'Grandeur et décadence d'un petit commerce de cinema': Em filme feito para a TV, Godard celebra o cinema clássico e autoral e lamenta o seu declínio!

'Grandeur et décadence d'un petit commerce de cinema': Em filme feito para a TV, Godard celebra o cinema clássico e autoral e lamenta o seu declínio! - Marcos Doniseti!
'Ascensão e Queda de uma Pequena Produtora de Cinema' (1986): Este é um ótimo e pouco conhecido filme de Godard. Ele foi feito para a TV francesa e nele o cineasta defende o cinema clássico e autoral, lamentando o declínio do mesmo, enquanto crítica o caráter cada vez mais comercial da produção cinematográfica.
A produção do filme!

Este filme foi realizado por Godard para a emissora de TV pública francesa 'TF 1', que exibiu, entre 1984 e 1988, uma série de filmes policiais e cujo nome era 'Série Noire'. No total, foram realizados e exibidos 33 filmes. O filme dirigido por Godard é o de número 21 e foi exibido em 24/05/1986.

Um dos protagonistas do filme é Almereyda, que é interpretado por Jean-Pierre Mocky (falecido em 2019), amigo de Godard e que foi crítico da 'Cahiers du Cinéma' e que também fez parte da 'Nouvelle Vague'. Mocky também fez uma pequena participação em 'Prénom Carmen', filme de Godard que conquistou o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1983.

Inclusive, o próprio Godard faz uma pequena participação no filme, em um diálogo com Almereyda, algo que se tornou comum nos filmes que passou a realizar a partir dos anos 1970, pois ele também atuou em 'Prénom Carmen' e em 'Soigne to Droite' (1987) por exemplo.

É bom ressaltar que Godard não gostou nem um pouco do livro que lhe deram para filmar, e fez o personagem Gaspard Bazin afirmar que preferia fazer um filme sobre um livro de Raymond Chandler, que foi um escritor de romances policiais muito melhor do que James Hadley Chase.
Jean-Pierre Léaud tem uma ótima atuação, interpretando um diretor que possui ambições artísticas, mas que são bloqueadas em função da necessidade de se realizar filmes que sejam lucrativos. Neste filme, Godard retratou uma época em que os filmes marcadamente comerciais expulsaram os filmes autorais e experimentais do mercado e da TV. 

E foi por isso mesmo que Godard ignorou a história do livro de Chase e preferiu fazer um filme sobre a própria maneira de se produzir um filme, mostrando as dificuldades e obstáculos que um produtor ou que um cineasta independente enfrenta para viabilizar aos seus projetos.

A defesa do cinema autoral e artístico!

No filme, Godard também aproveita para dar uma 'alfinetada' em Roman Polanski, um cineasta muito talentoso e criativo, que naquele mesmo ano (1986) foi para os EUA dirigir uma grande produção, um filme de aventuras de grande orçamento ('Piratas').

Este fato incomoda Almereyda que afirma que, com o dinheiro que Polanski irá gastar em seu filme, ele poderia fazer, pelo menos, dez filmes. E neste diálogo, Godard brinca com Mocky/Almereyda dizendo que eles tinham pouco dinheiro para realizar os seus filmes porque, usando de ironia, ele diz que os dois não eram 'piratas'.

E o diretor do filme se chama Gaspard Bazin (interpretado por Jean-Pierre Léaud, em ótima atuação) e o seu sobrenome é uma homenagem ao crítico André Bazin.
Jean-Pierre Mocky, cineasta ligado à Nouvelle Vague, interpreta Almereyda, que é o dono de uma pequena produtora de cinema que passa por dificuldades financeiras, pois realiza filmes de baixo orçamento e de caráter autoral. Ele diz que vive em uma era que o sucesso deste tipo de produção é improvável, mas que sempre é possível tentar.

Bazin foi um dos fundadores (junto com Jacques Doniol-Valcroze e da antológica revista 'Cahiers du Cinéma', na qual Godard, Truffaut, Chabrol, Rivette e Rohmer trabalharam nos anos 1950, período no qual eles eram chamados de 'Jovens Turcos', devido ao seu espírito e postura revolucionários.

Posteriormente, os 'Jovens Turcos' saíram da publicação e começaram a fazer os seus próprios filmes, que revolucionaram o cinema mundial com a criação de um movimento cinematográfico baseado na ideia do Cinema Autoral, que foi a 'Nouvelle Vague'.

Portanto, o filme de Godard é uma defesa do cinema autoral e de caráter mais artístico, ao mesmo tempo em que exalta o cinema clássico e faz críticas às produções comerciais e de grande orçamento. E o fim trágico de Almereyda e a recusa de Eurídice de atuar conforme as ordens que recebe são uma demonstração clara de que ele, Godard, não é nada otimista com relação ao futuro do cinema.

Assim, o filme possui um nítido tom de tristeza e melancolia, que fica claro nas expressões de Almereyda, Eurídice e Gaspard, devido aos obstáculos e dificuldades que enfrentam. 
Eurídice, esposa de Almereyda, deseja seguir a carreira de atriz, mas irá se deparar com uma realidade que fará com que se decepcione com o mundo do cinema, cada vez menos artístico e mais comercial. 


As referências e a história do filme!

E como em todos os filmes de Godard, neste também temos inúmeras referências literárias (Chandler, Chase), cinematográficas (Jacques Tati, Charles Chaplin, Jean Renoir, Dita Parlo), musicais, pictóricas, poéticas e históricas.

Desta maneira, temos referências ao Nazismo e à Segunda Guerra Mundial e vemos duas pinturas do renascentista Tintoretto ('A Origem da Via Láctea' e 'Ariane, Vênus e Baco'). E logo no começo do filme vemos um cartaz do filme 'Jour de fête' (1949), dirigido por Jacques Tati, e também do "L'Aventura" (Michelangelo Antonioni, 1960). E mais adiante temos um cartaz do filme "La Ruée Vers L'or" ('Em Busca do Ouro', 1925, de Charles Chaplin).

O filme conta com um excelente repertório de música popular, incluindo duas músicas de Janis Joplin, duas de Leonard Cohen (incluindo 'Came So Far For Beauty'), uma de Bob Dylan ('When he Returns') e outra de Joni Mitchell. E é bom deixar claro que as músicas não foram escolhidas, por Godard, de forma aleatória.

Assim, quando o filme começa é tocada a canção 'The Guests', de Leonard Cohen, que fala sobre os convidados que estão chegando para uma festa. As músicas de Janis Joplin ('Mercedes-Benz' e 'Me and Bobby McGee') criticam a propaganda maciça e o consumismo, a primeira, e exaltam a liberdade individual, a segunda.
Almereyda tenta convencer a esposa a não seguir a carreira de atriz, pois teme perder a mesma para um meio que irá destruir a alma dela. Ele também se mostra pessimista em função do fato de que os filmes autorais não são exibidos na TV.

Estes temas também estão presentes no filme, como o fato de que o filme dirigido por Gaspard tem a sua criatividade limitada pelas imposições do produtor, que mal consegue financiar a produção, e pelo fato de que o seu filme assume um tom mais comercial e bem menos artístico.

Enquanto isso, a música de Joni Mitchell ('Shadows and Light') está relacionada à situação de Eurídice, que deseja seguir a carreira de atriz, mas que é avisada pelo marido (Almereyda) de que isso será fatal para a sua vida, ao mesmo tempo em que percebe que não poderá se expressar artisticamente da maneira que gostaria, vivendo entre as sombras e a luz.

A trama do filme!

A trama gira em torno de Jean Almereyda que é um pequeno produtor de cinema independente, dono de uma empresa chamada 'Albatros Films'. Ele enfrenta inúmeras dificuldades para obter recursos financeiros a fim de poder realizar o seu novo filme. Ele tenta conseguir dinheiro com investidores italianos, mas as resistências dos mesmos o levam a aceitar recursos de origem duvidosa.

Obs1: Jean-Pierre Mocky dirigiu um filme chamado "L'Albatros", em 1971, daí a escolha, por parte de Godard, deste nome para a produtora de Almereyda (personagem de Mocky) no filme.

E quando é questionado por sua secretária a respeito disso, Almereyda responde dizendo que a palavra 'secretária' vem de 'segredo', exigindo que ela não falasse nada a respeito do assunto com ninguém.

A bela Eurídice (Maria Valera) possui uma beleza clássica, que a aproxima do cinema dos anos 1930, além de ter um olhar diferente sobre a Arte. Seu marido (Almereyda) tenta fazer com que ela desista de ser atriz, pois diz que 'os filmes matam a vida'.


Na trama do filme, o produtor Jean Almereyda resiste aos pedidos da sua esposa (a bela Eurídice) que deseja ser submetida aos testes para escolha do elenco para o filme, que será baseado em um romance policial, de autoria de James Hadley Chase, chamado 'Chantons en Choeur'.

Eurídice tem uma beleza clássica e se parece muito com a atriz francesa Dita Parlo, que fez sucesso na década de 1930 e que participou do clássico 'A Grande Ilusão', de Jean Renoir (vemos um pequeno trecho do filme). Esta é a época cujo cinema Gaspard Bazin diz que admira.

E o diretor Gaspard Bazin (cujo nome é referência ao grande crítico André Bazin, um dos fundadores da 'Cahiers du Cinéma'), apesar das resistências de Almereyda, lhe dá a chance que ela pediu, pois gostou das respostas da bela Eurídice a respeito do que ela via em algumas pinturas que lhe foram mostradas.

Almereyda não quer que a esposa inicie uma carreira de atriz, pois ele diz que 'os filmes matam a vida' e teme o que poderá acontecer com ela caso comece a atuar. Apesar disso, mesmo contrariado, Almereyda acabará aceitando que ela participe dos testes de elenco.
Godard participa do filme, dialogando com o Almereyda, personagem de Jean-Pierre Mocky. Os dois Jeans lamentam o fato de que enfrentam grandes dificuldades para produzir seus filmes, marcadamente autorais.

Almereyda também questiona porque a TV não mostra os filmes dele, ou seja, de produtores e cineastas independentes, de caráter mais artístico e não comercial, mas Gaspard diz que isso irá mudar. Porém, Almereyda demonstra o seu ceticismo a respeito e cita o caso de Hitler, que diziam que seria contido (por meio da política de 'Apaziguamento'), mas isso não aconteceu.

Ele diz isso para rebater a afirmação de Gaspard, como se esse desejo de ver os filmes na TV fosse apenas uma ilusão, tal como aconteceu com a tentativa de, durante a década de 1930, de impedir o estouro da Segunda Guerra Mundial. Daí a referência ao filme 'A Grande Ilusão', obra-prima de Jean Renoir, que trata justamente disso.

Em 'Grandeur...', Gaspard também é um diretor de cinema e que passou a trabalhar com vídeo (o que aconteceu com o próprio Godard nos anos 1970) e que tem que escolher os figurantes que irão participar do filme, fazendo inúmeros testes, o que o leva a gastar muito tempo e dinheiro com isso.

Para Gaspard, os atores devem desafiar o seu papel, para que também se sintam desafiados pelo público, o que é considerado algo muito literário pelo produtor. Assim, também vemos as dificuldades de um cineasta em levar adiante a sua ideia para o filme, pois é bloqueado em seu processo criativo.
Godard faz um excelente uso de belas imagens sobrepostas em vários momentos do filme. A bela Eurídice quer seguir uma carreira no cinema, mas logo se desilude com a pouca relevância artística da produção.

Eurídice, a esposa de Almereyda, ambiciona seguir a carreira de atriz, mas ela tem um rosto e uma formação clássica e possui um olhar diferente para interpretar obras de arte clássicas (como as duas pinturas de Tintoretto) e isso é a comprovação do fato de que não existiria mais espaço para alguém com o perfil dela no cinema contemporâneo, de caráter bem mais comercial. 

Isso explica as críticas à grande produção de Polanski e a referência a 'Rocky IV' feita por Gaspard em uma conversa telefônica.

Assim, Eurídice seria mais adequada ao cinema de antigamente, tanto que em um determinado momento ela pensa em desistir de participar do filme, pois percebe que o mesmo não tem os elementos artísticos que esperava, e quando vai filmar ela não obedece às ordens de Gaspard, pois não está fazendo o filme que gostaria.

O fim trágico de Almereyda é uma representação da ideia presente no filme, eminentemente pessimista, ou seja, de que produções que possuem um caráter mais autoral e artístico não teriam mais espaço naquele momento histórico, em que a TV assumiu um papel predominante entre as mídias e no qual o cinema tinha sido dominado por produções de caráter explicitamente comercial.
Godard mostra uma visão pessimista a respeito do Cinema neste filme e o final trágico de Almereyda representa muito bem esse pessimismo. A imagem de Almereyda é exibida na TV, mostrando a perda de espaço do cinema para essa mídia, que se massificou pelo mundo todo nos anos 1960 e 1970.

Informações Adicionais!

Título: Grandeur et decadence d'un petit commerce (Ascensão e Queda de uma Produtora de Cinema);
Diretor: Jean-Luc Godard;
Roteiro: Jean-Luc Godard;
Gênero: Drama;
Duração: 92 minutos;
Ano de Produção: 1986;
País de Produção: França;
Elenco: Jean-Pierre Léaud (Gaspard Bazin); Jean-Pierre Mocky (Jean Almeyreda); Marie Valera (Eurídice); Jean-Luc Godard (ele mesmo); Caroline Champetier (Carol); Anne Carrel (ela mesma); Françoise Desporte (ela mesma); 

Trailer do filme:
https://www.youtube.com/watch?v=oLuU0lZ9Twk



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