São Paulo Sociedade Anônima: Luiz Sérgio Person mostra retrato lúcido e ácido sobre a modernização industrial de São Paulo!

São Paulo Sociedade Anônima: Luiz Sérgio Person mostra retrato lúcido e ácido sobre a modernização industrial de São Paulo! - Marcos Doniseti!

'São Paulo Sociedade Anônima' (1965) é um dos grandes filmes da história do Cinema brasileiro, retratando de forma crítica a modernização industrial e o crescimento da burguesia e da classe média paulista.

As influências e a produção de São Paulo Sociedade Anônima! 

Este foi o primeiro longa-metragem dirigido por Luiz Sérgio Person, brilhante cineasta e diretor de teatro paulista de curta carreira, falecido precocemente em 07 de Janeiro de 1976, com apenas 39 anos, em um acidente de automóvel. Person estudou no Centro Sperimentale de Cinematografia, em Roma, em 1961, onde fez o curso de direção.

Neste período, Person tomou contato com a Nouvelle Vague, com o Neorrealismo Italiano e com a produção italiana do início dos anos 1960, que revelou novos e bastante talentosos cineastas, como Valerio Zurlini, Francesco Rosi e Elio Petri.

Estas influências se notam neste clássico de Person, com seus cortes secos, filmado nas ruas da cidade, misturando documentário com ficção, criticando os valores hegemônicos na emergente sociedade industrial que se desenvolve rapidamente em São Paulo, a locomotiva que puxava o Brasil.

E o curioso é que este clássico filme de Person trata justamente sobre o processo de modernização industrial brasileiro, concentrado em São Paulo, principalmente na região metropolitana, que se tornaria uma das maiores megalópoles do mundo entre 1956 e 1980. 

Este processo de desenvolvimento ocorreu exatamente em função do rápido crescimento da atividade industrial, fenômeno que começou durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961).

A belíssima cena de abertura do filme mostra uma discussão que representa o colapso do casamento de Carlos (Walmor Chagas) e Luciana (Eva Wilma). Não ouvimos o que eles dizem e ao fundo a imagem do casal se funde com a da grande metrópole, mostrando a relação existente entre os dois fenômenos: a expansão industrial e urbana e as transformações e a crise das relações sociais. 

A trama do filme! 

A história de 'São Paulo Sociedade Anônima' se desenvolve justamente no auge desse processo de modernização industrial, entre os anos de 1957 e 1961, e trata do impacto que o mesmo teve sobre as pessoas, em especial sobre um pequeno burguês, Carlos (interpretado por Walmor Chagas), que é o alter ego de Person, que também chegou a dirigir, por dois anos, uma empresa pertencente a sua família.

O filme de Person mostra o lado menos famoso e conhecido desta modernização, como a brutal exploração da força de trabalho e as exigências e sacrifícios que a mesma impõe às pessoas, sugando suas almas, impedindo que possam se realizar pessoal e profissionalmente.

A filha de Person, Marina, escreveu que o personagem Carlos representa aquilo que o próprio Luiz Sérgio Person temia que acontecesse com ele. E isso apenas não ocorreu porque ele, Person, se voltou para a vida artística (Cinema, Teatro). E a história do filme será contada com base na perspectiva de Carlos.

Carlos é funcionário da Volkswagen, trabalhando como inspetor de qualidade naquela que era uma das maiores indústrias brasileiras do período e que se beneficiou muito da criação de um grande mercado consumidor interno de veículos de passeio voltado para a classe média (foi o governo JK que atraiu a indústria automobilística europeia para o Brasil).

Porém, Carlos acaba se deixando corromper por um fornecedor de engrenagens chamado Arturo, que veio da Itália, onde a sua família (avô) simpatizou com o Fascismo, e que era o proprietário de uma pequena fábrica de autopeças. Carlos acaba aceitando peças de menor qualidade, fornecidas para a Volkswagen, em troca de propinas pagas por Arturo.

Mas essa picaretagem dele e de Arturo será descoberta, resultando na demissão de Carlos e na perda de contratos da empresa de Arturo com a empresa alemã. 

Ana (Darlene Glória) foi um das mulheres com as quais Carlos (Walmor Chagas) se envolveu, mas ela não se apegava a nenhum em particular, tendo casos com vários, tratando Carlos com desprezo. Assim, o filme mostra a presença de uma mulher moderna, independente e liberada, representante de uma modernização nos comportamento em um Brasil que também se modernizava no aspecto industrial e tecnológico.

Obs: O processo de industrialização de JK impôs, como condição para a instalação das indústrias de automóveis estrangeiras no país, que as mesmas fossem obrigadas a comprar todas as peças e componentes de indústrias brasileiras. Assim, o setor de autopeças passou por um gigantesco crescimento no Brasil a partir do seu governo, fortalecendo o processo de criação de uma burguesia industrial local. Esse processo gerou um forte crescimento de um setor gerencial, de classe média, nas indústrias e na economia brasileira como um todo. Carlos, protagonista do filme, integra esse segmento.

Depois, Carlos acaba indo trabalhar para Arturo, na indústria deste, onde se torna gerente de produção, tendo apenas o próprio dono acima dele na hierarquia na empresa, onde muitos operários sequer são registrados, a fim de reduzir os gastos da indústria com a força de trabalho.

E quando a fiscalização aparece e descobre as irregularidades, Arturo dá um jeito de resolver o problema de forma um tanto nebulosa, mas fica claro que ele ofereceu alguma vantagem para os fiscais do Ministério do Trabalho para evitar que a sua empresa fosse punida de alguma forma.

Porém, Carlos vive uma crise existencial, em função de todas as irregularidades nas quais se envolveu para poder ascender social e economicamente, incluindo as propinas, a corrupção, a sonegação de impostos praticada por Arturo, sendo que ele era conivente com estas ilegalidades. Ele também se sente mal por ter que atender a todas as exigências dessa economia industrial moderna, trabalhando intensamente, até mesmo aos domingos.

Interior da fábrica da Volkswagen é mostrado no filme, que retrata de forma crítica o processo de industrialização e de urbanização crescentes de São Paulo durante o governo JK (1956-1961).

Além disso, Carlos não consegue encontrar uma mulher que possa amar de verdade e com a qual ele tenha condições de ser feliz. Logo, ele enfrenta uma crise existencial, tanto na sua vida profissional, quanto na vida amorosa, pois as decisões que tomou em sua vida foram mais em função de um comodismo e não uma escolha consciente, de quem sabia que estava fazendo o melhor para si.

E depois de alguns anos ele pagará o preço pelas escolhas que fez, o que o levará a entrar em crise e a tentar recomeçar a sua vida em novas bases, mas o filme questiona se isso é realmente possível.

Desta maneira, Carlos acaba se envolvendo com três mulheres, contando a história do seu envolvimento com elas por meio de flashbacks. 

A primeira é a bonita, intelectualizada e infeliz Hilda (interpretada por Ana Esmeralda), a segunda é a jovem, bela e fútil Ana (interpretada por Darlene Glória), que segue a carreira de modelo, se envolve com inúmeros homens ao mesmo tempo e que o trata com desprezo. E temos também a bonita, 'certinha' e bem comportada Luciana (Eva Wilma), filha de um casal de pequenos comerciantes e que deseja apenas que a filha tenha um casamento feliz.

Carlos acaba se casando com Luciana, com quem tem um filho, mas a entra em um processo de angústia existencial, como alguém que se sente massacrado por uma sociedade que exige que as pessoas trabalhem bastante, sejam bem sucedidas e se comportem de uma forma 'normal', aparentando felicidade, mesmo que não o seja. 

E o péssimo exemplo dado por seu patrão, Arturo, apenas ajuda a piorar tudo, pois o mesmo é casado, tem filhos, mas trai a esposa com outras mulheres, curtindo a vida noturna, algo que Carlos evita de fazer, pois não tolera essa falsidade e hipocrisia que dominam a sociedade.

Carlos conhece a jovem, simples e bonita Luciana em um curso de inglês, sendo que eles acabarão se casando.

O filme vai e volta no tempo, em vários momentos, sendo preciso prestar atenção para perceber quando ele está se lembrando do ocorrido. Logo, o filme segue uma trajetória não linear e, de fato, começa com a decisão de Carlos de se separar da esposa, deixando tudo para trás, sendo que os fatos são contados a partir da perspectiva do próprio Carlos.

Assim, a história do filme é contada a partir do seu final, quando ocorre o término do seu casamento com Luciana e a sua fuga desesperada de uma sociedade que massacra o indivíduo. Logo, vemos tudo o que aconteceu para que Carlos chegasse à essa situação de desespero na qual ele se encontra.

A cena de abertura, inclusive, repete-se no final, mas elas são filmadas de forma diferente. No início do filme não conseguimos ouvir o que Carlos e a esposa Luciana  falam um para o outro e a cena é filma de fora do apartamento deles, destacando-se ao fundo a imagem da grande metrópole paulistana. E no final a cena é inteiramente filmada mostrando os dois dentro do apartamento e, assim, ouvimos tudo o que dizem no diálogo.

Além disso, a própria cidade é uma personagem fundamental, a principal, de fato, neste clássico filme de Person, mostrando o quanto essa metrópole esmaga os seus habitantes. E também fica clara no mesmo a influência do moderno cinema europeu, principalmente da Nouvelle Vague e do cinema italiano dos anos 1960.

E temos também o belo uso da trilha sonora, que se torna mais dramática nas cenas mais fortes, como no diálogo que Hilda teve com Carlos depois que ela perdeu o marido, que havia sido o único homem que havia feito dela uma mulher feliz. Person também estabelece uma conexão entre o clima cinzento e nublado da cidade e a fotografia do filme com o estado de espírito dos personagens.

A bela, infeliz e intelectualizada Hilda, que lia poesia (Rilke, ouvia Bach e frequentava galerias de arte) Hilda foi uma das mulheres com quem Carlos se envolveu romanticamente. 

Um belo momento do filme ocorre quando Hilda fala da sua situação desesperadora após a morte de seu marido, com quem era feliz, e a imagem vai ficando cada vez mais escura, mostrando qual era o sentimento dele naquele momento.
 
'São Paulo Sociedade Anônima' foi considerado pelo cineasta Carlos Reichenbach como um dos três melhores filmes da história do cinema brasileiro.
 
O filme conquistou vários prêmios internacionais, incluindo o prêmio do público no Festival do 'Nouvo Cinema', realizado em Pesaro, na Itália, em 1965, bem como o de Melhor Filme, prêmio 'Cabeza de Palenque', em Acapulco, no México, também em 1965. E o filme de Person também foi escolhido para ser o representante do Brasil na disputa pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1966.
 
Informações Adicionais!

Título: São Paulo Sociedade Anônima;
Diretor: Luiz Sérgio Person;
Roteiro: Luiz Sérgio Person;
Duração: 107 minutos;
Ano de Produção: 1965;
País de Produção: Brasil;
Elenco: Walmor Chagas (Carlos); Eva Wilma (Luciana); Otelo Zeloni (Arturo); Ana Esmeralda (Hilda); Darlene Glória (Ana).


A bela Hilda viveu intensamente um relacionamento com o marido, mas a morte do mesmo a deixou em um estado de espírito depressivo, que é muito bem ressaltada pela bela fotografia da cena, que foi escurecendo aos poucos.


Links: 

Eva Wilma comenta sobre o filme e o trabalho de Person: 

https://www.youtube.com/watch?v=YcxvFIdpDy8 

Abertura do filme: 

https://www.youtube.com/watch?v=qQpolvsbpj0 

Marina Person escreve sobre 'São Paulo Sociedade Anônima' e a obra do pai cineasta:

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/01/1579344-filha-de-diretor-de-sao-paulo-sa-fala-sobre-filme-iconico-dos-anos-1950.shtml

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