'Milou en Mai': Louis Malle fez uma sátira inteligente e sensível sobre a pequena burguesia e o Maio de 68 francês!
'Milou en Mai': Louis Malle fez uma sátira inteligente e sensível sobre a pequena burguesia e o Maio de 68 francês! - Marcos Doniseti!
Louis Malle, De Gaulle, a Nouvelle Vague e o Maio de 68!
'Milou en Mai' (Loucuras de uma Primavera) é um dos melhores filmes sobre os acontecimentos do Maio de 68 francês. Louis Malle foi um dos mais talentosos e inovadores cineastas franceses que surgiram durante a década de 1950, época em que também tivemos o início da Nouvelle Vague.
Inclusive, naquela época, muitos colocaram Louis Malle como um dos integrantes do movimento cinematográfico da Nouvelle Vague, o que nunca aconteceu.
Aliás, o próprio cineasta explicou isso, dizendo que tinha amigos entre os membros da Nouvelle Vague e algo em comum com a sua proposta cinematográfica (filmando nas ruas, com o uso de iluminação natural, à margem da grande indústria, com atores e atrizes da jovem geração), mas que nunca fez parte do movimento.
E diferente dos membros da Nouvelle Vague, que 'se formaram' em Cinema assistindo aos filmes na Cinemateca (criada e dirigida por Henri Langlois) e nos cineclubes de Paris, Louis Malle estudou cinema no IDHEC (Instituto de Altos Estudos Cinematográficos), que foi criado em 1943 pelo cineasta Marcel L'Herbier.
O seu primeiro longa-metragem foi o brilhante 'Ascensor para o Cadafalso' (1958), que teve Jeanne Moreau como protagonista e que conta com uma belíssima trilha sonora de autoria do genial Miles Davis. Aliás, o uso do Jazz como trilha sonora foi uma das inovações deste belo filme de Malle.
O padre local vai fazer uma oração para a matriarca, mas se revela muito interessado nas notícias que a emissora de rádio transmite sobre os acontecimentos de Paris. |
Louis Malle, falecido em 1995, com apenas 63 anos, construiu uma obra brilhante, realizando filmes belíssimos, de inúmeros e variados gêneros cinematográficos e sobre muitos temas, incluindo romance, drama, erótico, filme político, comédia, aventura.
Além de 'Loucuras de uma Primavera' (1990) e 'Ascensor para o Cadafalso' (1958), também podemos citar 'Amantes' (1958), 'Zazie no Metrô' (1960), 'Trinta Anos Esta Noite' (1963), 'O Ladrão Aventureiro' (1967), 'Lacombe Lucien' (1974), 'Adeus, Meninos' (1987) e 'Perdas e Danos' (1992).
'Milou en mai' possui claros elementos de referência a clássicos da literatura, da obra de Anton Tchechov, em especial, do cinema, de Jean Renoir, da pintura, na obra de Pierre-Auguste Renoir (o Impressionismo), bem como da música, incluindo música erudita, Mozart e Debussy, e música popular francesa, representada por Georges Milton (a sequência na qual os personagens cantam e dançam 'La Fille du Bédouin' é impagável).
É bom ressaltar que o próprio Louis Malle se envolveu com os acontecimentos do Maio de 68 francês e participou da ação que foi desencadeada por outros cineastas e atores (Godard, Truffaut, Léaud, Lelouch, Polanski) no Festival de Cannes daquele ano.
Eles foram até Cannes com o objetivo de convencer a todos os participantes do mesmo a interromper o festival e a lutar junto com os operários e estudantes que paralisavam a França na época, em um movimento grevista que parou tudo no país durante três semanas. Desta maneira, e depois de algumas brigas, eles conseguiram encerrar o festival.
Françoise, interpretada pela filha de Miou-Miou, é um dos destaques do filme, fazendo perguntas que incomodam aos adultos, principalmente ao vovô Milou. |
Naquela época a França enfrentava uma grande greve geral, em Maio/Junho de 68, que mobilizou 10 milhões de trabalhadores, as universidades estavam ocupadas pelos estudantes. Assim, o governo De Gaulle estava ameaçado de ser derrubado e, para evitar isso, ele decidiu convocar novas eleições para o Parlamento francês. E para a surpresa de muitos o seu partido foi o grande vitorioso.
Porém, estava mais do que evidente de que ele não correspondia aos anseios de mudança e modernização de uma França que havia se modificado muito desde que ele se tornara o Presidente da República, em 1958.
Os filmes da Nouvelle Vague retrataram muito bem esse processo de mudanças que se desenvolveu na França, em especial, mostrando a emergência das mulheres na sociedade, com as mesmas adotando valores e um comportamento de maior independência em relação aos homens.
Neste período de 11 anos de governo De Gaulle (1958-1968) nós também tivemos o crescimento do consumismo, a importância cada vez maior de uma influente indústria cultural, de uma cultura pop jovem contestadora e libertária (o Rock dos Beatles, Stones, Bob Dylan, Jimmy Hendrix, The Who, The Doors, Jefferson Airplane, por exemplo).
Claire, sobrinha de Milou, demonstra amargura pela avó falecida. Ela vai ao enterro acompanhado da sua bela namorada, Marie-Laure, que irá se interessar por Pierre-Alain, filho de Georges. |
Também vimos a emergência de uma Nova Esquerda (maoístas, situacionistas, marxistas, anarquistas libertários, que rejeitavam a herança stalinista), da publicidade e propaganda que estimulava essas mudanças e tirava proveito (com mais consumo) deste processo.
O filme de Godard 'A Chinesa' (1967), que antecipou o Maio de 68, tornou-se uma referência para esses novos grupos e, quando foi exibido nas universidades dos EUA no final da década de 1960, acabou influenciando os estudantes. Tornou-se comum que os estudantes se rebelassem logo após a exibição do filme de Godard.
Também tivemos uma crescente rejeição, por parte desta juventude, aos sistemas políticos, sociais e econômicos das duas grandes superpotências da época, os EUA e a URSS, que eram vistos como sendo essencialmente autoritárias e belicistas, promovendo guerras e invasões, como as do Vietnã/Indochina e a da Tchecoslováquia (com o fim do processo de liberalização chamado de 'Primavera de Praga').
E ainda tivemos o movimento dos Direitos Civis contra o regime de Apartheid e o racismo institucional que vigorava nos EUA (surgindo lideranças como Martin Luther King Jr. e Malcolm X), a emergência das lutas feministas, em defesa do Meio Ambiente, a formação dos Black Panthers.
Esta também foi a época da Contracultura e do Psicodelismo, com os Festivais de Monterey (1967) e Woodstock (1969), a solidariedade com a Revolução Cubana, a transformação de Che Guevara em um grande símbolo transnacional desta juventude que não aceitava o mundo tal como ele era: violento, belicista, autoritário, racista, machista, calculista, frio e mecanicista e que também devastava o meio ambiente.
Os filmes da Nouvelle Vague, de Godard em especial, retratam brilhantemente todo esse processo. E o jovem Louis Malle surgiu como cineasta na mesma época em que os críticos (os 'Jovens Turcos') da 'Cahiers du Cinéma' também iniciaram as suas carreiras de cineastas, sendo que suas propostas cinematográficas os aproximavam, embora Malle nunca tenha integrado o movimento.
Assim, o primeiro longa-metragem da Nouvelle Vague ('Nas Garras do Vício', de Chabrol) foi lançado no mesmo ano (1958) do primeiro longa de Louis Malle, que foi o 'Ascensor para o Cadafalso'. Neste momento, Jacques Rivette também filmava 'Paris nos Pertence', que devido à falta de recursos somente será finalizado e lançado em 1961 (graças à ajuda de Truffaut). E 1958 também foi o ano em que De Gaulle se tornou o Presidente da França.
Aliás, Godard chegou a filmar a visita de Eisenhower à França, desfilando ao lado de De Gaulle, em 1959, mas a cena foi censurada pelo governo francês e os dois não puderam aparecer em 'Acossado'.
E Louis Malle foi outro cineasta da mesma geração cujos filmes retrataram criticamente esse processo de mudanças que ocorre na França e no mundo industrializado do Ocidente neste período, realizado filmes sobre muitos destas questões, como a liberação feminina ('Les Amants', de 1958) e a xenofobia e o racismo ('Alamo Bay'/'A Baia do Ódio', de 1985).
E é justamente todo este cenário de mudanças, conflitos e contestação, que se desenvolve durante o Maio de 68 francês, que Malle sintetiza de forma leve e brilhante ao mesmo tempo neste filme excepcional. Ele faz uma sátira inteligente, leve, gostosa e despretensiosa, mas que é fiel aos acontecimentos do período e que arranca boas risadas de quem o assiste.
A Trama do Filme!
A história do filme se desenvolve em torno de uma família da pequena burguesia do interior da França (os Vieuzac). A matriarca da família morre quando ouve no rádio as notícias relativas aos violentos choques que ocorrem em Paris e em outros lugares da França, durante o Maio de 68, entre estudantes e operários, de um lado, e as forças policiais repressivas, de outro.
A
senhora Vieuzac é uma mulher bastante conservadora e que não suporta
esse tipo de acontecimento, sendo uma amante da ordem e do progresso,
ideia presente no Positivismo francês, criado por Auguste Comte no
princípio do século XIX e cujo lema era 'O Amor por princípio e a Ordem
por base; o Progresso por fim".
A morte da matriarca da família Vieuzac faz com que o seu filho mais velho, Emile (o Milou do título, interpretado pelo grande Michel Piccoli), que vive na pequena propriedade rural da família, cuidando da mesma, entre em contato com os outros membros da família: irmãos, irmãs, cunhados, noras, netos e netas, sobrinhos e sobrinhas, a fim de participarem do velório e do enterro da matriarca.
Emile 'administra' (na verdade, ele cuida do local) a propriedade rural, mas sem ter qualquer interesse em promover uma exploração econômica dos recursos da mesma, que incluem água, frutas, peixes, legumes, colmeia e vinhedo.
A gananciosa Camille (Miou-Miou) está sempre perguntando para a prima, Claire, se os bens da família são valiosos. |
Emile pesca lagostins, coleta frutos, produz vinho e mel. A produção é destinada para consumo próprio e a ideia de lucrar com tudo isso lhe é estranha. Ele também não tem automóvel e seu meio de transporte é uma bicicleta.
Portanto, o 'sessentão' Emile vive em harmonia com a natureza. Por isso mesmo, ele tem que se desfazer de alguns bens e se endividar para manter esse modo de vida, que está se tornando inviável, sendo destruído pela expansão e modernização do capitalismo em escala global.
Um exemplo dessas transformações se dá quando Camille pergunta para a prima, Claire, que é antiquária, se os móveis antigos da casa de campo, que é muito grande, uma mansão, possuiriam um grande valor e a mesma responde que não, explicando que isso acontece porque eles não cabem nos apartamentos modernos e pequenos que eram construídos naquela época.
Assim, os inúmeros membros da família Vieuzac, que nunca se encontram, a não ser quando morre alguém da família, acabam se reunindo para também discutir a divisão da herança familiar, o que irá desencadear inúmeros conflitos entre os mesmos.
Françoise, a neta de Milou, que caminha ao lado de Lily, esposa de Georges que adota um comportamento sexual mais liberal. |
Milou, em especial, é o principal defensor daquele modo de vida antigo, mas que vai se tornando cada vez mais inviável com a modernização capitalista que está em andamento na França e no mundo industrializado. Assim, ele se coloca contra a venda da casa e da propriedade rural, tal como defendem o seu irmão Georges, a sobrinha Claire e a sua filha Camille.
Essa situação também irá provocar algumas surpresas desagradáveis para eles, pois a matriarca tinha outros planos, os quais não havia informado para todos. E os membros da família possuem características de personalidade bem distintos, representando uma espécie de microcosmo da sociedade francesa da época.
Além de Emile/Milou, temos a sua filha Camille (Miou-Miou), gananciosa, que vive querendo se apropriar do máximo de bens da família (joias, pratarias...). Ela estará sempre perguntando se os bens da família possuem um grande valor monetário.
Camille entrará em conflito com Claire, sobrinha de Emile, cujos pais morreram em um acidente automobilístico quando ela tinha 8 anos de idade. Assim, ela terá direito à uma parte da herança em nome de sua mãe, que era irmã de Emile/Milou. Claire é uma antiquária, que namora uma bonita jovem, Marie-Laure, mas durante os dias em que eles permanecerão na propriedade rural ela verá a sua namorada se interessar por outro jovem, que é Pierre-Alain.
Daniel, o tabelião, informa aos familiares quais são os desejos da matriarca com relação à herança. Ela faz comentários sarcásticos no testamento e os herdeiros ainda terão uma desagradável surpresa. |
Pierre-Alain é filho de Georges, irmão de Milou, que é um jornalista que foi correspondente do jornal 'Le Monde' na Inglaterra, mas que acabou de ser demitido, fato este que ele esconde de todos, menos de Milou, a quem irá acabar contando sobre a demissão no final.
Georges vive preocupado com o que está acontecendo em Paris e com a reação do governo francês, o presidente Charles De Gaulle e o primeiro-ministro Georges Pompidou, e com os conflitos entre o governo, de um lado, e os estudantes e operários de outro.
Percebe-se que Georges é um gaullista meio que desiludido, pois ele diz que De Gaulle está ultrapassado e que comete muitos erros, insistindo em formas ultrapassadas de resolução dos conflitos políticos e sociais, como o uso do referendo.
Georges (interpretado por Michel Duchaussoy, que trabalhou em vários filmes de Chabrol, incluindo 'Que la Bête Meure' e 'Juste Avant la Nuit') é casado com a bonita inglesa Lily, uma atriz que adota uma postura de vida mais libertária e próxima da subcultura Hippie, usando roupas indianas e que se sente atraída pela liberdade sexual que emergiu neste período.
A libertária Lily (interpretada por Harriet Walter) se envolve com outros homens, fato este que é aceito por Georges, que diz para a empregada (Adéle) da família Vieuzac que o casamento deles é bem diferente do tradicional, não sendo marcado pela monogamia.
Adéle, por sua vez, é uma empregada que foi a grande amiga da matriarca da família e tem um envolvimento com Milou. Ela será beneficiada pela matriarca na divisão da herança, pois ela ficará com 25% de tudo, o que deixa os outros três herdeiros (Emile, Georges e Claire) totalmente perplexos.
Enquanto isso, Pierre-Alain é um jovem ativista que acabou de chegar de Paris, onde participou intensamente das manifestações estudantis, que foram duramente reprimidas pela Polícia.
Ele contagia a todos com o seu discurso em defesa do amor, da liberdade individual, condenando a sociedade capitalista e industrial, que é marcada pela violência, pela destruição da natureza, pela repressão e pela guerra. Com isso, ele entrará em choque com o seu pai, Georges, um defensor do presidente De Gaulle.
Georges puxa a cantoria (música 'La Fille du Bédouin'), todos entram na farra e velório da matriarca é deixado de lado em uma das melhores sequências do filme. |
Pierre-Alain se envolve com a jovem Marie-Laure, o que irá provocar uma crise de ciúmes em Claire, que brigará com a sua namorada em função disso. A jovem e bonita Marie-Laure é outra personagem que também adota uma postura mais livre sexualmente, pois namora Claire e, mesmo assim, ela se envolve com Pierre-Alain, mostrando a sua ausência de preconceitos com relação aos gêneros.
Também temos a presença de Daniel, que é o tabelião responsável por fazer a leitura do testamento deixado pela matriarca da família Vieuzac e que informará aos herdeiros quais são as vontades e condições que foram deixadas pela mesma.
Daniel e Camille também tem um envolvimento romântico, que mal escondem dos demais, chegando a trocar carícias e confidências na frente dos outros membros da família e dos filhos dela (Françoise e dois gêmeos pequenos).
O marido de Camille, o médico Paul, mal demonstra interesse pela esposa e pensa apenas em seu próprio trabalho. Paul sequer fica na propriedade para participar do velório e do enterro, sob a alegação de que os pacientes dele não estão em greve.
O industrial Bernard Boutelleau deixa aos membros da família Vieuzac atemorizados ao contar algumas mentiras sobre a expansão dos comunistas, que estariam prestes a tomar o poder no país. |
Posteriormente, aparece também a figura de um caminhoneiro, Grimaldi (interpretado pelo humorista Bruno Carette, que faleceu pouco antes do lançamento do filme, que foi dedicado a ele), que deu carona para Pierre-Alain chegar até o local e que acaba ficando com a família para o velório e enterro da matriarca da família.
Até mesmo o padre local acaba assumindo a defesa das manifestações estudantis, sendo que chegou a sugerir que a escola local mudasse de nome, passando a se chamar Che Guevara. Outro destaque do filme é Françoise, filha de Camille, que sempre faz as perguntas mais impertinentes e nos momentos mais inconvenientes, criando alguns dos melhores momentos do filme. Françoise foi interpretada pela filha de Miou-Miou e se saiu muito bem.
A família quer enterrar logo a matriarca, mas como está tudo parado na França e até os policiais e os coveiros entraram em greve, os membros da família Vieuzac acabam vivendo alguns dias da mesma maneira que os estudantes de Paris, ou seja, como se não existissem mais leis, regras, governo, ficando livres para beber, fumar uns baseados, fazer sexo, conversar livremente, sem restrições e, também, sem se preocupar com fidelidade ou monogamia.
Assim, eles conversam, cantam, dançam, bebem, fumam, dão muitas risadas e fazem amor.
Atemorizados pelo discurso mentiroso de Bernard e sua esposa, a família Vieuzac sai da casa e vai procurar abrigo em uma mata próxima. |
Logo, os membros desta família pequeno burguesa, majoritariamente conservadora, adota uma postura bem mais desinibida (o consumo de champagne, vinho e de maconha ajudam nisso, é claro...) e reproduz alguns dos comportamentos dos estudantes de Paris.
Em uma sequência sensacional e belamente filmada por Malle, e que parece claramente influenciada pelo Surrealismo, lembrando aos filmes do genial Buñuel, eles não perdoam nem mesmo o local em que a matriarca está sendo velada (ver o vídeo abaixo).
Aliás, velar e enterrar a matriarca é tudo o que os membros da família acabam não fazendo. Eles acabam se preocupando muito mais em resolver as diferenças relacionadas com a herança familiar e em se divertir. Eles praticamente esquecem que estão todos ali para velar e enterrar a matriarca da família, o que deixa chocadas as mulheres que são amigas e vizinhas da família que fazem uma visita à residência, para poder velar a matriarca.
E até os pequenos gêmeos, filhos de Camille, sentem que todos enlouqueceram naquela família. Assim, os ares da Paris amotinada e revolucionada chegaram até aquela família da pequena burguesia do interior da França, o que ocorre por meio de Pierre-Alai, que participou das manifestações.
Porém, as contradições dessa postura, momentaneamente libertária dos membros da família, afloram quando um industrial, Bernard Botteleau, e a sua esposa, aparecem na casa dizendo, sem ter como provar, que os comunistas estão tomando o poder na França, que De Gaulle e Pompidou fugiram da França e que tanques soviéticos estão se aproximando da fronteira francesa.
Os membros da família Vieuzac se abrigam em uma caverna, na qual vemos algumas pinturas rupestres. |
O casal difunde uma série de boatos mentirosos, como o de que os comunistas estão se aproximando do local e que irão fuzilar a todos presentes ali. O caminhoneiro Grimaldi diz que também acontecerão estupros. E a gananciosa e egoísta Camille reforça o discurso, dizendo que todos devem ir embora da casa.
Desta maneira, o casal burguês aterroriza a todos da família Vieuzac com essas Fake News e, assim, os seus membros decidem sair da casa e entrar na mata localizada nos arredores, em busca de segurança.
Nessa sequência, Malle mostra algo que é muito comum na história, que é a reprodução de um discurso mentiroso que é marcado pela histeria anticomunista e que sempre é usado para aterrorizar a pequena burguesia, fazendo com que a mesma se alinhe com a Grande Burguesia, passando a defender os interesses da mesma.
Isso já aconteceu em muitos momentos da história pelo mundo afora, inclusive no Brasil recentemente. Qualquer semelhança não é mera coincidência.
A empregada Adéle informa aos membros da família sobre os acontecimentos mais recentes, dizendo que a Greve Geral terminou e que a situação no país se normalizou. |
Desta maneira, os membros da família Vieuzac, atemorizados e sem saber, de fato, o que está acontecendo na França (a casa ficou sem energia e não há como ouvir as notícias pelo rádio), decidem sair da casa e entrar na mata, em busca de segurança.
Porém, Malle mostra que eles entram em contradição total com aquilo que diziam um pouco antes, ou seja, que a exploração dos trabalhadores deveria ser abolida (em uma sequência repleta de ironia...), tal como o casamento, e que as pessoas deveriam viver em harmonia com a natureza, sem se preocupar em enriquecer.
Portanto, o compromisso dos Vieuzac com uma nova forma de vida era meramente retórico e quando acreditaram que poderiam ser vítimas deste processo revolucionário, eles viraram as costas e se voltaram contra o mesmo, passando a desejar que De Gaulle retomasse o controle da situação.
Esta parece ser, claramente, a explicação que Louis Malle dá para o que aconteceu na própria França naquela época.
Os membros da família Vieuzac se despedem após o enterro da matriarca no cemitério local. As filmagens aconteceram no 'Chateau du Calauoé', localizado no departamento de Gers (sudoeste da França). |
O TRECHO A SEGUIR CONTA O FINAL DO FILME!
No fim, eles serão informados, pela empregada Adéle, de que havia ocorrido uma gigantesca manifestação em defesa de De Gaulle em Paris, que a Greve Geral havia terminado e que a situação na França estava se normalizando.
Os membros retornam para a sua residência, enterram a matriarca, se despedem e, no final, vemos Milou dançando com a sua mãe, em uma cena tipicamente surrealista deste belíssimo filme do mestre Louis Malle. E quando o filme termina a vontade que fica é a de assistir ao mesmo novamente.
Imperdível.
Informações Adicionais!
Título: Milou en Mai (Loucuras de uma Primavera);
Diretor: Louis Malle;
Roteiro: Louis Malle e Jean-Claude Carrière;
Gênero: Comédia dramática; Sátira política e social;
Ano de Produção: 1989; País de Produção: França;
Duração: 107 minutos; Música: Stéphane Grappelli;
Fotografia: Renato Berta;
Elenco: Miou-Miou (Camille); Michel Piccoli (Milou Vieuzac); Michel Duchaussoy (Georges); Bruno Carette (Grimaldi); Paulette Dubost (Sra. Vieuzac); Harrite Walter (Lily); Rozenne Le Tallec (Marie-Laure); Dominique Blanc (Claire); François Berléand (Daniel); Martine Gautier (Adele); Jeanne Henry (Françoise).
Milou dança com a mãe, já falecida, em uma cena tipicamente surrealista do belo filme de Louis Malle. |
Links:
Maio de 68 francês - Quando o Festival de Cannes foi interrompido:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/11/cultura/1526039729_424562.html
O Maio de 68 francês:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/23/cultura/1524504798_329892.html
Informações sobre 'Milou en mai':
https://www.imdb.com/title/tt0097884/
O Maio de 68 francês - Programa 'Panorama', da TV Cultura de 03/05/2018:
https://www.youtube.com/watch?v=gD_dwBarV50&t=270s
Auguste Comte e o Positivismo:
https://www.historiadomundo.com.br/idade-contemporanea/auguste-comte.htm
'La Fille du Bédouin' (do filme 'Le Comte Obligado'; 1934):
https://www.youtube.com/watch?v=lTtqkDoo4I0
Trecho de 'Milou en mai':
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