' não vemos ninguém, nem mesmo o diretor e roteirista do filme, tentando impor uma visão única a respeito de Godard.

No filme de Cyril Leuthy os acontecimentos da vida e obra de Godard são contados e mostrados por inúmeros sujeitos que, em diferentes momentos, trabalharam e conviveram com Godard. E é claro que ele, Godard, também se expressa, por meio de entrevistas e declarações antigas.

Antoine de Baecque, autor de uma das principais biografias de Godard, comenta sobre a trajetória do revolucionário cineasta.

Como foi anunciado, o filme procura mostrar o quanto Godard foi profundamente humano, com virtudes e defeitos, acertos e erros (como todos os seres humanos), mas fica evidente que ele nunca abriu mão de sua liberdade criativa e da sua independência como um artista que procurou, sempre, do início ao fim, inovar e revolucionar a linguagem cinematográfica.

A entrevista feita com Belmondo, pouco depois do lançamento de 'À Bout de Souffle' ('Acossado'; 1959), confirma aquilo que muitos sabem, ou seja, que Godard não usou de um roteiro (aquele que tinha sido sido escrito ele jogou fora, pois detestou o mesmo) e que escrevia as cenas e diálogos do filme faltando pouco tempo para filmá-las e que mesmo o destino do protagonista (Michel Poiccard, personagem de Belmondo) foi decidido pouco antes do filme ser finalizado. 

A atriz Marina Vlady também dá um relevante depoimento sobre seu trabalho em um dos melhores e mais inovadores filmes de Godard, que foi 'Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Sobre Ela' (1966), o primeiro Filme Ensaio do cineasta, contando que todas as intérpretes do filme repetiam as falas que lhes eram transmitidas por Godard via um fone de ouvido que era escondido pelo cabelo delas. 

Desta maneira, como diz Christophe Bourseiller (que interpretou o filho da personagem de Marina Vlady) todos os personagens do filme estavam, de fato, repetindo os pensamentos de Godard, que refletem de forma bastante crítica as suas ideias sobre a moderna sociedade de consumo que se estabeleceu na França e na Europa Ocidental do Pós Guerra. 

No filme, não apenas a personagem de Marina Vlady, mas também a cidade de Paris é uma personagem, por meio da qual Godard mostra o processo de modernização pela qual a cidade, e o capitalismo francês, passavam naquele momento. Godard mostra, assim, que esta modernização atendia aos interesses do Capital e não das pessoas. Logo, a sociedade moderna, mostra Godard, promove uma desumanização dos indivíduos.

Anne-Marie Miéville conversa com Godard em cena do filme 'Soft and Hard' (1985). Dois cineastas intelectualizados, cultos, inovadores e que viveram e trabalharam juntos por 50 anos, entre 1972 e 2022.

Christophe é filho do diretor teatral Antoine Bourseiller, grande amigo de Godard e para quem o cineasta, naquela época, comprou um teatro, dando-lhe o mesmo de presente. Antoine Bourseiller também fez uma pequena participação em 'Masculino Feminino' (1966), em uma cena na qual ele orienta Brigitte Bardot a respeito de como ela deve interpretar uma cena de uma peça de teatro.

As entrevistas e depoimentos do filme de Cyril Leuthy também mostram o quanto Godard colocou elementos da sua vida pessoal em sua obra, o que é confirmado por Macha Méril, que interpretou a Charlotte em 'Une Femme Mariée' ('Uma Mulher Casada'; 1964) e, também, o quanto a sua obra estava diretamente relacionada com os principais acontecimentos da época em que os filmes foram realizados. 

Assim, nos filmes de Godard temos um retrato crítico e rico dos principais acontecimentos dos anos 1960, incluindo a Guerra do Vietnã, o surgimento de uma nova juventude, as lutas operárias, os Black Panthers, o surgimento da mulher moderna e independente (vide a Patricia Franchini em 'Acossado'), a emergência do Rock (os filmes com a participação dos The Rolling Stones e, depois, com o Jefferson Airplane, ambos de 1968). 

Também vemos os movimentos feministas, os métodos anticoncepcionais (que eram proibidos na França nos anos 1960), a liberação sexual, a crescente influência de uma poderosa indústria cultural e da publicidade, a criação de uma moderna sociedade de consumo na Europa Ocidental do Pós Guerra, o movimento estudantil e os sonhos revolucionários dos anos 1960 estão entre muitos dos assuntos que foram retratados criticamente por Godard nesta turbulenta década de 60.

A grande atriz Hanna Schygulla, famosa por seus filmes com Fassbinder (cineasta muito influenciado por Godard no início da sua trajetória), comenta sobre como foi trabalhar com Godard em 'Passion' (1982). Seu comentário sobre a maneira inusitada como Godard filmou uma cena de amor é imperdível.

Godard fez tudo isso seja filmando na condição de único diretor, seja em um regime de colaboração com outras pessoas, incluindo Jean-Henri Roger, Jean-Pierre Gorin e Anne-Marie Miéville, com quem Godard viveu junto por 50 anos, entre 1972 e 2022, e com quem produziu e dirigiu dezenas de obras.

Entre os inúmeros depoimentos que estão presentes no filme temos a revelação de inúmeras informações importantes sobre os métodos de filmagem de Godard e sobre quais eram as sua ideias sobre arte e cinema, bem como de que maneira elas poderiam ser usadas com o objetivo de transformar a sociedade. 

E com o colapso destes sonhos revolucionários vemos Godard, novamente, passando por um radical processo de reinvenção, nos primeiros anos da década de 1970, enquanto pessoa e artista, priorizando em seus novos trabalhos as vidas das pessoas em pequenas unidades (a família e o local de trabalho, em especial). 

Assim, Godard, que antigamente se preocupava com os grandes acontecimentos (Guerras, Revoluções) e seu impacto sobre as vidas das pessoas (enquanto integrantes de uma classe social, grupo étnico, nacionalidade), agora invertia o processo, partindo do pequeno e do particular para chegar ao grande e ao geral.

Essas mudanças em sua obra ficaram claras em filmes como 'Numéro Deux' (1975) e em duas séries feitas para a TV francesa, projetos que foram desenvolvidos em conjunto por Godard e Anne-Marie Miéville e que são comentados no documentário.  

Junto com Anne-Marie Miéville, vemos que Godard promoveu uma busca constante da inovação da linguagem audiovisual por meio de novidades tecnológicas, usando o vídeo e criando, junto com Anne-Marie Miéville, uma pequena produtora, a 'Sonimage'.

A produtora 'Sonimage' se constituiu em um verdadeiro laboratório de pesquisas audiovisuais. Nas décadas seguintes a produtora mudou de nome, mas as pesquisas e inovações de Godard e Anne-Marie continuaram.

E a produtora sempre esteve atualizada tecnologicamente, com o casal adquirindo tudo de mais inovador que era lançado na área audiovisual (câmeras, equipamentos de edição de vídeo, programas de computador, etc), o que foi confirmado pela atriz Zoé Bruneau, que atuou em 'Adeus à Linguagem' (2014).

Godard em programa de debates na TV, na época do lançamento de 'Je Vous Salue, Marie' (1985), brinca com os católicos radicais que atacaram ao seu filme. A partir da década de 1970 o cineasta tornou-se uma presença frequente em programas de TV, sendo entrevista ou debatendo, algo que Godard sempre gostou de fazer.

Assim, vemos Godard iniciando uma nova fase em sua trajetória, voltando a fazer filmes que seriam exibidos no circuito comercial e em festivais, o que começou com o belo, autocrítico e reflexivo 'Sauve qui peut (la vie)', que foi lançado no Festival de Cannes, em maio de 1980, e que apesar de ter gerado reações contraditórias, acabou fazendo sucesso comercial. 

Esse período que começou com "Sauve qui peut (la vie)", em 1980, mostrou Godard trazendo várias novidades em sua obra, incorporando uma visão crítica sobre o seu período anterior, marcado pelo maoísmo e pelo seu trabalho no Grupo Dziga Vertov. Godard vai procurar refletir, junto com Anne-Marie Miéville, sobre o que deu errado e porque deu errado durante o período maoísta (1968-1972).

E fica claro que esse processo de retorno de Godard ao cinema 'comercial' não foi fácil, com o próprio cineasta tendo inúmeras dúvidas sobre a viabilidade desta sua volta para o cinema. Em função disso, Godard chegava a chorar, segundo Richard Brody diz na biografia que escreveu sobre o cineasta, nas reuniões feitas com os membros da equipe nas semanas que antecederam ao início da filmagens de "Sauve qui peut (la vie)".

Neste processo de reavaliação de sua obra, que se desenvolveu entre 1973 e 1978, Godard se beneficiou da parceria decisiva com a cineasta Anne-Marie Miéville, que foi, junto com Jean-Claude Carriere, a autora do roteiro do filme.

O período que se inicia com "Sauve qui peut (la vie)" é marcado fortemente pela incorporação à obra de Godard de elementos de caráter espiritual, religioso, metafísico e, também, de caráter científico, o que não aconteceu nas fases anteriores (Nouvelle Vague e Maoísta).

Em vários filmes deste período, vemos que Godard reflete sobre a origem da vida (tanto sob a perspectiva da Fé, quanto da Ciência) e, também, sobre a relação entre Deus e o Ser Humano, entre o mundo Material e Espiritual, entre Corpo e Espírito. Entre os filmes que tratam destes temas podemos citar 'Je Vous Salue, Marie' (1985) e 'Hélas Pour Moi' (1993).

"Sauve que peut (la vie)" contou com a participação de grandes nomes da época, incluindo as excelentes atrizes francesas Isabelle Huppert e Nathalie Baye, bem como de Jacques Dutronc, astro da música Pop francesa. Assim, Godard adaptava-se aos novos tempos do cinema, que exigia a presença de estrelas nos filmes, o que facilitava a atração de financiadores e viabilizava a produção.

Julie Delpy também prestou um bonito depoimento sobre ter trabalhado com Godard, com quem ela iniciou a sua carreira, ainda aos 14 anos, em 'Détective' (1985). Depois ela participou de 'King Lear' (1987) e das "Histoire (s) du Cinéma" (1988-1998).

O belo, sensível e filosófico 'Je Vous Salue, Marie' (1985) foi outro filme de grande impacto, que gerou reações iradas dos católicos mais radicais, pois o cineasta tratou a concepção virginal de Jesus como parte integrante de conceitos mais amplos, que é o da relação entre Corpo e Espírito que é, de fato, e da conexão desta relação com a sexualidade, que é o tema central do filme. 

'Je Vous Salue, Marie' trouxe a história de José, Maria e Jesus para o mundo contemporâneo e faz parte deste período da vida de Godard no qual ele incluiu elementos filosóficos, metafísicos, espirituais e religiosos em seus filmes. Assim, o filme também trata das diferentes concepções sobre a origem da vida, mostrando as explicações feitas com base na Ciência e na Fé.

Até pela reação furiosa e estúpida de uma parte dos católicos mais radicais (que sequer assistiram ao filme), o fato é que 'Je Vous Salue, Marie' colocou Godard em evidência na mídia novamente e, em seu filme, Cyril mostra Godard brincando, em um programa de TV, com essa reação estúpida destes fanáticos religiosos.

Porém, nos anos 1980, Godard deu a volta por cima, realizando outros belos filmes, incluindo 'Prénom Carmen' (1983), com o qual ele conquistou o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1983, e que também alcançou o sucesso comercial. 

Neste período, Godard também participou bastante de debates e entrevistas em emissoras de rádio e TV. Godard sempre gostou disso e era um excelente polemista e debatedor, sempre deixando os antagonistas desconcertados com algum comentário ou piada.

Uma das grandes atrizes francesas, Nathalie Baye, que trabalhou com Godard em "Sauve qui peut (la vie)", de 1980, e 'Détective' (1987), comenta sobre a sua experiência de trabalhar com o cineasta.

Enquanto isso, em 'Hélas Pour Moi' (1993) Godard faz uma atualização da história de Zeus, Alcmena e Anfitrião, na qual o principal deus da Mitologia Grega desce à Terra para seduzir essa bela mulher, que se recusava a trair o seu marido. Para alcançar o seu objetivo, Zeus se disfarça de Anfitrião (que havia viajado) e, assim, consegue seduzir Alcmena, que pensava que estava amando ao seu marido. Deste relacionamento nasce Hércules, um humano mortal dotado de grandes poderes.

Na versão que vimos no filme de Godard, Zeus se torna o Deus cristão, desce à Terra, para uma pequena cidade da Suíça, seduz uma mulher chamada Rachel, que era inteiramente fiel ao seu marido (Simon), e também se disfarça do marido dela para conseguir seduzi-la. O Deus cristão e o humano Simon são, ambos, interpretados por Gerard Depardieu.

Porém, Godard usa essa história para tratar de um tema mais amplo, que é a maneira como se desenvolvem as relações entre Deus e os seres humanos, mostrando que a humanidade havia se afastado da esfera espiritual e que não conseguia mais se conectar com a mesma, concluindo que o conhecimento antigo que a humanidade havia possuído sobre isso havia se perdido.

Esse período, que podemos chamar de 'Fase Espiritual' de Godard, que havia começado com "Sauve qui peut (la vie)", irá durar até o belo filme 'JLG/JLG' - Autoretrato de dezembro' (1993). Foi nesse período que ele criou e desenvolveu a excepcional e monumental "Histoire (s) du Cinéma", projeto singular e brilhante que irá ocupar dez anos de sua vida e para a qual ele se utilizou de quase 500 filmes e 150 livros.  

O filme acabou, foram todos (as) embora e Godard fica sozinho. Fazer filmes, como disse ele, foi a maneira pela qual Godard se relacionava com as pessoas e com o mundo. Se a Linguagem é o lugar onde o ser humano, então o cinema era a linguagem de Godard.

A partir daí o cineasta irá iniciar uma nova fase, que é a dos chamados 'Filmes Ensaio', sendo que 'For Ever Mozart' (1996) é o filme que promove uma transição para essa nova fase, na qual Godard volta a refletir criticamente sobre o mundo terreno, material, relacionando sua história pessoal, a história do cinema e a chamada Grande História, o que é comentado por Alain Bergala no documentário de Cyril Leuthy.

De certa maneira, o belo e melancólico 'Éloge de l'amour' (2001) dá início a essa fase de 'Filmes Ensaio', e nele Godard faz uma série de reflexões críticas a respeito da criação artística, da memória histórica, incluindo o roubo de obras de arte (pinturas) durante a Segunda Guerra Mundial, a Resistência Francesa, o esvaziamento do Movimento Operário, a Guerra do Kosovo, as crescentes Desigualdades Sociais e o Imperialismo Cultural dos EUA. Essas eram todas questões e problemas relevantes na época em que o filme foi produzido. 

Essa última fase da vida e da carreira de Godard não é comentada no documentário de Cyril, o que entendo ser a principal falha deste belo filme, pois ela durou bastante tempo (mais de 20 anos) e teve continuidade com 'Notre Musique' (2004)', 'Filme Socialismo' (2010), 'Adeus à Linguagem' (2014) e "Le Livre D'Image" (2018). 

Em todos estes filmes Godard analisa criticamente os principais acontecimentos contemporâneos (a gravíssima crise europeia em 'Filme Socialismo', por exemplo), procurando buscar na Filosofia, na Arte e na  História reflexões e possíveis respostas para estes problemas. 

Godard conversando com Marguerite Duras. Eles foram grandes amigos e a escritora chegou a fazer uma narração no filme "Sauve que peut (la vie)". O sobrenome Donnadieu, usado por Godard em 'Hélas Pour Moi' (1993), também era o verdadeiro nome de família da escritora.

Entendo que também faltaram comentários e informações, no documentário, a respeito dos inúmeros vídeos e curtas metragens que Godard realizou (criando até mesmo roteiros visuais para alguns de seus filmes), muita vezes em parceria com Anne-Marie Miéville, a partir dos anos 1970 e que serão produzidos até a sua morte.

Entre estas produções, nós temos belas realizações, tais como "Puissance de la parole" (1988), 'A Infância da Arte' (1992), 'Je Vous Salue, Sarajevo' (1993), 'A Origem do Século XXI' (2000) e 'Na Escuridão do Tempo' (2002). Aliás, a sua última produção, junto com Anne-Marie Miéville, foi uma releitura deste curta metragem, que foi produzido em 2019, e que eles adaptaram para defender a causa palestina, algo que os dois sempre fizeram.  

Independente de algumas falhas, o fato concreto é que 'Godard Seul Le Cinéma' é o primeiro filme produzido sobre Godard que o mostra como um grande artista e cineasta e que não se esqueceu de que ele também foi um ser humano que viveu em um mundo brutal e violento e, no qual, ele também agiu, em determinados momentos, conforme as circunstâncias assim o exigiam. 

Para quem não conhece, ou conhece pouco, a trajetória e a obra de Godard, pode-se dizer que este filme é uma excelente introdução. 

Alain Bergala, um dos principais estudiosos da obra de Godard, também faz comentários sobre a vida e a obra do cineasta.

Informações Adicionais!

Título: Godard Seul Le Cinema;

Diretor: Cyril Leuthy;

Roteiro: Cyril Leuthy;

Produção: Cathy Palumbo e Victor Robert;

Duração: 100 minutos; Gênero: Documentário;

País de Produção: França; Ano de Produção: 2022;

Produtoras: '10.7 Productions'; 'Arte France'; 'Arts et Spectacles Production';

Música: Thomas Dappelo;

Edição: Cyril Leuthy e Philippe Baillon;

Fotografia: Gertrude Baillot e Thomas Dappelo;

Elenco: JL Godard; Anne-Marie Miéville; Anna Karina; Macha Méril; Nathalie Baye; Hanna Schygulla; Marina Vlady; Alain Bergala; Daniel Cohn-Bendit; Romain Goupil; Gérard Martin; Christophe Bourseiller; David Faroult; Antoine de Baecque; Thierry Jousse.

Jean-Luc Godard: Um Gênio que reinventou o Cinema do início ao fim de sua trajetória.  

Trailer do filme (legendas em português):


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