'Trans-Europ-Express': Alain Robbe-Grillet e o seu cinema experimental que influenciou Godard! - Marcos Doniseti!
A trajetória de Alain Robbe-Grillet!
Além de ter seguido a carreira de cineasta, Alain Robbe-Grillet foi um dos principais escritores de um movimento literário que ficou conhecido como o 'Nouveau Roman' (Novo Romance), expressão que foi criada por jornalistas franceses e não pelos escritores que se conectavam a uma iniciativa de promover uma radical transformação da literatura.
Esse 'movimento' literário se desenvolveu na França durante a década de 1950 e, além do próprio Robbe-Grillet, os seus nomes mais importantes foram Marguerite Duras, Michel Butor, Claude Ollier, Philippe Sollers, Claude Simon, Robert Pinget e Nathalie Sarraute. Aliás, esta última é considerada, pelos demais autores, como sendo uma precursora do movimento.
O reconhecimento da importância do Nouveau Roman se deu, entre outros fatores, pela conquista do Prêmio Nobel de Literatura, em 1985, por Claude Simon. O movimento também é reconhecido como o último grande momento de renovação da Literatura francesa do Pós-Guerra, vindo depois do Surrealismo e do Existencialismo.
A partir do final da década de 1950, dois dos principais nomes do movimento passaram a escrever roteiros para o Cinema. Assim, Marguerite Duras escreveu o roteiro de 'Hiroshima Mon Amour' (1959), dirigido por Alain Resnais. Duras, depois, deu sequência a uma produtiva carreira de cineasta, tendo dirigido 21 filmes no total.
E o mesmo aconteceu com Robbe-Grillet, que passou a escrever para o Cinema, sendo ele o autor do roteiro de 'O Ano Passado em Marienbad' (1961), filme que também foi dirigido por Alain Resnais, um cineasta francês que sempre recorreu a escritores para elaborar os roteiros dos seus filmes.
O roteiro de 'O Ano Passado em Marienbad' se baseou em um livro de mesmo título de autoria do próprio Robbe-Grillet, e o filme foi lançado em 1961, sendo que o mesmo teve um grande impacto na época, tal como havia acontecido com 'Hiroshima Mon Amour'. O roteiro de Robbe-Grillet chegou a ser indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Original em 1962.
Quanto a 'Trans-Europ-Express', este foi o segundo filme dirigido por Robbe-Grillet, que havia estreado em 1963, com o "L'Immortelle".
No total, Robbe-Grillet dirigiu 10 filmes, que exerceram uma significativa influência sobre a obra de Godard, que sempre foi um grande admirador da obra literária e cinematográfica de Robbe-Grillet.
Algumas frases de Robbe-Grillet ajudam a compreender a sua forma de escrever e de dirigir os seus filmes, como:
- "A memória pertence à imaginação";
- "Cada romancista, cada romance deve inventar a sua própria forma";
- "A pornografia é o erotismo dos outros";
- "Um romancista é alguém que confunde a sua própria vida com a de seus personagens".
Desta maneira, desde o seu primeiro filme, Robbe-Grillet irá criar um cinema bastante experimental, levando para o mesmo características que estão presentes em sua obra literária, como a mistura de realidades distintas e personagens que não estão muito bem definidos, dando ainda aos sujeitos e objetos a mesma importância na 'trama', rompendo com a estrutura e a narrativa do romance e do cinema tradicionais.
E 'Trans-Europ Express' se tornou o mais popular dos 10 filmes que Robbe-Grillet dirigiu entre 1963 e 2006.
A bela jovem que se senta no mesmo compartimento de Elias no trem também é imaginada como uma personagem do filme sobre o qual Marc, Jean e Lucette conversam. |
A trama do filme!
A história (ou histórias...) de 'Trans-Europ-Express' se desenvolve durante uma viagem de trem que vai de Paris a Antuérpia (Bélgica) e a mesma é contada pelo próprio Robbe-Grillet (cujo personagem se chama Jean), junto com Paul Loyet, (que interpreta Marc, o produtor do filme imaginário) e com a esposa de Grillet (Catherine), que interpreta a assistente Lucette.
Assim, enquanto assistimos ao filme nós vemos os três, durante a viagem, debatendo sobre o rumo e as características da história, mudando a trajetória da mesma em várias oportunidades.
Tudo começa quando Marc elogia o trem no qual irão viajar e diz que o mesmo seria um ótimo local para se fazer um filme. Depois, quando Marc reconhece o ator Jean-Louis Trintignant, que entra no trem, ele, Robbe-Grillet (Jean) e Lucette irão começar a imaginar como seria um filme no qual o famoso ator seria o protagonista.
E daí eles passam a pensar no tipo de história que iriam produzir, decidindo que a mesma seria uma história policial envolvendo um traficante de drogas que deve levar uma valise com cocaína de Paris para Antuérpia, cidade belga conhecida por ser um grande centro de comercialização de diamantes.
A partir daí se estabelece uma conexão direta entre o filme ao qual estamos assistindo e aquele sobre o qual Jean/Grillet, Lucette e o produtor Loeyt estão conversando. E as duas histórias acabam se misturando, sendo que em vários momentos não fica claro a qual delas estamos vendo. E ainda temos cenas na qual vemos Jean-LouisTrintignant e Marie-France Pisier interpretando eles mesmos.
Portanto, o filme possui uma estrutura fragmentária, sendo que os três envolvidos na criação deste filme imaginário vivem promovendo mudanças na trama o tempo inteiro, cortando cenas, alterando os acontecimentos e mudando os diálogos do mesmo. Desta forma, fica muito difícil ao espectador descobrir qual é, afinal, o filme a que está assistindo.
E tudo isso fica mais confuso porque os protagonistas das duas histórias são os mesmos: Jean-Louis Trintingnant, que se chama Elias no filme imaginado por Jean-Grillet/Lucette/Produtor, e a belíssima e sensual Marie-France Pisier, que interpreta Eva no filme criado por Jean-Grillet/Lucette/Produtor.
No início, vemos Elias, que irá levar a cocaína até Antuérpia, comprando revistas com imagens de mulheres sensuais em uma banca de jornal que fica na estação ferroviária de Paris (Gare du Nord).
Elias também compra uma valise para poder transportar a droga, bem como adquire alguns quilos de açúcar, coloca os mesmos na valise e troca a mesma por outra com um integrante da quadrilha de traficantes antes de subir ao trem, imaginando que nesta nova valise estará a cocaína que levará até a Bélgica.
Durante a viagem de trem, Grillet/Marc/Lucette conversam sobre o filme imaginário, que é o mesmo que estamos assistindo, e vão falando sobre o rumo que o mesmo tomará, promovendo mudanças na história em vários momentos.
Assim, eles imaginam uma bela e jovem mulher que senta no mesmo compartimento de Elias e que, inicialmente, rouba a valise dele, mas depois eles mudam de ideia.
Com isso, vemos as duas cenas, uma na qual a bela jovem rouba a valise de Elias e outra na qual isso não aconteceu. E a assistente Lucette é a responsável por estar sempre questionando Jean e Marc a respeito das inconsistências e contradições da trama que eles imaginam.
Logo, o filme trata da própria forma como os filmes são escritos e realizados, pois é evidente que durante a elaboração de um roteiro são feitas inúmeras mudanças na história. Assim, a metalinguagem está presente neste filme de Robbe-Grillet.
Na trama imaginada pelo trio nós vemos que Elias irá se hospedar em um hotel de Antuérpia (Hotel Miro). No caminho até o mesmo temos uma cena que reforça a ideia de que temos estamos assistindo a dois filmes em vez de apenas um, que ocorre quando Elias para antes de atravessar uma avenida.
As pessoas que vemos ao lado dele antes de atravessar já não estavam mais quando ele atravessa a avenida, como se elas tivessem evaporado.
Afinal, quem estava nesta cena? Trintignant ou Elias? E qual Elias aparece nesta cena, o real ou o personagem criado por Jean, Marc e Lucette? E quantas cenas nós vimos? Uma ou duas? Bem, se lembrarmos da frase de Robbe-Grillet a respeito do fato de que a vida de um romancista e a dos seus personagens muitas vezes se misturam, então vemos duas ou mais cenas, sem dúvida.
E isso sugere que uma das cenas mostra o Elias 'verdadeiro' e a outra cena mostra o Elias que foi imaginado por Jean e Marc depois que viram JL Trintignant no trem em que viajavam e pensaram no ator como sendo o ideal para interpretar Elias no filme que eles imaginaram. Ou ainda o Elias que estamos vendo é fruto dos sonhos de Trintignant, do próprio Elias ou então do Elias que foi criado por Marc, Jean e Lucette.
Em um outro momento, durante a viagem de trem, também vemos Elias atirando várias vezes em pessoas que não vemos quem são, mas que devem ser policiais, mas logo depois vemos que Trintignant (ou Elias...) estava dormindo.
Assim, ficamos na dúvida se aqueles tiros foram disparados, mesmo, ou se foi um sonho do ator (Trintignant) ou do personagem (Elias) ou do Elias verdadeiro, não ficando claro a fronteira entre eles. A imagem de Elias no banheiro do apartamento em que se hospeda em Antuérpia mostra três imagens dele, o que reflete o caráter fragmentário da trama do filme e do próprio personagem.
Uma característica da literatura criada por Robbe-Grillet e que também está presente neste filme é a importância que os objetos possuem na (s) trama (s). Estes são tão importantes para se contar a (s) história (s) que estamos assistindo quanto os personagens.
Aliás, o melhor seria dizer que Robbe-Grillet conta uma não-história, sendo que ele mesmo diz que os seus filmes são definidos pela expressão 'Disnarrativo', pois neles o cineasta abandona totalmente a narrativa tradicional, inexistindo nos mesmos uma linearidade e tampouco uma cronologia. E também vemos diferentes versões de uma mesma história em seus filmes, incluindo este 'Trans-Europ-Express'.
Logo, vemos uma arma, correntes, cordas, malas com fundos falsos, livros que escondem armas, enfim, inúmeros objetos que possuem uma grande importância para elucidar o caráter do protagonista (seu gosto pelos uso de cordas e correntes em relações sexuais, por exemplo) e o tipo de história que está sendo contada.
No hotel Miro, onde ele se hospeda, a empregada adota um comportamento que sugere um certo interesse por Elias, mas depois ficará claro que há um motivo para isso, pois ela tem conexão com a quadrilha de traficantes de drogas para a qual ele está trabalhando.
E quando ele vai até o encontro do seu contato, que é um membro da quadrilha, vemos uma mesma jovem (interpretada por Marie-France Pisier) vestida e penteada de maneiras distintas, em vários momentos, como se ela fosse mais de uma pessoa. E será uma destas jovens que irá tomar a iniciativa de conversar com Elias, depois que este se despediu do seu contato.
Ela é uma jovem e bela prostituta que se chama Eva e conversa com ele em um café.
Na conversa deles, a metalinguagem volta a aparecer quando Elias pergunta para Eva se ela sabe quem é a pessoa que os atendeu e ele diz que é um ator interpretando o papel do proprietário do café. Em outros momentos também vemos Trintignant e Marie-France olhando diretamente para a câmera, uma maneira de lembrar a quem está assistindo que aquilo é um filme e, portanto, é uma obra de ficção.
Posteriormente, Eva o convida para ir até a sua casa, onde eles terão uma relação sexual marcada pelo uso da violência da parte de Elias que, no início do filme, vemos que guarda uma arma dentro de um livro falso e cuja capa mostra um trem prestes a passar por cima de uma mulher amarrada sobre os trilhos, mostrando a atração que Elias sente pela violência.
Aliás, a imagem de um trem em alta velocidade é recorrente no filme, sugerindo uma conexão do mesmo com as fortes e violentas emoções que dominam o sádico Elias.
No entanto, o Elias que vemos no filme, durante quase todo o tempo, é aquele que foi imaginado por Jean (Robbe-Grillet) e pelo produtor Marc (Louyet) enquanto conversavam no trem. Mas fica claro, em vários momentos, que esse Elias criado por Jean e Marc é uma versão fictícia do verdadeiro Elias ou até do ator Trintignant.
Logo, mesmo a 'veracidade' desta cena de violência, em que Elias teria estuprado Eva, é colocada em dúvida, pois pouco tempo depois que a mesma termina vemos Elias acordando, em seu quarto de hotel, sugerindo que tudo teria sido um sonho dele, tal como ocorreu na cena em que vemos ele atirando no trem.
Além disso, quando Elias se encontra com Eva pela segunda vez, no apartamento dela, a mesma sugere que ele compre uma valise para transportar as suas coisas e, daí, vemos repetir a cena do início do filme, quando ele comprou a valise (em Paris), que acabou deixando no armário, em Antuérpia, que foi determinado pela organização de traficantes.
Essa organização não confia em Elias para transportar a droga, pois ele é um novato, que está fazendo a sua primeira viagem como 'mula' dos traficantes.
Assim, ele é enganado, pensando que está transportando cocaína em sua valise, mas o que ele está levando é apenas açúcar. Somente depois, quando foi testado em vários momentos para saber se ele era de confiança, é que a organização determina que ele retorne para Paris e pegue a valise com a cocaína e a leve para Antuérpia.
Porém, nesta cidade, Elias faz contato com inúmeras pessoas que são membros da organização de traficantes e, por engano, acaba contando o trabalho que está fazendo para um investigador da Polícia (Lorentz), que tomará conhecimento dos planos de Elias, pensando que o mesmo também seria um traficante.
E a cena final sugere que o Elias verdadeiro (?) não era nada disso: nem traficante, nem assassino e tampouco violento.
Portanto, o filme de Robbe-Grillet faz um questionamento a respeito do que estamos vendo, misturando uma história 'real', com outras que são sonhos dos personagens ou que foram imaginadas pelos autores (Marc e Jean, ou seja, Loueyt e Robbe-Grillet).
Em uma boate de Antuérpia (chamada 'Eve') uma jovem e belíssima mulher faz um número no qual vai sendo, gradualmente, envolvida por correntes, o que deixa Elias fascinado. |
Informações Adicionais!
Título: Trans-Europ-Express;
Diretor: Alain Robbe-Grillet;
Roteiro: Alain Robbe-Grillet;
Países de Produção: França e Bélgica;
Ano de Produção: 1966;
Música: Michel Fano;
Fotografia: Willy Kurant;
Montagem: Bob Wade;
Duração: 95 minutos;
Gênero: Policial;
Elenco: Jean-Louis Trintignant (Elias/Ele mesmo); Maria-France Pisier (Eva); Christian Barbier (Lorentz); Raoul Guylard (Intermediário); Henri Lambert (Inspetor); Paul Louyet (Marc, produtor do filme imaginário); Charles Millot (Franck); Alain Robbe-Grillet (Jean); Catherine Robbe-Grillet (Lucette); Gérard Malaprat (Mathieu); Ariane Sapriel (Mulher viajando no trem); Prima Symphony (Stripper); Clo Vanesco (Cantora da Boate); Nadine Verdier (Empregada do Hotel Miro).
Links:
O Nouveau Roman:
https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/nouveau-roman/
O Nouveau Roman e a obra de Robbe-Grillet:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2511200108.htm
Obs: A legenda da foto abaixo conta o final do filme.
Eva e Elias se encontram na cena final, sendo que na história narrada por Marc e Jean eles haviam sido assassinados. |
A trajetória de Robbe-Grillet:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0211200213.htm
Trailer do Filme:
https://www.youtube.com/watch?v=ZppexDHrjRA
A obra cinematográfica de Robbe-Grillet:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2402200812.htm
Trailer do Filme:
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