'Mephisto' mostra a história de um artista que, em pleno regime Nazista, abriu mão de seus ideais para atingir o sucesso!

'Mephisto' mostra a história de um artista que, em pleno regime Nazista, abriu mão de seus ideais para atingir o sucesso! - Marcos Doniseti!

'Mephisto' (1981), dirigido por István Szabó, é uma bela produção sobre um ator que, em pleno regime nazista, decide abrir mão de ideais políticos em favor do próprio sucesso.

"Ouve-se frequentemente que o artista deve se ater ao seu próprio ofício, e que ele simplesmente se deprecia quando ele desce à arena política para participar das lutas do momento. Considero esta uma objeção fraca, por causa da minha convicção, ou melhor, da minha clara percepção, do fato de que as diferentes esferas da humanidade - sejam artísticas, culturais ou políticas - são realmente inseparáveis.".

Thomas Mann.

'Mephisto' - Prêmios, história e produção!

Este é um belíssimo filme do cineasta húngaro István Szabó, um dos mais talentosos cineastas da Europa Central, que está com 83 anos e continua ativo, tendo lançado um novo filme em 2020 ('A Música da Sua Vida'), que conta com a participação de Klaus Maria Brandauer, o mesmo que interpreta, de maneira impressionante, o protagonista de 'Mephisto'.

'Mephisto' conquistou vários prêmios importantes, incluindo o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1982, bem como os Prêmios da Crítica (FIPRESCI) e de Melhor Roteiro no Festival de Cannes do mesmo ano. 

E no mesmo ano o brilhante ator austríaco Klaus Maria Brandauer, que interpreta o protagonista (Mefisto), conquistou merecidamente o prêmio David di Donatello (o 'Oscar' italiano) de Melhor Ator e o filme também conquistou o David di Donatello de Melhor Filme Estrangeiro.

Independente das premiações, que foram mais do merecidas, 'Mephisto' é um grande filme de Szabó e que conta com uma atuação absolutamente fantástica de Klaus Maria Brandauer, que está com 78 anos e continua filmando. 

O filme foi uma grande produção que envolveu três países, que foram Alemanha, Áustria e Hungria. A crítica costuma dizer que 'Mephisto' seria o primeiro filme de uma trilogia, que incluiria 'Coronel Redl' (1985) e 'Hanussen' (1988), mas o próprio cineasta negou isso, dizendo que realizou os filmes de forma independente. Assim, a tal 'trilogia' foi inventada pelos jornalistas, segundo Szabó. 

Edição brasileira do livro 'Mefisto', de Klaus Mann, no qual se baseou o belo filme dirigido por István Szabó.

István Szabó também afirmou que nunca se interessou em filmar em Hollywood pelo fato de que se considera uma pessoa da Europa Central e que é nesta região que se encontra o mundo que ele conhece e sobre o qual deseja contar histórias. 

Ele também elogiou muito ao excepcional ator Klaus Maria Brandauer, dizendo que o mesmo "é um grande amigo... e como ator ele tem uma intensidade ininterrupta, enorme energia, fonte de permanente surpresas".

A história do filme é baseada no livro 'Mephisto', de Klaus Mann, escritor alemão que era filho de Thomas Mann (autor de 'Fausto') e sobrinho de Heinrich Mann (autor de 'O Anjo Azul). E a história do livro, por sua vez, é baseada em uma história real, que foi inspirada na vida do ex-cunhado de Klaus Mann, chamado Gustaf Grundgens. 

Grundgens foi casado com Erika Mann, irmã de Klaus, e teve uma carreira brilhante como ator durante o regime nazista, se consagrando com a interpretação de Mefistófeles, na peça 'Fausto', que estreou em Berlim em 22 de Junho de 1942. 

Grundgens se formou na Academia de Teatro de Dusseldorf e trabalhou com Max Reinhardt no 'Deutsches Theater' de Berlim. Reinhardt, que dirigia o 'Deutsches' desde 1904, fugiu da Alemanha quando Hitler e os nazistas subiram ao poder, no final de Janeiro de 1933. 

Erika Mann e Klaus Mann: Dois irmãos cultos, inteligentes, inconformistas e atuantes politicamente.

Porém, Grundgens decidiu permanecer na Alemanha, mesmo que, no passado, tivesse uma história de envolvimento com um teatro revolucionário, de inspiração esquerdista, o que o tornava um alvo certo para os nazistas, que passaram a perseguir a todos os esquerdistas (social democratas, comunistas) depois que implantaram uma brutal ditadura no país. 

Isso aconteceu logo após o incêndio no Reichstag (Parlamento alemão), que ocorreu em 27 de Fevereiro de 1933 e pelo qual os comunistas levaram a culpa, apesar de jamais ter sido provado qualquer envolvimento deles com o incêndio. 

Os nazistas inventaram uma Fake News de que o incêndio do Reichstag era parte de um Golpe de Estado dos comunistas. Mesmo sem apresentar uma prova sequer da acusações, Hitler conseguiu que o Reichstag, ameaçado pelas SA e sem contar os votos da bancada comunista, aprovasse um projeto de lei que lhe concedeu poderes ditatoriais para governar. Em menos de seis meses já não havia um só partido de oposição na Alemanha e a ditadura nazista estava consolidada.

Grundgens, que sempre se envolveu com o personagem Mefistófeles durante a sua carreira, da peça de autoria de Goethe, interpretou o personagem em 'Fausto 1', em Dezembro de 1932, e novamente o mesmo personagem em 'Fausto 2', em 1933. 

Durante o período nazista ele se tornou o diretor do 'Teatro Estatal' prussiano e deu continuidade à sua carreira de ator, sendo que passou a ser um protegido do general Hermann Goring, o líder número 2 do regime nazista.

Da esquerda para a direita: Gustaf Grundgens, Erika Mann, Pamela Wedekin e Klaus Mann em 1925, quando encenaram a peça 'Anja and Esther'.

Grundgens voltou a interpretar Mefistófeles, novamente em duas partes, em 1942 e em 1943, o que foi o auge da sua carreira. Mesmo com a derrocada do regime Nazista, Grundgens assumiu o cargo de diretor do teatro de Dusseldorf e, no mesmo, dirigiu 'Fausto 1' e voltou a interpretar Mefisto em 1949. O fato de ter ajudado pessoas ligadas ao mundo teatral e artístico a fugir da perseguição durante o regime Nazista contou a seu favor. 

Klaus Mann escreveu o livro 'Mephisto' inspirado na vida de Grundgens e, no mesmo, ele procura mostrar que o brilhante ator alemão teria, literalmente, vendido a sua alma para o demônio, que é simbolizado por Hitler, Goring e pelo regime Nazista, em troca do sucesso. 

E inegavelmente Grundgens teve um trajetória muito bem sucedida como ator e diretor durante os 12 anos de regime nazista na Alemanha. E para isso foi fundamental o apoio e o respaldo que ele obteve de Goring, que acumulava vários cargos e possuía um grande poder na Alemanha hitlerista. 

No entanto, Grundgens foi obrigado a abrir mão dos ideais esquerdistas que defendia em sua juventude, junto a Klaus e Erika Mann, irmãos que eram muito ligados entre si, sendo que ambos era fortemente contestadores e viviam de maneira bastante libertária, rejeitando os valores burgueses e conservadores dominantes.

É bom ressaltar que o livro de Klaus Mann somente foi publicado, pela primeira vez, na Holanda, em 1936, onde ele vivia, colaborando com uma publicação antinazista, que era dirigida por exilados alemães, que se chamava 'Die Sammlung', com uma pequena tiragem de 2.500 exemplares, mas que foi proibido na Alemanha. 

Gustaf Grundgens interpretando 'Mephisto' em 1942.

Depois, ele foi publicado, novamente, na antiga República Democrática Alemã (Alemanha Oriental), em 1956, graças à insistência de Erika Mann. Nos anos seguintes o livro foi publicado na Polônia, Hungria, Iugoslávia e URSS. 

Porém, na Alemanha Ocidental nenhuma editora se propôs a publicar o livro, pois Grundgens desfrutava de grande prestígio no país. Após a morte de Grundgens, em 1963, uma editora o publicou no final dos anos 1960, mas o filho adotivo de Grundgens (Peter Gorski) acionou a Justiça alemã ocidental para impedir que o livro continuasse sendo publicado, no que foi bem sucedido, em 1968.

E existe todo um debate sobre o que o levou Klaus Mann a escrever o livro com uma perspectiva bastante crítica a respeito de Grundgens, que é apresentado como alguém que abriu mão de seus ideais esquerdistas em troca do sucesso durante o período nazista.

E isso inegavelmente aconteceu, embora Grundgens ainda tentasse ajudar amigos esquerdistas, mas o fazia de uma forma que isso jamais ameaçasse a sua carreira, que era marcada por um grande sucesso de público. 

Pelo que se sabe a publicação do livro de Klaus Mann se deu em função de conflitos que teriam ocorrido entre Erika, Klaus e Grundgens, por razões ideológicas, pois Klaus e Erika Mann eram antinazistas.

Desta maneira, os irmãos fugiram da Alemanha em 1933, exilando-se em vários países, incluindo a Holanda, Suíça e, depois, nos EUA. Erika e Grundgens foram casados entre 1926 e 1929, embora se saiba que ele era homossexual (o que também era o caso de Klaus Mann) e a própria Erika fosse lésbica. 

Klaus Mann serviu, como Sargento, no Quinto Exército dos EUA, na Itália, em 1944. Ele sempre militou contra o Nazismo. Depois do final do conflito ele e Erika foram morar nos EUA, tal como o pai e a mãe. Klaus morreu em 1949 e Erika em 1969.

Klaus Mann declarou que o personagem Hendrik Hofgen, o Mefisto, não era baseado apenas em Grundgens, mas em muitas outras pessoas que, após a ascensão de Hitler ao poder, passaram a colaborar com o regime nazista, embora não fossem adeptos da ideologia, adotando uma postura explicitamente oportunista.

No livro 'Hitler', o historiador britânico Ian Kershaw afirmou que toda a esfera cultural (cinema, teatro, rádio, imprensa, música, pintura, etc) da Alemanha passou por uma reorganização completa, ficando sob o comando de Goebbels, sendo que muitos 'intelectuais, escritores, artistas, atores e publicistas colaboraram em medidas que não somente empobreceram e manietaram a cultura alemã nos doze anos seguintes, mas baniram e puseram fora da lei seus expoentes mais brilhantes'.

Inclusive, nos primeiros meses do governo hitlerista foram tantas as pessoas (1,6 milhão) que, de forma oportunista, entraram para o Partido Nazista que o próprio partido decidiu proibir a entrada de novos membros. 

Obs1: O trecho em azul e a informação sobre a entrada de novos membros para o Partido Nazista foram retirados do livro 'Hitler', de Ian Kershaw, editora Companhia das Letras, página 323, ano 2014, 3a. reimpressão.

Erika Mann foi uma das mulheres que trabalharam como correspondente de guerra para os Aliados na Segunda Guerra Mundial. Erika Mann é a primeira da direita para a esquerda. A terceira é Betty Knox, que foi amante de Erika. Ela e o irmão Klaus foram viver nos EUA depois da Guerra e acabaram sendo perseguidos pelo FBI devido às suas atividades homossexuais e socialistas. Essa perseguição resultou no suicídio de Klaus, em 1949.

Porém, os três (Klaus, Erika e Grundgens) haviam trabalhado juntos no teatro, durante os anos 1920, antes da ascensão de Hitler ao poder, fazendo peças de conteúdo esquerdista. Em 1925, os três trabalharam em uma peça de teatro chamada 'Anja and Esther', junto com uma outra atriz (Pamela Wedekind), que foi encenada em Hamburgo e que era de autoria de Klaus. 

E consta que, naqueles 'loucos anos 1920', na época da produção da peça, Klaus e Grundgens desenvolveram uma relação amorosa, enquanto que o mesmo acontecia com Erika e Pamela. 

O problema é que, na Alemanha da época, relações homossexuais eram consideradas um crime e quem as tivesse corria o risco de ir parar na prisão. Daí, eles combinaram de se casar (Pamela com Klaus; Erika com Grundgens) para que pudessem viver todos juntos, mantendo as aparências. Foram casamentos de fachada. 

Porém, Klaus e Erika decidiram se opor aos nazistas, criando um grupo teatral de Cabaré político chamado 'Die Pfeffermuhle' ('O moinho de Pimenta'), que ridicularizava e criticava os nazistas, e que também contou com a participação da atriz Therese Giehse, que era amante de Erika.

O grupo 'O moinho de Pimenta', cujo nome foi uma sugestão de Thomas Mann, pai de Erika e Klaus, fez várias apresentações na Alemanha, mas em Março de 1933 eles decidiram ir embora do país, devido ao caráter cada vez mais repressivo e violento do regime nazista, pois Hitler havia se tornado Chanceler em 30/01/1933 e implantou uma feroz ditadura já a partir de Março do mesmo ano, após o incêndio no Reichstag.

Nos anos seguintes o grupo fez muitas apresentações, mais de mil, em países como Polônia, Hungria, Tchecoslováquia, Bélgica e Holanda. Os números apresentados pelo grupo eram, segundo o próprio Klaus Mann afirmou, escritos todos por Erika Mann.

Porém, enquanto isso, Grundgens decidiu continuar as suas atividades como ator e diretor teatral normalmente, passando a colaborar com o regime Nazista e se tornando um protegido de Goring. 

Primeiro número da revista 'Die Sammlung', que foi criada por exilados alemães e foi publicada em Amsterdam, entre Setembro de 1933 e Agosto de 1935, com Klaus Mann sendo o editor. Colaboraram com a publicação nomes como Albert Einstein, Aldous Huxley, Alfred Doblin, André Gide, Bertolt Brecht, Ernest Hemingway, Heinrich Mann, Ilja Ehnenburg e Jean Cocteau.
 

A prioridade de Grundgens era desenvolver uma carreira de sucesso, o que ele conseguiu, inclusive ele acabou se tornando um símbolo que foi bastante explorado pelo regime nazista para melhorar a imagem da Alemanha hitlerista no exterior e entre um público interno ligado ao mundo artístico e intelectual, pois ele já era um nome bastante respeitado nesse meio.

Enquanto isso, Klaus e Erika vão para o exílio, passando por vários países, sendo que na Holanda eles colaboraram com uma publicação antinazista. Depois, eles se estabeleceram nos EUA, colaborando com as Forças Armadas do país durante a Segunda Guerra Mundial. 

Inclusive, Klaus Mann chegou a servir, como sargento, em 1944, no Quinto Exército dos EUA que lutava na Itália. Ele também escreveu para o jornal do Exército dos EUA, que era o 'Stars and Stripes', dando continuidade à sua luta contra o Nazismo. Ele também escreveu um livro de caráter antinazista chamado 'Contra a Barbárie', que reúne uma série de ensaios (ver link depois do texto).

No Pós-Guerra, Erika Mann foi vigiada e perseguida pelo FBI devido ao seu envolvimento na luta contra o Macarthismo. Enquanto isso, Therese Giehse continuou a sua carreira como atriz, trabalhando em muitos filmes para Cinema e TV, chegando a atuar em dois filmes de Louis Malle, que foram 'Lacombe Lucien' (1974) e 'Lua Negra' (1975). 

Enquanto isso, Klaus Mann manteve os seus ideais esquerdistas, mas também era um crítico do caráter autoritário do regime soviético. Klaus Mann morreu em 21 de Maio de 1949, com apenas 42 anos, na França, após ingerir uma dose excessiva de comprimidos para dormir. 

A trama do filme!

A atriz Dora Martin elogia o ambicioso e talentoso Hendrik Hofgen, personagem baseado no ator Gustaf Grundgens.

O filme começa com a apresentação de uma popular atriz (Dora Martin) em um teatro de Hamburgo, sendo aplaudida entusiasticamente pelo público ao final da mesma. Enquanto isso, o ator Hendrik Hofgen está nos camarins, se descabelando (literalmente) em função do sucesso da amiga. Isso pode parecer estranho, inicialmente, mas com o desenvolvimento da história esta sequência ficará mais do que esclarecida.

Logo depois, Hendrik vai a um restaurante para se encontrar com os amigos do grupo teatral do qual faz parte, encontra Dora Martin, mente para ela dizendo que viu a apresentação da mesma, ela sabe que isso é mentira, mas o elogia, afirmando que ele é muito talentoso. Neste momento, Hendrik pede que ela fale isso num tom de voz mais forte (pois deseja que todos os presentes ouçam o elogio).

Essas sequências iniciais mostram, claramente, a insegurança, frustração e ambição de Hendrik. E quando ele é questionado, logo depois, por uma amiga do grupo teatral no qual atua, qual é o motivo dele estar se sentindo tão desanimado, Hendrik responde que ele é apenas 'um ator provinciano'. 

Assim, fica claro, desde o início, que Hendrik é alguém que deseja o sucesso mais do que tudo e que irá deixar outros aspectos da sua vida em segundo plano, incluindo os políticos, ideológicos e pessoais para conseguir atingir o seu objetivo. Ele também procura se preparar para atingir o estrelato, tendo aulas de dança com Juliette.

Ela é uma bonita e sensual mulher alemã (pai alemão e mãe africana) com quem ele tem um relacionamento sexual intenso. Ela é negra e, por isso, sofre muita discriminação e é humilhada por parte de muitos alemães, como ela mesma diz para Hendrik. 

Hendrik manifesta, para a sua amiga de companhia teatral, Angelika Siebert, o seu desânimo pelo fato de ser um simples ator provinciano.

Na verdade, na vida real, Grundgens era homossexual e, no livro de Klaus Mann (no qual o filme se baseou) o autor da obra eliminou esse aspecto, mas para manter o clima de discriminação ele substituiu o caráter homossexual de Hendrik por um relacionamento com uma mulher negra, trocando-se um tipo de discriminação (homofobia) por outro (racismo). 

Mas em vários momentos do filme nós temos cenas que fazem, claramente, alusões ao homossexualismo de Hendrik, embora ele tenha relacionamentos com várias mulheres, sendo que acaba se casando com várias, sendo que a primeira é Barbara Bruckner. Porém, isso também ocorreu na vida real, pois Grundgens se casou com Erika Mann, num típico casamento de fachada, pois ambos preferiam parceiros e parceiras do mesmo gênero. 

No filme também é sugerido que Barbara, a primeira esposa de Hendrik, tinha um relacionamento homossexual com a bela Nicoletta, com quem ele também irá se casar mais adiante. Nicoletta também demonstrará ter um relacionamento com uma bela escultora, que é Laura. 

A Alemanha dos anos 1920 era bem liberal em questões de comportamento e cidades como Berlim e Hamburgo possuía muitos bares, boates, bordéis e cabarés, nos quais as pessoas se divertiam e faziam muito sexo. Mas, paradoxalmente, ao mesmo tempo, o homossexualismo era considerado um crime e poderia levar os envolvidos na prática para a prisão.

Enfim, o filme é repleto de relacionamentos homossexuais que são claramente sugeridos, com fortes alusões, mas que não podiam ser explicitados devido ao moralismo, mais aparente do que real, que era defendido pelo regime nazista. E os casamentos de Hendrik são todos por conveniências.

Nicoletta, Barbara, Hendrik e Otto. Hendrik acaba se casando com as duas mulheres, por motivos distintos (em momentos diferentes, é claro). O casamento com Barbara se deu na época que antecede à ascensão de Hitler e dos nazistas ao poder. Já o casamento com Nicoletta ocorreu durante o Terceiro Reich. Otto será perseguido pelos nazistas por sua militância comunista.

O primeiro casamento de Hendrik, com a bela Barbara Bruckner, permitiu que ele ascendesse socialmente e se inserisse entre o segmento mais liberal de Berlim, pois a família dela é de ricos liberais, que são bem relacionados politicamente com o governo da época da República de Weimar (Novembro de 1919 até Janeiro de 1933). 

Contando com essa providencial ajuda da família Bruckner e, também, da atriz e amiga Dora Martin, o mundo artístico e cultural capital alemã abre as suas portas para o talentoso e ambicioso Hendrik. Depois, quando irá colaborar com os nazistas, ele continuará adotando a mesma postura, estabelecendo conexões pessoais com figuras poderosas do regime nazista para poder consolidar a sua posição no mundo cultural alemão.

Porém, antes da ascensão dos nazistas ao poder, o esquerdista Hendrik ainda fazia duras críticas aos mesmos, classificando a todos eles como sendo bandidos, enquanto a liberal Barbara tentava dialogar com eles, chegando a convidar um deles, Hans Miklas (que fazia parte do mesmo grupo teatral de Hendrik em Hamburgo) para jantar em sua casa, o que Hendrik repudia, discutindo fortemente com ela.

Miklas chega a se tornar um líder nazista, treinando e preparando os membros da Juventude Hitlerista. Posteriormente, quando os nazistas chegam ao poder, ele também pagará o preço de seu envolvimento com os mesmos e isso irá acontecer, ironicamente, por culpa de Hendrik.

Barbara e sua família, tal como o próprio Hendrik, não levavam os nazistas a sério e pensam que seria inconcebível que Hitler e os nazistas passassem a governar a Alemanha. Essa postura de não levar os nazistas a sério foi um grave erro que muitos alemães, Liberais e também de Esquerda, cometeram na época e pelo qual pagaram um preço elevado. 

Hendrik ainda se perguntou, quando ficou sabendo que Hitler havia se tornado Chanceler, o que os nazistas poderiam fazer com ele, pois ele era um alemão. Porém, os nazistas não consideravam que todos os alemães fossem, de fato, alemães, a não ser que preenchessem certos requisitos impostos e estabelecidos por eles.

Hendrik tem um intenso relacionamento com a sua professora de dança, Juliette Martens, que sempre faz observações precisas sobre a personalidade dele.

A Direita, os Liberais e as forças Conservadoras alemãs pensaram que poderiam controlar Hitler e os nazistas, mantendo-os dentro de certos limites, impostos pelas leis e pelas instituições do país, mas isso não aconteceu, como se sabe.

Já o segundo casamento de Hendrik, com Nicoletta, permitiu que ele normalizasse a sua vida perante o regime nazista, que valorizava a família e estimulava que cada uma delas gerasse muitos filhos (tal como diz Goring para Hendrik e Nicoletta quando estes se casaram), principalmente do sexo masculino, para que se tornassem futuros soldados que lutariam pelo Reich, que Hitler dizia que iria durar mil anos. Durou apenas doze e já foi muito. 

Obs2: Essa situação, na qual Hendrik procura conquistar uma normalização de sua vida particular sob o regime nazista, também foi tratada por Bernardo Bertolucci em seu belíssimo 'O Conformista' (1970), cuja história se desenvolve na época do Fascismo italiano, entre 1938 e 1943.  

Aliás, nesta festa de casamento fica claro a maneira como o nazismo também penetrou na vida privada das pessoas, pois além de premiar casais que gerassem muitos filhos, também vemos Goring fazendo uma inspeção da mansão na qual Hendrik e Nicoletta irão morar, dando a sua aprovação para a mesma, pois tudo (móveis, quadros, peças decorativas) se encaixava naquilo que o nazismo desejava.

Inclusive, foi na sequência da festa de casamento de Hendrik e Nicoletta que temos aquele que é, para mim, o mais bonito e emocionante momento do filme, quando um grupo de quatro jovens aparece com o rosto pintado como se fossem Mefistófeles e outros dois usam máscaras de animais (uma de porco e outra de macaco) e os seis começam a dançar em torno de Hendrik. 

Hendrik, Barbara e os avós dela, que são uma rica família de liberais alemães. Por meio do casamento com a bonita Barbara ele consegue se integrar ao mundo sofisticado de Berlim, facilitando a sua ascensão no mundo teatral da cidade. Ele passa a participar de muitas peças teatrais e de filmes, tornando-se um ator de sucesso.  

Neste momento é tocada a música 'Im Grunewald', de Franz Meissner, e todos os que estão presentes acabam entrando na dança, formando uma roda, ao som da música contagiante. 

A cena parece querer demonstrar que a mistura entre Fausto e Mephisto não era restrita a Hendrik, mas vale também para as outras pessoas, cidadãos comuns, e que essa dualidade é uma característica humana que independe das situações concretas em que nos encontramos, não importando quem detenha o poder.

Assim, podemos ter um ator que se vende para um regime ditatorial, de um cineasta que deixa de fazer o filme que deseja para atender as exigências de um grande produtor que deseja lucrar com o mesmo, pouco se importando com a qualidade do mesmo.  

Um momento em que isso fica bem evidente é quando Goring diz a famosa frase 'Quando ouço a palavra cultura, saco o meu revólver'. A frase também foi dita por um produtor de cinema (Jeremy Prokosch), interpretado por Jack Palance, em 'Le Mépris' (1963), de Godard.

Também vemos isso quando um músico passa a fazer músicas mais comerciais, visando atingir o sucesso, um funcionário de uma empresa que é ameaçado de demissão caso denuncie alguma irregularidade que ocorre na mesma. Eles não estão vivenciando situações diferentes daquela que Hendrik experimenta. 

Portanto, não é apenas Hendrik que tem que fazer acordos com o diabo e se submeter a situações humilhantes, mesmo que se esforce para tentar preservar a sua humanidade neste processo. Assim, o filme mostra que situações como essas são bastante comuns na vida das pessoas e não ocorreu apenas na época do nazismo.

Hans Miklas (segundo da esquerda para a direita) é membro do grupo teatral esquerdista, mas nutre simpatias pelo nazismo e faz discursos antissemitas. Hendrik fica indignado e pede que ele seja expulso do grupo, o que não aceito pelo diretor.

O filme também deixa claro que o nazismo promovia aquele tipo de moralismo hipócrita, com os seus líderes e seguidores fazendo discursos em defesa da família, da moralidade, contra o homossexualismo e a prostituição, mas enquanto isso muitos deles não respeitavam tais valores, possuindo amantes e se relacionando com prostitutas. 

Os líderes nazistas também viviam esbanjando dinheiro público com festas luxuosas e bajulatórias para os poderosos do regime, tal como vemos na festa de aniversário de Goring. Ele, em especial, adorava saquear e acumular riquezas, bem como ostentar as mesmas, tornando-se um dos mais corruptos líderes do nazismo. 

Os nazistas também reprimiram duramente aos homossexuais, sendo que 10 mil deles foram enviados para campos de concentração (onde eram obrigados a usar um triângulo rosa invertido) e 60% deles morreram. Os nazistas também fecharam bares e boates que os homossexuais frequentavam (Berlim estava repleto dos mesmos), mas dentro de quatro paredes a situação era diferente.

Assim, muitos líderes e membros das SA (as tropas de assalto nazistas, que chegaram a reunir 4,5 milhões de membros em 1934) eram homossexuais, incluindo o seu principal líder, que foi Ernst Rohm, que foi assassinado, junto com muitos membros das SA, por ordens de Hitler na 'Noite dos Longos Punhais', que ocorreu entre 30 de Junho e 01 de Julho de 1934. 

Ian Kershaw diz que cerca de 150 pessoas foram assassinadas, por ordens de Hitler, apenas nestes dois dias. E o líder máximo do nazismo fez isso mesmo sabendo que devia a sua ascensão ao poder, em grande parte, ao apoio que sempre recebeu das SA.

Logo, os nazistas eram os famosos 'moralistas sem moral'.

Em Berlim, Hendrik vai trabalhar como ator e diretor teatral. Berlim era um território livre para a criação artística e cultural, bem como uma cidade bastante liberal em comportamento durante a República de Weimar (1919-1933). O livro 'Adeus a Berlim', de Christopher Isherwood retrata esse período, que influenciou David Bowie, que foi morar na cidade, junto com Iggy Pop, em 1975. Mas, com a ascensão de Hitler e dos nazistas ao poder isso acabou. 

Obs3: Neste aspecto, sugiro que assistam outros três clássicos do cinema que estão relacionados com esse tema, que são 'Os Deuses Malditos' (Luchino Visconti; 1969), 'O Ovo da Serpente' (Ingmar Bergman; 1977) e 'Cabaret' (Bob Fosse; 1977).

No filme fica claro que o que vai interessar para o general Goring (que no filme não tem esse nome, mas todos sabem que ele é o personagem), que protege Hendrik depois que o mesmo decidiu permanecer na Alemanha para dar continuidade à sua carreira de ator e diretor teatral, é usar do prestígio que o brilhante ator possui, dentro e fora da Alemanha, entre os artistas, a imprensa e a intelectualidade, para melhorar a imagem do regime nazista perante os outros países e também na área cultural.

Não existia nenhuma verdadeira preocupação com a arte e a cultura, por parte do regime nazista, que são utilizadas apenas para reforçar o caráter racista da doutrina nazista, que afirmava a superioridade dos alemães sobre todos os outros povos e 'raças', que eram considerados como sendo 'subhumanos'. 

Aliás, o nazismo também irá fazer o mesmo com esporte, vide o descarado uso político e propagandístico que fez das Olimpíadas de 1936, que foram realizadas em Berlim. 

Mas o discurso da superioridade racial dos alemães foi abalado com as quatro medalhas de ouro que foram conquistadas por Jesse Owens, um atleta negro dos EUA. Na época que antecedeu à realização dos Jogos, Hitler chegou a proibir qualquer ação de violência contra os judeus, por exemplo, que desde o início do seu governo eram perseguidos e discriminados. 

Hitler temia que isso prejudicasse a imagem da Alemanha no mundo. Depois das Olimpíadas, tudo voltou ao que era antes e, em Novembro de 1938, tivemos a horripilante 'Noite dos Cristais', quando lojas e residências de milhares de judeus alemães e austríacos foram atacadas e destruídas.

Hendrik ama os holofotes e ambiciona o sucesso, o que o levará a colaborar com o regime nazista para não perder o seu status de ator mais popular da Alemanha.

O brutal acontecimento resultou, entre outras coisas, no envio de cerca de 30 mil judeus para três campos de concentração nazistas (Dachau, Buchenwald e Sachsenhausen). 

Obs4: A informação sobre o envio de 30 mil judeus para campos de concentração foi retirada do livro 'Hitler', de Ian Kershaw, Companhia das Letras, 2014, página 491, 3a. reimpressão.

Logo, embora seja Hendrik quem interpreta Mephisto, o verdadeiro Mephisto do filme é o regime nazista, representado pela figura de Goring, que usa do seu poder para cooptar intelectuais, escritores, poetas, atores e usá-los em benefício do regime. 

Obs5: Esse apoio que Goring deu para Grundgens também ocorreu em função da sua grande rivalidade com Joseph Goebbels, que assumiu o controle de toda a área cultural do regime nazista. Ter alguém como Grundgens sob a sua proteção era uma maneira de Goring penetrar nesse setor da administração, que era controlado por Goebbels. Afinal, havia muita rivalidade entre os principais líderes nazistas abaixo de Hitler, como acontecia entre Goebbels, Himmler e Goring. Este último foi, quase até o fim, o número dois do nazismo, caindo em desgraça apenas na época em que a Força Aérea alemã (Luftwaffe), que ele comandava, revelou-se incapaz de proteger o país dos pesados bombardeios dos Aliados.

Assim, Hendrik terá o seu passado esquerdista esquecido e perdoado pelos nazistas. Nos anos anteriores à ascensão de Hitler ao poder ele havia se envolvido com um grupo teatral (Teatro de Arte, em Hamburgo) que tentou produzir peças, de caráter brechtianas, voltadas para despertar a consciência política dos trabalhadores, mostrando a exploração e a pobreza em que eles viviam.

Tal como aconteceu com Hendrik, a escultora Laura (Teri Tordai) é mais uma das artistas que passou a colaborar com o regime nazista, fazendo obras que estavam de acordo com as concepções artísticas dos mesmos. O historiador britânico Ian Kershaw disse que a maioria dos artistas alemães da época adotou o mesmo comportamento.

Porém, Goring vai deixar isso de lado, mas é claro que isso tem um preço, bastante elevado, para Hendrik, que é obrigado a mentir de forma descarada para a imprensa estrangeira sempre que concede entrevistas, passando para a mesma uma imagem positiva do cenário artístico e cultural da Alemanha Nazista. 

Enquanto isso, quando se reúne internamente com a sua equipe ou com amigos, ele reclama da mediocridade do teatro alemão, pois os melhores autores foram embora do país ou estão sendo censurados. Desta forma, fica claro que Hendrik fez um acordo com o Mal, ou seja, com o regime nazista. 

Hendrik tornou-se, assim, o Fausto moderno. 

Hendrik também se dedica intensamente a atuar como Mephisto, o que ele fazia antes mesmo dos nazistas chegarem ao poder, e pediu à própria esposa de Goring (Lotte Lindenthal, que também era atriz e o ajudava a influenciar ao marido em seu favor) para que pudesse interpretar o personagem, o que ele conseguirá e com grande sucesso.

Obs6: A personagem de Lotte Lindenthal foi baseada na esposa de Goring, que se chamava Emma. Ela foi atriz e cantora de ópera e faleceu em 1973, aos 79 anos. 

Assim, o protagonista é caracterizado pela dualidade, pois Hendrik pensa que é Fausto e Mephisto ao mesmo tempo. Ele é o homem que ambiciona a fama e o sucesso acima de tudo, como ele mesmo reconhece, mas que também interpreta o demônio (Mephisto/Goring) que o seduziu e o forçou a se vender, remetendo ao regime nazista.

No início de sua carreira na capital, Berlim, Hendrik atuava em peças de teor político e que criticavam a exploração dos trabalhadores pelos capitalistas. Com a ascensão dos nazistas isso acabou, até porque Hitler e o nazismo se aliaram com o Grande Capital para poder viabilizar seu projeto racista e imperialista. O gás Zyklon-B, por exemplo, usado nos campos de extermínio, foi produzido pelas maiores indústrias químicas alemãs.

Quem percebe essa dualidade de Hendrik é a escultora Laura, que deseja fazer um busto dele. E quando ela lhe pergunta 'De que é feito o seu rosto?', ele responde 'Talvez uma mistura'. Sim, isso mesmo, pois Hendrik é uma mistura de Fausto e Mephisto, Racionalismo e Irracionalismo, Arte e Horror.

Em vários momentos também vemos Hendrik adotando uma postura de caráter mais humano com os funcionários do Teatro Estatal, perguntando sobre a família deles, querendo saber se está tudo bem com todos. Assim, ele tenta preservar o que ainda tem de humano em seu interior.

Entendo que essa dualidade não é um aspecto exclusivo de Hendrik e que vemos apenas no filme 'Mephisto', mas é algo que ocorre normalmente com a maioria das pessoas, independente sob qual regime político elas vivem, não importando se é o nazismo, fascismo, stalinismo, franquismo ou sob ditaduras militares. 

A imensa maioria das pessoas procura se adaptar à situação existente e simplesmente tenta dar continuidade às suas vidas, tentando melhorá-las ou preservando o que possuem. Assim, os 'Hendriks' do mundo são muito mais numerosos do que se pensa. Eles são a maioria, de fato, é o que parece dizer István Szabó neste belíssimo filme. 

Obs7: Outros dois filmes que tratam disso são os excelentes 'Lacombe Lucien' (1974), de Louis Malle, e, sob uma outra perspectiva, o 'Éloge de l'amour' (2001), de Godard.

Hendrik interpreta o Mephisto, que tenta convencer Fausto a se colocar a seu serviço, em troca de uma série de benefícios (fama, sucesso, amor).

Essa dualidade está presente, também, no próprio nome dele, que originalmente era Heinz, mas ele exige ser chamado de Hendrik. Talvez isso tenha a ver com o significado de cada um dos nomes, pois Heinz significa 'senhor do lar' e Hendrik significa 'homem de grande influência.'. 

Oras, no regime nazista, Hendrik não é o 'senhor do lar',não é ele quem dá as ordens. Estes são os líderes nazistas, como Hitler, Goebbels, Goring e Himmler. Porém, Hendrik passa a ter muita influência, na medida em que colabora com o nazismo, falando em nome do mesmo na área cultural, tornando-se um ator de muito sucesso e dirigindo o Teatro Estatal de Berlim. 

Mas ele, Hendrik, de fato, não tem poder algum.

Em uma sequência, isso fica bastante claro, quando vemos o próprio Goring dizendo o seguinte para Hendrik:

"Seu Mephisto ocupa minha mente. Você o trouxe vivo. Ele é um cara incrível. Não existe um pouco dele em todos nós? Quer dizer, não existe um pouco de Mephisto em todo alemão? Nossos inimigos não amariam se não tivéssemos nada além da alma de Fausto? Não, Mephisto também é um herói nacional alemão. É apenas algo que não podemos dizer às pessoas'.

Assim, Goring está dizendo que todos nós, humanos, teríamos algo de Mephisto (maligno) em nossa alma, e que os alemães somente conseguem se fazer respeitar pelas outras nações por meio do uso da força, da mentira e da vilania, mas que isso é algo que não pode ser dito para as pessoas, o que revela o caráter cínico do nazismo.

Hendrik interpretando Mephisto durante o regime nazista. Este é um dos grandes momentos do filme, com Klaus Maria Brandauer tendo uma performance fantástica.
 

Obs8: Hitler, por exemplo, vivia fechando acordos e assinando tratados com outros países (como o Pacto de Munique, de Setembro de 1938) para, logo depois, rasgar aos mesmos e continuar expandindo o poder da Alemanha via anexações territoriais ilegais e guerras. E depois assinava outro tratado e o desrespeitava novamente. Seu cinismo não tinha limites, tal como a sua crueldade.

Nesta mesma sequência, que se desenvolve sob uma pintura da época do romantismo alemão, Goring lhe pergunta porque o aperto de mão, dele, Hendrik, é tão mole, tão fraco. Assim, Goring sabe que ele, Hendrik, ainda não se converteu inteiramente aos ideais brutais do nazismo, dando-se conta de que o ator ainda consegue preservar uma parte da sua humanidade, a qual ele, Goring, deseja destruir. Goring e os líderes do nazismo sabiam que este somente poderia triunfar se destruísse o que havia de humano nas pessoas.

Portanto, o filme passa a ideia de que Hendrik não se rende totalmente ao nazismo, pois ao mesmo tempo em que colabora com o regime nazista, ele também se preocupa em ajudar e proteger amigos esquerdistas que são perseguidos, como são os casos de Otto Ulrichs e Beck, dois antigos membro do grupo teatral esquerdista de Hamburgo.

Além disso, ele mantém o seu relacionamento com Juliette e não se divorcia de imediato da sua esposa, Barbara, que foi embora da Alemanha quando os nazistas subiram ao poder e que se uniu a um grupo de exilados antinazistas na Holanda, onde publicava um jornal que condenava o regime nazista. Ele até chega a se encontrar com ela novamente, em Paris, mais tarde.

Dora Martin tenta convencer Hendrik a abandonar a Alemanha após a ascensão dos nazistas ao poder, mas ele se recusa, pois não quer abrir da fama e do sucesso que alcançou.

Barbara chega, inclusive, a tentar convencê-lo a abandonar a Alemanha, mas ele se recusa, dizendo que é um ator e que precisa da língua alemã para poder expressar a sua arte e que isso somente é possível na Alemanha. E no último momento de sua estadia em Paris, ele se pergunta 'Liberdade? Para que?'. E daí ele entra no metrô, indo para os subterrâneos, para a escuridão, voltando para as trevas, para a Alemanha Nazista. Portanto, ele teve a chance de fugir, mas não o fez.

E quando ele é avisado, pelo próprio Goring, de que Juliette está correndo perigo, Hendrik pede para que ela possa ir embora da Alemanha em segurança, no que é atendido. Goring não faz isso por ter bons sentimentos, mas porque é assim que ele consegue manter Hendrik atuando da maneira que mais interessa ao regime nazista.

Essa é a cenoura que Goring segura em uma mão e que oferece para Hendrik, ao mesmo tempo em que a outra mão segura um porrete. E isso funciona, porque tal como o próprio Hendrik reconhece, em uma conversa com Juliette, ele é um covarde. É assim que pessoas poderosas agem: Comporte-se e será premiado, rebele-se e será punido. Hendrik adapta-se a essa situação, tal como a maioria das pessoas.

Hendrik também se questiona, em vários momentos, se o que está fazendo é correto. A sua consciência, portanto, não o abandona totalmente, ele não se torna um zumbi, como se fosse parte de um rebanho que repete, mecanicamente, tudo o que o regime nazista e seus líderes afirmam. Seu espírito crítico ainda existe, mas o seu desejo de fama e sucesso também são muito fortes.

Goring pediu para que Hendrik, que havia acabado de interpretar Mephisto, comparecesse ao seu camarote. O personagem que representa o mal é recebido pelo governante que representa um regime de governo maligno. O Mal se encontra com o Mal.

E o que o nazismo e Goring desejam é justamente destruir o que ainda resta de humano em Hendrik. Logo, embora seja o ator que interprete Mephisto (e Goring vive chamando Hendrik por esse nome em várias situações), o verdadeiro Mephisto da história é o próprio Goring, ou seja, o regime nazista, que está tentando fazer com que Hendrik, o Fausto, renda-se totalmente ao poder brutal do regime. 

Essa relação de submissão de Hendrik em relação ao regime nazista e a Goring ficam bem evidentes em uma sequência na qual o ator vai até o local em que Goring trabalha. É um salão imenso, vazio, no qual Hendrik sente-se inferiorizado, tanto que chama Goring de 'Excelência' quando entra no local.

Daí, ele pede ao general que o ajude a descobrir o que aconteceu com seu amigo Otto Ulrichs, que desapareceu. Goring grita com ele dizendo que ele não deveria se envolver com um traidor, diz que poderá esmagar Hendrik como se este fosse um inseto e no fim ainda grita 'Saia, ator'. Hendrik percebe, ali, que ele não passa de uma marionete nas mãos dos nazistas, se submete e vai embora em silêncio. 

Aliás, é interessante notar como Szabó informa sobre a maneira como os nazistas procuravam se livrar daqueles que os incomodavam. Neste momento, tais pessoas eram levadas para dentro de um veículo, um militar entrava e se sentava ao lado. Daí, a vítima poderia ser executada (Hans Miklas), expulsa do país (Juliette) ou humilhada (Hendrik).

Logo, o relacionamento central que temos no filme, em torno do qual tudo gira, é aquele que se desenvolve entre Hendrik e Goring, que também é entre Arte e Política, Cultura e Estado, Homem e Demônio.

Afinal, somos, mesmo, simultaneamente, Fausto e Mephisto, tal como perguntou Goring? A pergunta continua ressoando em nossas mentes depois que este belíssimo filme 'termina'.

Hendrik e Nicoletta se casam e promovem uma grande festa que contou com a participação de Goring.

Informações Adicionais!

Título: 'Mephisto';

Diretor: István Szabó;

Roteiro: Péter Dobai e István Szabó; Baseado no livro 'Mephisto', de Klaus Mann;

Gênero: Drama;

Duração: 144 minutos;

Ano de Produção: 1981;

País de Produção: Alemanha, Áustria e Hungria;

Música: Zdenkó Támassy;

Fotografia: Lajos Koltai;

Montagem: Zsuzsa Csákany;

Elenco: Klaus Maria Brandauer (Hendrik Hofgen); Krystyna Janda (Barbara Bruckner); Karin Boyd (Juliette Martens); Rolf Hoppe (Marechal; Goring); Gyorgy Cselhami (Hans Miklas); Péter Andorai (Otto Ulrichs); Christine Harbort (Lotte Lindenthal); Ildikó Kishonti (Dora Martin); Ildikó Bánsági (Nicoletta von Niebuhr).

Grupo de jovens com máscaras de Mephisto (e dois com máscaras de animais) dançam em torno de Hendrik. A música que toca é 'Im Grunewald', de Franz Meissner.

Links:

István Szavó e Klaus Maria Brandauer recebem o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1982:

https://www.youtube.com/watch?v=u8BmzGGZB0s

A história de Gustaf Grundgens:

https://www.dw.com/pt-br/1942-estreia-de-fausto-com-gustaf-gr%C3%BCndgens/a-581639

Gustaf Grundgens e o caso 'Mephisto':

https://www.yanezmagazine.com/gustaf-grundgens-mephisto/

Entrevista com István Szabó:

https://oglobo.globo.com/cultura/diretor-istvan-szabo-diz-que-se-considera-um-porta-voz-de-sua-geracao-13292432

'Mephisto', o livro:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Mephisto_(livro)

Erika Mann: Fé obstinada na democracia e na liberdade:

https://www.goethe.de/ins/br/pt/kul/mag/22118468.html

Klaus Mann denunciando a barbárie nazista:

https://luiznazario.blog/2019/01/02/klaus-mann-cultura-e-bolchevismo-cultural/

Hendrik, que sempre amou os holofotes, no final ficará incomodado com os mesmos, pois se tornou apenas uma marionete nas mãos dos nazistas.

Trecho do filme - Klaus Maria Brandauer interpretando Mefisto (legendado em português):


Trailer do filme:

István Szabó e Klaus Maria Brandauer recebem o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1982:


 

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