'Prénom Carmen' (1983) é um belo filme de Godard, sendo um típico filme policial de baixo orçamento e que foi feito em homenagem aos filmes policiais B clássicos de Hollywood, dos anos 1940 e 1950.
Aliás, não podemos esquecer que essa paixão de Godard por este gênero de filme já ficou bem evidente em 'Acossado', que foi realizado em homenagem a uma pequena produtora de Filmes B de Hollywood chamada 'Monogram Pictures'.
O filme também conta com a participação da belíssima atriz holandesa Maruschka Detmers, que tinha apenas 20 anos na época e que não havia participado de nenhum filme antes de estrelar 'Prénom Carmen', bem como de Myriem Roussel, outra jovem atriz, que havia trabalhado com Godard em 'Passion' (1982), e que interpretaria Maria em 'Je Vous Salue, Marie' (1985).
O filme também conta com a participação do próprio Godard, interpretando ele mesmo (o Tio Jean ou Jeannot), na condição de um cineasta que decidiu se isolar do mundo e que se interna em um hospital psiquiátrico dizendo que está se sentindo mal e que ficará doente, embora seja pressionado a ir embora, pois os médicos e enfermeiros lhe dizem que aquilo não é um hotel.
Mas uma das enfermeiras simpatiza com ele e acabará indo trabalhar como sua assistente depois que ele sai do hospital.
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A belíssima Maruschka Detmers interpreta Carmen, mulher de personalidade forte, selvagem e dominante.
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'Prénom Carmen' é um meus filmes preferidos do Godard e também é um dos melhores que ele dirigiu após a retomada de uma carreira mais convencional, fase que foi chamada de 'Período Tardio' pelo crítico Jonathan Rosenbaum, o que aconteceu a partir da realização do belo, autocrítico e reflexivo 'Salve-se Quem Puder (a Vida)', que foi filmado em 1979 e foi lançado em 1980.
A história de 'Prénom Carmen' mostra uma belíssima jovem, chamada Carmen (Maruschka), que faz parte de uma quadrilha de assaltantes. Durante o assalto a um banco em Paris, a bela Carmen se envolve com um dos seguranças do local (Joseph), sendo que eles começam a namorar ali mesmo, durante o assalto.
O título do filme também é uma referência a um clássico da Literatura francesa, de autoria do escritor Prosper Mérimée (de 1845), e que também serviu de inspiração para a Ópera de autoria de Georges Bizet (de 1875), que se divide em 4 atos.
Godard também faz, em 'Prénom Carmen', uma adaptação livre de ambas as obras, contextualizando a obra de Mérimée, trazendo a mesma para o mundo contemporâneo, tal como fez com outras obras literárias, vide a 'Odisseia' (em 'Le Mépris', filme de 1963) e o mito grego de Alcmena e Anfitrião (vide 'Hélas Pour Moi', de 1993).
E o filme de Godard também faz referência ao 'Carmen Jones' (1954), dirigido por Otto Preminger, outro cineasta cuja obra Godard admirava e que foi o responsável por lançar a carreira de Jean Seberg, em 'Joana d'Arc' (1958). Outras referências que temos no filme são a respeito de Proust (a madalena...), 'O Idiota', de Dostoievski e, também, o filme 'A Terra Treme' (1948), de Luchino Visconti.
E Godard também dividiu o seu filme em vários atos (o assalto, o romance, os planos do sequestro, a sequência do sequestro), como se fosse uma obra de música erudita ou uma ópera, sendo que os mesmos estão relacionados com músicas de Beethoven que são tocadas, durante todo o filme, por um quarteto do qual Claire (interpretada por Myriem Roussel) faz parte.
No filme, o Quarteto Prat é responsável por executar os quartetos de cordas, de autoria de Beethoven, de números 09, 10, 14, 15 e 16.
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Godard diz, no final do filme, que 'a beleza é o início do terror que podemos suportar' (citação de Rainer Maria Rilke). Bem, então, a bela Carmen tem o poder de provocar muito terror, mesmo, em quem se envolve com essa mulher indomável, tal como acontece com o pobre Joseph...
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A Trama do Filme!
'Dentro de você e de mim, ondas terríveis se formam. Não estudei, mas sei que o mundo não pertence aos inocentes. Se for possível, levaremos adiante. Não tenho medo, mas é porque nunca pude, nunca soube como, me ligar a ninguém. Tenho que ir. Nos vemos mais tarde. Sou a garota que não deveria se chamar Carmen'.
Assim começa o belíssimo 'Prénom Carmen', um dos filmes que teve maior impacto após a retomada da carreira, de uma maneira mais convencional, por Godard, que ficou afastado do público cinéfilo e dos festivais durante cerca de 10 anos, entre 1968 e 1978. Esse texto é declamado por Carmen, logo na sequência de abertura, pela protagonista do filme, que é interpretada pela jovem e belíssima atriz Maruschka Detmers.
Godard sempre disse, citando D. W. Griffith, que tudo o que ele precisa para fazer um filme 'é de uma arma e de uma garota'.
Em 'Prénom Carmen', temos as duas coisas: Armas e uma bela jovem, a Carmen do título. E no filme também temos referências à vários clássicos dos anos 1960 que foram dirigidos pelo próprio Godard, como 'Le Petit Soldat' (1960), 'Le Mépris' (1963) e 'Pierrot le fou' (1965).
Desta maneira, em uma das cenas a jovem Carmen diz para o namorado Joseph que ele era um 'pequeno soldado'. Só para relembrar: 'Le Petit Soldat' foi o segundo longa-metragem filmado por Godard (entre Maio e Junho de 1960), mas o mesmo foi censurado pelo governo francês e somente foi liberado para exibição pública no final de janeiro de 1963.
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Durante todo o filme fica claro que Carmen é a personalidade mais forte e dominante em sua relação com Joseph. |
Isso aconteceu porque 'Le Petit Soldat' tratava de um tema delicado e polêmico para os franceses, que era a Guerra da Argélia, que foi encerrada apenas em março de 1962, terminando com o reconhecimento da independência argelina. Aliás, no filme, Godard previa a derrota francesa, pois argumentava que somente os argelinos estavam lutando por um ideal, de fato. Ele acertou em cheio.
Em 'Prénom Carmen', o jovem casal (Carmen e Joseph) viaja de carro, após o assalto ao banco, para um apartamento (do tio Jean, interpretado pelo próprio Godard, que era mesmo o dono da residência) localizado no litoral da Normandia, o que também remete à trama de 'Pierrot le fou'.
Em 'Pierrot le fou', um homem casado de classe média (Ferdinand, interpretado pelo grande Jean-Paul Belmondo) que é o típico pequeno burguês parisiense abandona a família e decide viajar com a jovem empregada (Marianne, interpretada por Anna Karina) que tinha sido contratada para cuidar do filho.
Desta maneira, Ferdinand deixa de lado a sua tediosa e monótona vida de classe média e passa a viver de maneira aventureira, sem se preocupar com o futuro. Eles roubam carros, jogam dinheiro no mar, se envolvem com criminosos, vivem intensamente, como se não houvesse amanhã, demonstrando todo o seu desprezo pelos valores burgueses.
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A belíssima e selvagem Carmen alterna momentos de alegria e tristeza.
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Já em 'Prénom Carmen', Joseph é um segurança que trabalha para um banco e que também decide largar tudo para viver uma aventura romântica e perigosa ao lado de uma belíssima jovem (Carmen), que faz parte de uma quadrilha de assaltantes que roubou e que planeja uma ação ainda mais espetacular, que é o sequestro de um rico empresário ou da filha do mesmo.
Outro elemento que aproxima 'Prénom Carmen' do belíssimo 'Pierrot le fou' (1965) (filme que levou Chantal Akerman a se tornar cineasta, segundo ela mesma afirmou) é que a bela Carmen se refere, em vários momentos, a Joseph com o nome Joe e ele a corrige, dizendo que se chama Joseph, enquanto que no filme de1965 a Marianne chamava o Ferdinand de Pierrot, sendo que ele também a corrigia, falando que se chamava Ferdinand.
A quadrilha, formada por apenas 4 pessoas, planeja a nova ação, que deverá acontecer em um hotel luxuoso (Intercontinental, em Paris), e a mesma pretende camuflar o crime usando de uma filmagem fake que será feita por Godard (tio de Carmen), embora este pense que estará realizando um filme de verdade.
Assim, a bela Carmen, que é sobrinha do Tio Jean, procura por ele no hospital em que este se internou, voluntariamente, para convidar o mesmo a realizar uma filmagem, dizendo que se ele concordar com isso poderá acabar ganhando muito dinheiro com o trabalho, o que é uma descarada mentira, tal como a própria Carmen dirá, dando risada, mais adiante, para Joseph.
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Uma jovem e belíssima Maruschka Detmers, com apenas 20 anos, substituiu a já famosa Isabelle Adjani, que abandonou as filmagens depois de 15 dias, pois discordava do uso da luz natural por Godard, além de não aceitar fazer cenas de nudez e de ser filmada sem maquiagem. | | |
Carmen também pede autorização de seu tio Jean para usar do apartamento que ele possui, e que está vazio e abandonado, no litoral da Normandia (norte da França), sendo que ele acaba concordando com ambos os pedidos da sua belíssima sobrinha. Desta maneira, ela não hesita em mentir e em enganar o seu tio cineasta.
'Prénom Carmen' conta com alguns dos mais belos closes que um cineasta já fez de uma atriz (Maruschka Detmers, é claro) na história do Cinema, o que talvez tenha sido uma maneira que Godard encontrou de mostrar para a também belíssima Isabelle Adjani o que ela havia perdido ao abandonar as filmagens depois de 15 dias de trabalho.
Isso aconteceu, segundo Godard disse em uma entrevista, anos depois, porque Adjani não teria concordado em ser filmada com o uso de luz natural, nem em fazer cenas de nudez e tampouco sem maquiagem, como queria Godard. Godard afirmou se Adjani tivesse interpretado Carmen ela não teria feito quase nenhuma das cenas que Maruschka filmou.
Isabelle Adjani foi substituída por Maruschka Detmers, uma belíssima e sensual jovem, natural dos Países Baixos, mas que possuía ancestrais franceses e que aceitou trabalhar nestas condições. Até aquele momento ela tinha feito apenas um curso de teatro e nunca havia filmado nada. Apesar de sua inexperiência, Godard a testou e a contratou.
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Claire é apaixonada por Joseph, mas ele sente-se preso à selvagem Carmen. Myriem se preparou exaustivamente para o papel durante 4 meses, ouvindo música e tocando violino. |
Godard disse, depois, que Maruschka era a única atriz, além de Adjani, "que correspondia à ideia que ele tinha da personagem. Morena, selvagem. Ela parecia ter um vigor, uma autonomia natural nas cenas que ensaiamos. Ela não interpretava".
Depois que chegam ao apartamento do Tio Jean, na Normandia, a bela Carmen e o jovem apaixonado Joseph se amam intensamente, fazem amor e conversam sobre as suas trajetórias de vida, embora deixando inúmeras lacunas em ambas, sendo que eles estão sempre deixando para explicar as situações que vivenciaram para o dia seguinte. 'Depois eu te conto, agora não dá', dizem.
O casal, no entanto, está sendo procurado pela Polícia, que acabará prendendo Joseph, que responderá processo judicial por ter abandonado a segurança da agência bancária e por ter se integrado à quadrilha de assaltantes. Mas a bela Carmen consegue escapar e volta a se reunir com os demais integrantes, a fim de planejar e executar o sequestro do milionário (ou de sua filha...) no Hotel Intercontinental, em Paris.
E para isso a quadrilha precisa da colaboração involuntária do Tio Jean, que aceita a oferta de trabalho feita por esses 'produtores', pensando que estará fazendo um filme de verdade.
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Myriem Roussel interpreta Claire, uma personagem mais calma, de espírito leve, do que a selvagem e agressiva Carmen. Ela sempre era filmada em situações de muita luz, de claridade, o que remete diretamente ao significado do seu nome e, também, à sua personalidade, mais leve e sensível do que Carmen.
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Aliás, não é à toa que os tais 'produtores' são, em 'Prénom Carmen', uma quadrilha formada por criminosos, que usa de uma locadora de vídeo pornográficos como fachada para as suas atividades, pois Godard sempre foi um ácido crítico dos produtores de cinema (vide 'Le Mépris', sua obra-prima de 1963, por exemplo), que se preocupam apenas com o retorno dos investimentos feitos, pouco se importando com a qualidade artística dos filmes que produzem.
Logo, a associação que Godard faz entre produtores gananciosos de cinema e criminosos não é gratuita. Porém, no final, quando o sequestro já estava prestes a começar, ele se recusará a trabalhar nas condições impostas pela quadrilha e abandonará a filmagem fake. Esta é, claramente, a maneira pela qual Godard mostrou, no filme, que não aceita trabalhar nas condições impostas pelos produtores de cinema, algo que ele fez durante toda a sua carreira.
Godard prefere se isolar (tal como o Tio Jean o faz...) e trabalhar nos seus próprios termos do que aceitar se submeter à vontade dos gananciosos e autoritários produtores, como o Jeremy Prokosch de 'Le Mépris', que foi caracterizado com base nos produtores do próprio filme, que foram Carlo Ponti e Joseph Levine, que Godard, na época das filmagens, chamou de 'Mussolini Ponti' e 'King Kong Levine'.
Assim, os membros da quadrilha, os falsos produtores, irão se dar mal, é claro, enquanto o Tio Jean se manda do local do crime, o que remete ao abandono da indústria cinematográfica pelo próprio Godard, que sempre rejeitou as imposições dos produtores de cinema e com os quais, em função disso, sempre entrou em conflito.
No filme nós temos inúmeras cenas que mostram o mar revolto da Normandia, bem como cenas noturnas de Paris e os membros de um quarteto (Quarteto Prat) que executa movimentos de uma peça musical de Beethoven. Tais cenas estão relacionadas ao estado de espírito dos personagens e com as sequências do filme. Assim, as peças musicais de Beethoven são usadas como leitmotiv em inúmeros momentos do filme.
E as cenas do mar remetem à obra de outro grande cineasta que Godard sempre admirou, que é F. W. Murnau, que usa do mesmo recurso em seu filme 'Caminhada Noite Adentro' (1921), no qual vemos ondas do mar revoltas e fortes ventanias, o que foi feito para ressaltar o estado de espírito dos personagens.
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Godard interpreta o Tio Jean, que faz inúmeros comentários de caráter político e social durante o filme, o que não poderia faltar em um filme deste cineasta que sempre se posicionou a respeito das principais questões que afligiram a humanidade nas últimas décadas (Guerra da Argélia, Guerra do Vietnã, Lutas Operárias, Feminismo, Racismo, Contracultura...). |
Desta maneira, quando a relação entre Carmen e Joseph se encontrava em um bom momento, se amando na residência abandonada do Tio Jean, a música que o quarteto toca é mais leve e o mar fica mais calmo. Já quando a relação deles começa a desmoronar, o quarteto toca uma música mais dramática e o mar fica mais violento.
E apesar das inúmeras e infrutíferas tentativas de Joseph de reatar sua relação com Carmen, esta deixa claro que está tudo terminado entre eles, pois ela nunca pôde ou nunca quis se ligar a ninguém, tal como deixou claro logo no início do filme.
Um outro aspecto importante do filme é a existência de uma dualidade envolvendo as personagens femininas mais importantes, que são a selvagem, agressiva e de personalidade dominante Carmen, enquanto que a outra é Claire, que é mais calma e angelical, inclusive com a luz que incide sobre a mesma em vários momentos tendo um tom mais claro e leve.
Claire também demonstra interesse por Joseph, mas este só tem olhos para o 'belo animal selvagem' que é Carmen, o que será a sua ruína. Em um determinado momento do filme, quando está sendo julgado, ele fala para Claire que ele não consegue evitar de se envolver com Carmen, existindo um tipo de força que o impulsiona nesta direção.
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O tio Jean (ou Jeannot) come uma madalena e, daí, tal como acontece no livro de Proust, ele começa a se lembrar do seu passado como cineasta, mas as suas memórias são confusas, pois ele diz que havia trabalhado com Marlene Dietrich e com Beethoven. |
E
o filme também tem uma das mais belas cenas do cinema produzido nos
anos 1980, em qualquer latitude ou longitude, quando Joseph, vendo que
está sendo abandonado pela bela Carmen, fica deitado sobre uma TV que
mostra apenas 'chuviscos' enquanto toca a belíssima música 'Ruby's
Arms', interpretada de forma magistral por Tom Waits, que também é o
autor da canção.
Aliás,
é interessante notar como a letra da canção e a cena se encaixam
perfeitamente, pois a letra fala de um homem que está sendo abandonado
pela mulher que ama e a qual nunca mais poderá beijar e abraçar.
Inclusive, no momento em que a letra diz
'eu roubarei através das suas persianas, pois logo você estará
acordando. A luz da manhã lavou seu rosto e tudo está ficando triste', Carmen abre as persianas do apartamento e Joseph desmorona no chão.
E
no filme Godard também faz um leve aceno para a sua fase maoísta,
quando diz para o líder da quadrilha de criminosos (Jacques) que Mao
Tse-Tung foi um grande cozinheiro, pois ele conseguiu alimentar toda a
população chinesa, de mais de 1 bilhão de habitantes. Ele também lamenta
que os jovens não procurem mais em saber das coisas.
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Godard toca no roupão de Carmen, chamando a atenção para o tom forte de amarelo do mesmo, citando Van Gogh. O filme inteiro é dominado pela cor amarela, que remete a uma arte cinematográfica, de caráter pictórico, que as novas gerações esqueceram. |
E neste sentido, a comparação com 'Pierrot le fou' pode ser feita, novamente, pois enquanto no filme de 1965 os protagonistas (Ferdinand e Marianne), embora se envolvam em atividades criminosas, estão procurando romper com os valores dominantes na sociedade capitalista, deixando de se preocupar com trabalho, estudo, acumulo de bens materiais.
Enquanto isso, em 'Prénom Carmen' (1983), Carmen e os integrantes da quadrilha da qual ela faz parte querem apenas saber de ganhar dinheiro por meio do crime. O elemento político não está presente em suas atividades criminosas. Não existe qualquer intenção de mudar a sociedade e de romper com os valores dominantes na mesma. De fato, eles reproduzem esses valores em suas atividades: ganância, individualismo, mentiras, traição, roubo.
Em outro momento, o próprio personagem de Godard (o Tio Jean...) também faz uma crítica à juventude que, em sua visão, parou de se interessar em pesquisar e descobrir, perdendo o interesse pela aventura da descoberta do conhecimento e diz que os jovens esqueceram de tudo, embora tenham uma boa memória, caindo em um tipo de buraco negro.
Outro comentário político que Godard faz no filme, na sequência final, ocorre quando vemos um personagem que está segurando um livro que trata da existência de paraísos fiscais pelo mundo afora, que são usados para guardar o dinheiro sujo dos bilionários do planeta e que é originário de corrupção, tráfico de drogas, contrabando de armas, sonegação de impostos, entre outras atividades criminosas.
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Joseph, abandonado por Carmen, acaricia a TV... Para a estudiosa Anita Leandro, esta cena representa 'o encontro do cinema com o vídeo', com o qual Godard fez experiências, junto com Anne-Marie Miéville, nos anos 1970. |
Um outro comentário político feito pelo Tio Jean, ou seja, pelo próprio Godard, ocorre quando ele diz, para a sua assistente (que anota todas as suas reflexões) que a crise econômica do mundo contemporâneo se dá em função do fato de que o Capitalismo passou a produzir bens inúteis, como as bombas atômicas e os copos de plástico.
Obs1: É bom ressaltar que, na época das filmagens de 'Prénom Carmen', a economia capitalista mundial enfrentava uma fortíssima Recessão, com um grande aumento do desemprego no mundo inteiro, inclusive nos EUA e na Europa Ocidental.
Em outro momento, quando o relacionamento da bela Carmen com o infeliz Joseph está desmoronando, ela diz para o mesmo que eles não são culpados pelo que fazem, pois o mundo é que é uma merda...
E também temos alguns momentos de humor, como ocorre nos créditos de abertura, quando a Kodak é creditada como sendo uma das responsáveis pela fotografia do filme, ao lado de Raoul Coutard e de Jean-Bernard Menoud. Aliás, esse foi o último filme que Godard e Coutard fizeram juntos.
E logo depois que termina a fala inicial de Carmen, ouvimos um personagem dizer que 'quando merda tiver valor, pobre nascerá sem rabo', que é uma típica frase irônica e provocativa que temos em filmes de Godard. A frase é de autoria do grande escritor colombiano Gabriel García Márquez.
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Carmen
e Joseph: Ela não quer mais saber dele, que faz de tudo para que ela
não o abandone. Mas como ela lhe disse, antes, 'se eu te amar você está
ferrado', o que é uma referência ao filme 'Carmen Jones' (1953), de Otto
Preminger, um dos principais diretores da era clássica de Hollywood. |
E a metalinguagem também está presente no filme, em vários momentos, como na cena em que Carmen pergunta para o Tio Jean se pode conversar com ele, e Godard responde que sim, pois assim terá início um diálogo entre ambos. E quando, em uma conversa com Jacques, este diz para Godard que está indo embora, o cineasta diz que o mesmo deve ficar ali, pois o diálogo deles ainda não terminou.
E é claro que temos referências aos filmes policiais Noir B da antiga Hollywood e também a Dillinger, quando Carmen diz para Joseph que o famoso criminoso e sua gangue uma vez roubaram um banco se fazendo passar por realizadores de um filme, o que serviu de inspiração para Godard criar este belo 'Prénom Carmen'.
Além disso, logo na abertura do filme vemos Godard no quarto do hospital esbarrando nos objetos e móveis do mesmo, o que é uma referência a cineastas como Buster Keaton e Jerry Lewis. E Godard, inclusive, carrega um livro sobre Keaton quando conversa com Jacques sobre os planos da quadrilha. Além disso, Godard também cita Van Gogh, usando da cor amarela no filme, como nos roupões usados por Carmen e Jacques.
Não se pode esquecer que Godard foi pintor na juventude e seus filmes estão repletos de citações e homenagens a grandes pintores da história, como Rembrandt, Goya, Velásquez, Picasso, Matisse, entre muitos outros. Godard chegou até a fazer um filme inteiro em torno de grandes obras de pintores como Rembrandt, Delacroix e Goya, que foi 'Passion' (1982), que foi o filme que antecedeu 'Prénom: Carmen' (1983).
Assim, Godard demonstra a sua fidelidade à linguagem cinematográfica original, dos primeiros tempos do cinema, usando de meios visuais (filmes) e sonoros (a música de Beethoven) para transmitir a sua 'mensagem', substituindo os diálogos e a fala, que tem origem no Teatro, pela imagem, reafirmando a sua crença na hegemonia do cinema, principalmente naquele cinema artesanal dos primeiros tempos.
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O Tio Jean e a sua assistente, que anota as suas reflexões. |
Portanto, em 'Prénom Carmen' Godard também faz várias homenagens e referências aos artistas, músicos, filmes e cineastas que, de alguma maneira, o influenciaram e pelos quais ele nutre uma grande admiração, incluindo Van Gogh, Beethoven, Mérimée, os filmes policiais B, Buster Keaton e Jerry Lewis.
Também temos uma referência ao filme 'Aurora', de F. W. Murnau (um dos cineastas que Godard mais admirava), no diálogo final entre Carmen e o empregado do hotel.
E em uma cena na qual Carmen está tomando banho e, logo, se encontra inteiramente nua, Joseph invade o banheiro e tenta forçar a mesma a fazer amor com ele. Esta é uma referência ao mito grego de Diana e Acteon, que viu a deusa se banhando e foi punido por isso, tal como ocorre com Joseph em 'Prénom Carmen', pois ele é abandonado pela bela jovem.
E também temos uma pequena participação, no início do filme, do cineasta Jean-Pierre Mocky, que também fez parte da Nouvelle Vague, que fica correndo pelo jardim do hospital dizendo, indignado, perguntando 'há um francês nesta sala?', referindo-se a Godard, é claro.
Porém, Godard usa de todas estas referências para contar uma história atual, contemporânea, com base na sua visão, estritamente pessoal, recriando as mesmas, e sempre tendo a linguagem cinematográfica como hegemônica. Ele fez isso em um momento histórico no qual a França passou a ser governada pelo Partido Socialista, com François Mitterrand na presidência e Jack Lang no Ministério da Cultura.
Jack Lang era um grande admirador de Godard e da Nouvelle Vague, a quem tinha como seus heróis culturais. Ele ofereceu vários prêmios para Godard, Truffaut, mas principalmente, o que ele fez, foi aumentar fortemente os investimentos do Estado francês na produção artística e cinematográfica francesa, a fim de resistir à invasão cultural dos EUA.
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Joseph fala algo para Carmen, mas não ouvimos o que ele está dizendo.
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É bom ressaltar que esta reescrita de obras clássicas da Literatura, da Música, do Cinema e da Pintura é uma característica que sempre esteve presente na obra de Godard. E agora ele fazia isso porque entendia que a vida contemporânea não oferecia mais a matéria-prima necessária para se fazer filmes.
Então, em função disso, Godard buscava a inspiração necessária nos clássicos, como é o caso do conto de Mérimée e da opera de Bizet. Como o seu personagem (Jeannot) diz logo no início do filme: "Não importa onde e quando, os clássicos sempre funcionam".
Isso acontece desde 'Acossado' (que também homenageia os filmes policiais B de Hollywood e cita Humphrey Bogart), de 1959, passa por 'Pierrot le fou' (filme muito influenciado por Rimbaud), de 1965, 'Alphaville' (que se inspirou, em parte, no livro 'A Capital da Dor', do poeta surrealista Paul Eluard), também de 1965, e 'Passion' (1982), um filme inteiramente baseado na Pintura (Goya, Rembrandt...).
O filme foi lançado no Festival de Veneza, em setembro de 1983, conquistou dois prêmios (Leão de Ouro e outro, especial, pela Imagem e Som) e também muito bem recebido pela crítica e alcançou sucesso comercial.
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O detetive da Polícia avisa Joseph para que ele não tente fazer algo contra Carmen.
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E o belo 'Prénom Carmen' reúne amor, paixão, sofrimento e morte (afinal, Cinema é emoção, como disse Samuel Fuller em 'Pierrot le fou'), com um final trágico inevitável, tal como o próprio Godard antecipou no diálogo inicial com a bela, selvagem e indomável Carmen, sendo também uma declaração de amor de Godard ao Cinema original, dos primeiros tempos.
Durante o Festival de Veneza, na coletiva de imprensa, Godard anunciou os seus planos para o próximo filme, dizendo o seguinte:
"O que nos interessou (em adaptar 'Carmen') foi que mostrar que um homem e uma mulher se falavam... O que diziam quando estavam na cozinha? O que diziam quando estavam no carro? Não sabemos o que eles disseram. No meu próximo filme, por acaso, mantenho o personagem masculino José: sua Carmen se chamará Maria. Pois bem, o que José e Maria disseram um ao outro antes de terem o bebê?".
Assim, Godard anunciou que iria fazer um filme em torno da concepção de Jesus, que foi o belíssimo 'Je Vous Salue, Marie', que tanta polêmica provocou pelo mundo afora e que chegou a ser censurado pelo governo Sarney.
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Carmen, no final, pergunta para o empregado do hotel: 'O que a dizemos quando há inocentes em um canto e culpados no outro?'. O empregado diz que não sabe. Ela fala que ele deveria saber. E conclui: 'Quando tudo já se perdeu, o Sol continua nascendo e continuamos respirando.'. E o empregado responde: 'Isso se chama a Aurora, senhorita'.
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