'Parasite' mostra os efeitos da transformação das pessoas em mercadorias e como as desigualdades afetam as relações entre as classes sociais, criando uma sociedade de castas e gerando um "Apartheid Social"!

'Parasite' mostra os efeitos da transformação das pessoas em mercadorias e como as desigualdades afetam as relações entre as classes sociais, criando uma sociedade de castas e gerando um "Apartheid Social"! - Marcos Doniseti!
'Parasite' mostra quais são os efeitos das crescentes desigualdades sociais e culturais nas relações entre pessoas, famílias e classes sociais, mostrando que sociedade atual é cada vez mais marcada pela existência de castas e de um 'Apartheid Social'.

Afinal, porque a família Kim vive na miséria?

Hoje eu li um texto no qual o autor faz uma série de criticas ao filme 'Parasite' e das quais eu discordei inteiramente, pelos motivos que exponho a seguir. Em seu texto, o autor pergunta: 'Que conjunção de fatores levou a família de Kim-Taek ao desemprego e ao confinamento num porão imundo?

O autor do texto diz que não existe uma explicação para esse fato no filme. Bem, entendo que ele se equivocou totalmente nesta crítica, pelas razões que comento a seguir. Oras, o fato dos membros da família Kim viverem na miséria acontece em função dela constituir uma unidade que é formada por trabalhadores precários.

Os trabalhadores precários, que são chamados de 'Precariado' por alguns estudiosos respeitados, surgiram como resultado de uma conjunção de fatores que são provocados pela cada vez maior da exploração da força de trabalho, que gerou crescentes desigualdades sociais, culturais e comportamentais que passaram a existir, com maior intensidade, entre ricos e pobres no mundo capitalista globalizado contemporâneo.

No mundo inteiro, as desigualdades sociais estão aumentando rapidamente e isso acontece já há várias décadas, sendo que este fenômeno ocorre mesmo nos países mais ricos, como são os casos dos EUA, da União Europeia e do Japão. O sociólogo britânico Guy Standing, que cunhou o termo 'Precariado', diz que os salários dos trabalhadores dos EUA se encontram estagnados há mais de 30 anos.

A família Kim, formada por trabalhadores precários, não tem como pagar acesso à Internet e usa da senha do Wi-Fi dos vizinhos.

A Coreia do Sul foi um dos poucos países que, no Pós-Guerra, entrou para esse exclusivo 'clube' dos países ricos. 

Não irei comentar aqui as razões do sucesso econômico sul-coreano, que está ligado à uma rápida industrialização, estimulada e bancada pelo Estado, que apoiou a formação de grandes conglomerados empresariais (chamados de 'Chaebols'; Samsung; LG, Hyundai...) que se tornaram competitivos globalmente, integrando-se de maneira eficiente à uma economia globalizada que desenvolveu bastante no Pós-Guerra.

Porém, mesmo com o seu rápido processo de desenvolvimento econômico, que se deu a partir da segunda metade dos anos 1960, a Coreia do Sul adotou um modelo capitalista que não eliminou as desigualdades sociais.

E estas desigualdades sociais aumentaram na Coreia do Sul, bem como em todos os países desenvolvidos, em função da imposição das políticas Neoliberais que eliminaram ou reduziram drasticamente os direitos sociais, trabalhistas e previdenciários, bem como reduziram a tributação sobre as grandes empresas e os mais ricos.

Este processo, de expansão do Neoliberalismo pelo mundo, se desenvolveu, principalmente, a partir da ascensão de Ronald Reagan e  Margaret Thatcher ao comando dos governos dos EUA e do Reino Unido, entre 1979-1981, pois eles usaram do acesso aos recursos do FMI e do Banco Mundial como mecanismo de imposição destas políticas.

A família Kim é formada por trabalhadores precários que vivem de prestar serviços mal remunerados, incluindo o trabalho de dobrar caixas de pizza, fazendo isso em condições ruins e sem ter acesso a direitos sociais ou trabalhistas. Aqui no Brasil eles seriam chamados de 'empreendedores'. 


Os efeitos do trabalho precário!

O que o filme de Bong Joon-Ho mostra é o resultado deste processo de aumento das desigualdades sociais na Coreia do Sul e como isso afeta as relações entre duas famílias, uma rica (Park) e uma miserável (os Kim). Assim, ele mostra quais são os efeitos das crescentes desigualdades sociais na Coreia do Sul, fenômeno este que tem alcance global.

Aliás, a maneira inteligente, criativa e crítica pela qual Bong Joon-Ho retratou essa situação é um dos principais motivos que explica os elogios que o filme recebeu, bem como o sucesso e os prêmios que foram conquistados por 'Parasite' mundo afora, entre os quais nós tivemos a Palma de Ouro em Cannes 2019 e Oscar de Melhor Filme em 2020, além de conquistar os prêmios de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar (EUA), César (França) e BAFTA (Reino Unido).

Isso aconteceu porque o filme reflete e crítica uma situação que está presente no mundo todo, que são as crescentes desigualdades sociais e as suas consequências nas relações entre as classes sociais, que levam a uma criação marcada pela existência de Castas que não se misturam e que não se conhecem, levando à criação de uma sociedade marcada por um claro 'Apartheid Social'. 

Inclusive, é bom ressaltar que as pessoas se concentraram em comentar as desigualdades sociais que 'Parasite' mostra, mas o filme vai muito além disso, deixando claro que as desigualdades também são de outras naturezas: de comportamento, cultura e de valores. 

Os membros da família Kim tentam convencer a empregada da empresa de pizza a demitir um funcionário para contratar Kim Ki-woo, o filho mais velho, para trabalhar na empresa. Assim, eles tentam melhorar de vida usando desse tipo de 'malandragem'. 

Assim, 'Parasite' não se limita a mostrar que existem ricos e miseráveis, ou seja, não se limita a mostrar as questões econômicas e sociais, mas mostra que também existem brutais diferenças na questão dos valores e de comportamento entre as duas famílias, a dos ricos (Park) e a dos miseráveis (Kim).

E o filme mostra que tudo isso também existe na Coreia do Sul (na verdade, existe até mesmo nos EUA, o país mais rico do mundo, na União Europeia e no Japão) embora essas desigualdades não estejam no mesmo patamar daquelas que temos no Brasil, que é um dos 10 países mais desiguais do mundo. 

Então, ao contrário do que o autor disse em seu texto, o filme responde a essa questão, sim, de qual é a causa da miséria e do abandono em que a família Kim vive.

Obs1: Entre os principais livros sobre o tema do 'Precariado', que está diretamente relacionado ao filme 'Parasite', bem como também com o 'Joker' ('Coringa', de Todd Philips), eu recomendo o 'Precariado - A nova classe perigosa' (de Guy Standing), 'A Rebeldia do Precariado' (de Ruy Braga) e 'O Privilégio da Servidão' (de Ricardo Antunes).

Devido a uma recomendação de um amigo, a família Park contrata Kim Ki-woo para dar aulas de Inglês para a filha mais velha (Park Da-hye), que acabará se apaixonando por ele. Daí ele adotará um plano para levar os outros membros da sua família para que eles também passem a trabalhar para os ricos Park.


A posição social e econômica da família Kim no capitalismo sul-coreano!

Logo, uma outra crítica, totalmente sem fundamento, que foi feita ao 'Parasite' é a de que ele não mostraria qual é a origem da miséria em que a família Kim vive, como se ela tivesse aparecido na história por combustão espontânea e não fosse integrada por um grupo de pessoas que são, efetivamente, trabalhadores precários.

Quem afirma isso só poder estar brincando e, sinceramente, duvido de que tal pessoa tenha assistido ao filme. Ou então essa pessoa o assistiu e mal prestou atenção no mesmo, deixando de compreender os principais elementos de 'Parasite', levando esse indivíduo a fazer críticas sem qualquer embasamento ao filme.

Afinal, logo no começo de 'Parasite' vemos que a família Kim vive de dobrar caixas de pizza para uma empresa ('Pizza Generarion') e que é muito mal remunerada por esse serviço que presta e pelo qual não tem acesso a qualquer direito social ou trabalhista, o que é uma característica essencial do chamado 'Precariado'.

Os membros da família Kim trabalham dentro de sua miserável residência, em um fim de mundo, em um local rebaixado (que sempre alaga quando chove muito), e são muito mal remunerados, tanto que o filho dos Kim pede para ser contratado pela empresa de caixas de pizza, a fim de aumentar a renda da família. Ele se oferece para fazer esse trabalho, mesmo em condições de grande exploração, logo no começo do filme.

Entendo que é impossível assistir ao 'Parasite' e não se lembrar desta situação, pois este é um momento inicial do filme no qual o diretor (Bong Joon-Ho) está mostrando, claramente, qual é a posição, social e econômica, que a miserável família Kim ocupa na economia e na sociedade da Coreia do Sul.

Kim Ki-woo leva a sua irmã (Kim Ki-jung) para trabalhar na casa da família Park, onde irá dar aulas de Arte para o caçula (Park Da-song). Depois, será a vez do pai (Kim Ki-taek) e da mãe (Kim Chung-sook) passar a trabalhar na casa.

Ele deixa claro que os Kim são uma família de trabalhadores precários e miseráveis, que trabalham em situação de forte exploração e que ganham uma mixaria pelo trabalho que realizam, bem com o fazem em uma situação de total precariedade, em uma pequena e miserável residência que está sujeita a frequentes alagamentos.

A família Kim é tão miserável que sequer tem dinheiro suficiente para pagar por um serviço de internet, usando do serviço de Wi-Fi dos vizinhos. E é claro que a alimentação deles também é muito ruim e que tudo isso ocorre em função do trabalho precário e mal remunerado que realizam. 

Aliás, notem que os membros da família Kim sempre procuraram ganhar a vida por meio do trabalho, sem apelar para o crime, embora trabalhem e vivam de forma precária. Logo, a família Kim faz parte do chamado 'Precariado'. 

Assim, esses trabalhadores precários fazem trabalhos mal remunerados, não tem acesso a direitos sociais e trabalhistas, não ficam muito tempo no mesmo emprego e são obrigados a aceitar qualquer tipo de trabalho, por qualquer salário (muito inferior à média e, até, menor do que o Salário Mínimo), sendo que muitos tem que trabalhar em dois ou três lugares diferentes para conseguir pagar as contas do mês.

Esclarecendo: Precariado é o nome usado por respeitados sociólogos (Guy Standing, Ricardo Antunes, Ruy Braga) para definir esse tipo de trabalhador que surgiu nas últimas décadas em função das reformas Neoliberais que se disseminaram pelo mundo todo, incluindo os EUA, UE, Japão, Coreia do Sul, América Latina. Ricardo Antunes diz que esse processo de precarização das relações trabalhistas está inteiramente globalizado e que, agora, ele é a regra e não a exceção, como acontecia antigamente. 

Kim Ki-jung começou a trabalhar para a família Park dando aulas de Arte para o filho caçula (Park Da-song). Esperta, ela diz que aprendeu tudo no Google e improvisou o que ela não sabia. Ela também possuía outras habilidades, como a de falsificar documentos, e era bastante individualista, sendo a integrante da família Kim que tinha o maior potencial para ascender socialmente.

Como é que os Kim aprenderam a 'enganar' os ricos?

O autor do texto em questão também perguntou qual seria a origem da grande capacidade que é demonstrada pelos membros da família Kim de se camuflar entre os membros da família Park e de conseguir enganá-los com tanta facilidade. 

Bem, a minha resposta é que esta é uma característica dos pobres e miseráveis que está presente em inúmeros países, no mundo inteiro, em todos os momentos históricos, sociedades e civilizações, pois os miseráveis precisam aprender a 'se virar' para poder sobreviver. 

E é claro que aqueles que nunca viveram na miséria e que não conhecem a história das sociedades humanas não fazem ideia do que seja isso. Os miseráveis aprendem isso porque é uma questão de sobrevivência. E não precisa que ninguém os ensine a serem malandros, pois é a própria vida que se encarrega disso. 

Na Antiguidade e na Idade Média isso também acontecia, pois elas também eram sociedades marcadas por imensas desigualdades sociais entre os ricos e os miseráveis. 

E 'Parasite' mostra que aqueles que nunca viveram na pobreza e na miséria (caso dos membros da família Park) nunca precisaram fazer uso destes recursos, destas 'malandragens' que os Kim usam, pois os Park nasceram em berço de ouro, estudam nas melhores escolas e universidades, tem acesso a intercâmbios com outros países, compram produtos importados e desfrutam de acesso à saúde privada e, logo, muito cara.

E muito ao contrário do que se pensa, esse 'jeitinho', essa 'malandragem' que é usada em 'Parasite' pelos miseráveis para tentar sobreviver, não é uma exclusividade brasileira, existindo em outros países também, incluindo todos aqueles onde temos imensas desigualdades sociais e também temos muitos miseráveis.

O motorista da família Park demonstra interesse pela jovem e bonita Kim Ki-jung e aproveita o momento para comprometer o mesmo perante os patrões, fazendo com que ele seja demitido, permitindo que o seu pai fosse contratado no lugar do mesmo. 

O que 'Parasite' mostra é que as pessoas que vivem na miséria tem que fazer uso de vários artifícios (dos quais os mais ricos ou a classe média mais abastada não necessitam) para poder comer, morar, se vestir, usar a Internet e se divertir.

Os 'gatos' que temos no Brasil, por exemplo, para que as pessoas mais pobres e miseráveis possam ter acesso a serviços de água, energia e TV paga são um exemplo perfeito desse tipo de artifício. Mas isso não é exclusividade brasileira, tal como 'Parasite' deixa bem claro.

O que explica as ações dos personagens?

Também li, no texto em questão, que os personagens de 'Parasite' também se comportariam como se fossem 'robôs', agindo como se as ações deles fossem resultados de uma teoria elaborada em laboratório, não possuindo qualquer conexão com o mundo real. Porém, eu discordo totalmente desta afirmação, que não tem qualquer base ou fundamento. 

Afinal, existem razões concretas para que os personagens se comportem da maneira que o diretor mostra em seu filme. Entendo que as ações dos personagens não tem absolutamente nada de robóticas, mas são explicadas pelas imensas desigualdades existentes entre eles, que não são apenas econômicas e sociais, mas também culturais, valores e de comportamento, como já afirmei.

A família Kim aproveita que os membros da família Park foram acampar para aproveitar, pelo menos por um breve momento, de condições de vida com as quais eles podem apenas sonhar, mas que também gostariam de desfrutar.

Logo, as ações deles (membros da família Kim) são fruto de uma situação concreta, que é o fato de que eles são trabalhadores precários, que são explorados por seus empregadores, que vivem na miséria e que, em função do fato de terem sido literalmente abandonados por todos, inclusive pelo governo, acabaram por criar mecanismos próprios de sobrevivência, que são as tais 'malandragens' ou 'jeitinho'. 

E as suas ações também são fruto do fato de que eles possuem valores e costumes bem diferentes daqueles que integram a rica família Park, pois elas vivem em realidades totalmente diferentes e contraditórias, como se estivessem localizadas em diferentes universos, o que caracteriza a existência de um claro regime de 'Apartheid Social' informal, não regulamentado, e cuja formação se dá por fatores históricos, econômicos, sociais, culturais, educacionais, de valores e de comportamento. 

Assim, enquanto os Kim são obrigados a usar do wi-fi dos vizinhos para ter acesso à Internet, isso já não acontece com os Park. Estes últimos, por sua vez, gostam muito quando chove, o que para os Kim representa uma situação catastrófica, pois a sua casa fica alagada sempre que isso acontece. 

As duas famílias, desta forma, vivenciam situações completamente diferentes e de significados totalmente distintos. O mesmo fenômeno, a chuva, que é bem vista por uns (os Park) representa uma catástrofe para outros (os Kim). E o filme mostra que os ricos não fazem a menor ideia, e nem se interessam em fazer, de como os miseráveis vivem, o quanto eles sofrem, e nutrem um profundo desprezo pelos mesmos.

Moon-wang ameaça enviar, para os Park, o vídeo que denunciara as 'malandragens' da família Kim. Assim, 'Parasite' mostra que os trabalhadores precários não costumam se mobilizar e se organizar para promover lutas coletivas, sendo que, na verdade, lutam entre si para obter ascender socialmente.

Um exemplo claro desse desprezo dos Park pelos Kim se dá na questão relacionada ao cheiro, que é usada de forma muito criativa por Bong Joon-Ho no filme. 

Assim, por meio do uso deste elemento, o diretor mostra muito bem esse desprezo dos Park (Dong-ik e a sua esposa Yeon-kyo) pelos membros da família Kim, nas várias cenas em que o casal rico (Park) se sente incomodado com o cheiro que é exalado pelos membros da família de miseráveis (os Kim).

Notem que o pai da família Kim (Ki-taek) decidiu matar o pai da família de ricos Park (Dong-ik) justamente depois que este se referiu ao mau cheiro exalado por ele e pelos membros da sua família. 

Inclusive, enquanto esses comentários sobre o seu cheiro ainda não tinham sido feitos pelos patrões ele gostava muito de conversar com os dois, pelos quais nutria uma clara simpatia, o que era resultado do fato de que ele (Kim Ki-taek) era grato aos mesmos por ter lhes dado esse emprego, que ele tanto necessitava para poder melhorar as condições de vida de sua miserável família. 

No entanto, o seu comportamento mudou totalmente depois que ele, Kim Ki-taek, ouviu, quando estava escondido embaixo da mesa na sala de estar, o patrão reclamar do mau cheiro dele. Depois disso, ele nunca mais conversou ou se mostrou simpático com os seus patrões, deixando claro o quanto aquele comentário tinha sido humilhante para ele. 

O casal Park em sua vida luxuosa. Nesta cena ele (Park Dong-ik) diz para a esposa (Park Yeon-kyo) diz ela não tem o mesmo cheiro das pessoas que andam de metrô, como é o caso dos Kim. O cheiro, no filme, é mostrado como um elemento que diferencie os membros das diferentes classe sociais.

A sociedade de castas e o 'Apartheid Informal'! 

Em 'Parasite', os membros da família rica (os Park) não se importam em saber, em momento algum, qual é a origem daquele cheiro que tanto os incomoda, pois isso os obrigaria a se interessar pelas condições de vida da família de miseráveis (os Kim). E eles estão pouco se lixando para isso. 

Isso acontece porque os ricos Park não dão a mínima para os Kim enquanto pessoas, se importando apenas com que os mesmos façam os trabalhos para os quais foram contratados. 

Aliás, Park Dong-ig (pai) e Park Yeon-kuo (mãe) evitam até mesmo de ter contato físico com os seus empregados, a fim de que fiquem separados deles, como se pertencessem a castas distintas. Os Park nunca cumprimentam e não tocam nos Kim. A única exceção é a filha, que se apaixonou por Kim Ki-woo (Kevin).

O fato de que eles (os ricos Park) não sabem qual é a verdadeira origem social dos membros da família Kim mostra isso muito bem. Em nenhum momento os membros da família Park se interessam em saber como os miseráveis Kim vivem, onde eles moram, se eles estão vivendo bem ou não. Os Kim são tratados pelos Park como se eles fossem seres de outro planeta, que recebem pelos serviços prestados e depois entram em seu OVNI e voltam para o seu planeta de origem. 

Assim, quando a esposa de Park (Yeon-kyo) fala que a chuva da noite anterior foi maravilhosa, ela não se importa, em momento algum, em perguntar para o pai da família Kim (Ki-taek) se ele havia gostado da chuva. Se a esposa de Park tivesse feito a pergunta ou algum comentário sobre isso com o pai da miserável família Kim, então ela ficaria sabendo que a casa dele havia ficado totalmente alagada devido à mesma chuva da qual ela tanto gostou.

A casa da família Kim fica inteiramente alagada quando chove intensamente. Muitas famílias brasileiras enfrentam o mesmo problema na época das chuvas. Com isso, as suas roupas ficam cheirando mal. 

Mas ela (Park Yeon-kyo) e o seu marido rico (Park Dong-ik) não estão nem aí para os miseráveis. Eles os tratam como se os mesmos fossem invisíveis. Então, no filme, a ingenuidade dos ricos (os Park) quanto às características da vida e dos valores dos membros da família Kim é fruto do desprezo que eles demonstram, o tempo inteiro, pelos miseráveis, agindo como se estes existissem apenas para servi-los. O resto simplesmente não lhes diz respeito.

Os ricos Park, claramente, tratam os Kim como se fossem uma mera mercadoria, o que eles de fato são. Isso fica muito evidente novamente na festa de aniversário do filho dos Park, quando o Park Dong-ik diz para Kim Ki-taek que iria pagar para eles pelo fato de que ele e a sua família estavam ali, trabalhando. Assim, os Kim não estavam na festa como convidados, mas como empregados.

Desta forma, percebe-se, claramente, que os ricos Park não convivem com os miseráveis Kim, a não ser quando estes são seus empregados. Fora desse contexto, eles se limitam a conviver com pessoas da sua classe social, que é a dos ricos, como acontece na festa de aniversário que realizam, deixando clara a existência de um regime de 'Apartheid Social' que é criado por essas gigantescas desigualdades sociais e culturais. 

Logo, como os Park ricaços nunca convivem com os miseráveis fora de uma situação na qual os estão explorando, como é que eles irão descobrir, exatamente, quais são as características das personalidades, os valores e os costumes dos miseráveis Kim? Isso nunca irá acontecer, pois os Park não se importam com nada disso. A relação entre eles, Park, e os Kim, é aquela que existe entre patrões e empregados.

Park Yeon-kyo sente-se mal no carro, um luxuoso Mercedes-Benz, em função do cheiro exalado por Kim Ki-taek. Ela também comenta o quanto a chuva da noite anterior foi boa, ignorando que a casa da família Kim ficou totalmente alagada em função disso. Assim, os Park ignoram totalmente as reais condições de vida dos Kim, mostrando o quanto a sociedade atual está, cada vez mais, dividida não apenas em classes, mas também em castas que não se misturam.

Então, como os Park não convivem com os Kim (a não ser com estes na condição de mera força de trabalho explorada) e, por isso, não sabem como os Kim são, eles terminam por ignorar completamente quais são as 'espertezas', os 'artifícios', as 'malandragens' que os mesmos usam para poder sobreviver.

Portanto, é essa mescla de desprezo e ignorância que sujeita a família de ricaços do filme (os Park) a serem enganados tão facilmente pelos membros da família de miseráveis (os Kim). O que o diretor mostra é que existe, de fato, um regime de Castas e de Apartheid Social nesse tipo de sociedade. 

Desta maneira, entendo que essas críticas que se fazem ao 'Parasite', ou seja, de que o filme não explicaria quais são as razões e as motivações dos personagens para agirem desta forma, não tem qualquer fundamento. Entendo que tudo isso está presente no excepcional 'Parasite', sim. Basta prestar atenção a todos os inúmeros, ricos e variados detalhes que estão presentes no filme para se poder compreender o mesmo.

Logo, 'Parasite' conecta o mundo e as características individuais dos personagens com os principais aspectos de uma economia e de uma sociedade cada vez mais excludente e desigual e na qual ricos e os miseráveis estão cada vez mais distantes, vivendo como se fossem membros de castas, seguindo e adotando valores e costumes completamente diferentes.

Kim Ki-taek ouve instruções de Park Dong-ik, que lhe diz que irá pagar horas extras por estar trabalhando na festa de aniversário de seu filho mais novo (Park Da-song). Assim, os Kim não são convidados para a festa, pois eles são considerados e tratados, pelos Park, como empregados. Logo, os Park não interagem com os Kim em igualdade de condições, como acontece com os demais convidados.

Nesta sociedade extremamente desigual e excludente, e que é cada vez mais separada por um comportamento de castas que não se misturam, os primeiros, os ricos, veem os segundos, os miseráveis, como mera força de trabalho e, nos demais aspectos (ou seja, como seres humanos), eles são invisíveis.

Já os segundos, os miseráveis, tem como prioridade tentar sobreviver em um mundo no qual são tratados como meros instrumentos de trabalho (mercadoria), na qual a sua dimensão humana é ignorada e num contexto no qual eles são discriminados, até mesmo, pelo cheiro que exalam.

Na verdade, 'Parasite' mostra o que acontece nas relações sociais quando o ser humano é explorado, é tratado como se fosse uma reles mercadoria, criando-se uma sociedade altamente desigual e que se baseia em valores de castas, deixando claro quais são as consequências deste tipo de relação social.

Esta, claramente, me parece ser o conceito central de 'Parasite' e é justamente contra essa condição que os Kim se rebelam, pois eles não aceitam ser tratados desta forma, como meros vendedores da sua força de trabalho. Os Kim querem ser tratados como seres humanos e é justamente a ausência disso que os leva a usar dos 'artifícios', 'espertezas' e 'malandragens' para poder sobreviver.

Logo, os miseráveis Kim também se consideram no direito de morar numa boa casa, que não alague todas as vezes que chove bastante, de beber uísque, de ter um belo automóvel, de colocar os seus filhos em uma boa escola, enfim, de ter acesso às riquezas e benefícios que são produzidas pela sociedade. 

Este é um tipo de rebelião, sem dúvida, mas que se limita aos membros da família.

A festa de aniversário do caçula da família Park termina em tragédia, gerando o fracasso dos planos da família Kim para ascender socialmente. 

A rebelião dos Kim e a solução fantasiosa!

Um outro elemento importante que está presente em 'Parasite', é que essa rebelião dos Kim não passa por nenhum tipo de 'consciência de classe', ela não é uma forma de luta coletiva (como pregava Marx, Engels, Lenin, Mao, Che...), mas meramente individual, limitando-se à família, pois as lutas coletivas perderam força no mundo contemporâneo e são desprezadas pelos próprios miseráveis.

Afinal, nós vivemos na era da 'meritocracia' e muitas pessoas foram convencidas, por uma propaganda muito eficiente, porém enganosa, de que se elas se esforçarem bastante, então elas conseguirão enriquecer, mesmo que este discurso seja inteiramente falso e não passe de uma gigantesca falácia. 

Obs2: O sociólogo britânico Guy Standing confirma o que Bong Joon-Ho mostra em seu filme, dizendo que no sistema atual as pessoas talentosas e que trabalham duro não são premiadas. Ele diz que há muitos talentos desperdiçados entre membros do Precariado, enquanto que outras pessoas, desprovidas de talento, estão milionárias. 

Assim, enquanto que Kim Ki-taek ainda demonstrou preocupação com o que teria acontecido com o motorista (Yoon) do qual ele tomou o emprego, a sua bela e jovem filha, Kim Ki-jung, diz para ele não se preocupar com isso e que eles deveriam se preocupar apenas com eles mesmos, mostrando o quanto ela possuía um espírito individualista e egoísta. 

No início do filme a família Kim ganha uma pedra do avô de Min e que simboliza o desejo de melhorar de vida. Kim Ki-woo ficará com ela o tempo inteiro. O filme possui várias metáforas visuais que simbolizam as desigualdades existentes entre os Park e os Kim (escadas, linhas, posição dos personagens). Mais pragmática, a mãe diz que preferia ter ganho um pouco de comida...

Não foi à toa, assim, que o próprio pai, Kim Ki-taek, diz que a filha é a integrante da família Kim que estava melhor preparada para viver da mesma forma que os Park viviam, pois embora seja pobre ela possui o mesmo tipo de pensamento, de mentalidade e de comportamento que os Park. 

Isso explica porque, no final do filme, o filho da família Kim continua acreditando que poderá ascender socialmente por meio do seu próprio esforço e que, desta maneira, ele um dia poderá comprar a casa luxuosa em que o pai está vivendo no porão, na miséria, como um invisível. Mas a realidade é totalmente diferente do que ele imagina e o seu pai está vivendo no porão da casa. 

Portanto, mesmo vivendo nesta situação de miséria, em nenhum momento os membros da família Kim manifestam a intenção de participar de algum protesto, manifestação ou movimento social organizado para tentar mudar a situação de miséria na qual eles vivem. A solução coletiva simplesmente não faz parte da sua agenda.

Essa forma de comportamento, individualista, fica bastante evidente quando, mesmo quando a casa deles sempre fica alagada quando chove muito, nós não os vemos reclamar disso junto ao governo pois, este último, tal como os Park, ignora a sua existência. 

Depois que os seus planos e de sua família de ascender socialmente trabalhando como prestadores de serviços da família Park fracassaram, o chefe da família (Kim Ki-taek) vai morar no porão da antiga casa dos Park. A 'invisibilidade' é uma das principais características dos trabalhadores que integram o Precariado, pois eles raramente se mobilizam para promover lutas coletivas.

Os membros da família Kim são invisíveis, o que é uma característica do Precariado, e isso ocorre justamente porque os trabalhadores precários não tem tradição de se mobilizar e de se organizar coletivamente. Aliás, isso fica claro quando os Kim descobrem a existência de um miserável (Geun-se) que é casado com a antiga governanta (Moon-gwang) da casa dos Park e que vive no abrigo subterrâneo da mesma.

Em nenhum momento as duas famílias de miseráveis pensam em se unir e em se ajudar, muito pelo contrário, elas travam uma batalha para ver quem conseguirá os favores dos Park (como o direito de viver no abrigo da casa e trabalhar para eles). Então, o filme de Bong Joon-Ho não faz uma crítica apenas aos ricos, à burguesia, mas também aos pobres, que insistem em soluções individuais e egoístas para tentar ascender social e economicamente. 

Desta maneira, a única solução, para tentar superar a situação de miséria em que vivem, que os Kim enxergam é a de trilhar um caminho individual como mecanismo de ascensão na sociedade, pois eles estão em um contexto em que vivem em uma miséria atroz, são ignorados por todos e também na qual eles não se interessam ou desconhecem formas de luta coletivas.

Obs3: O fenômeno dos chamados 'Coletes Amarelos', na França, mostrou que trabalhadores precários podem sim conseguir se mobilizar e se organizar, com o objetivo de lutar por melhores condições de vida e de trabalho, mas esse fenômeno ainda não se globalizou.

Em um primeiro momento os Kim tentaram a estratégia dos 'jeitinhos', das 'espertezas', das 'malandragens', para melhorar de vida, mas isso fracassou e terminou em tragédia, com a morte de . E depois, no fim, o filho dos Kim (Ki-woo) mostra que ele tentará o caminho do esforço individual, por meio do estudo, para conseguir enriquecer.

Momento em que o filho dos Kim (Ki-woo) está sonhando com a possibilidade de melhorar de vida, enriquecendo, e no qual decide comprar a casa em que a sua irmã morreu e na qual o seu pai (Kim Ki-taek) está morando no porão.

Porém, Bong Joon-Ho deixa claro, no final do filme, que esse caminho é uma ilusão e que eles nunca sairão da miséria em que vivem enquanto esse modelo de sociedade e de economia, imensamente desigual, excludente e que é cada vez mais marcada por comportamentos e valores de castas, continuar existindo.

Logo, considero que as críticas ao 'Parasite' são muito frágeis e que não tem nenhum fundamento, pois me parece que quem as fez não conseguiu compreender todos os elementos que estão presentes no excepcional filme de Bong Joon-Ho, que soube reunir todos eles de forma bastante criativa e ousada, fazendo com que 'Parasite' possa ser considerado um sério candidato a clássico.

Portanto, se alguém quiser criticar 'Parasite' em seus fundamentos teóricos, então tais pessoas terão que provar, nos mínimos detalhes, que as teses e ideias apresentadas em 'Parasite' pelo diretor Bong Joon-Ho, e sobre as quais eu comentei aqui, estão erradas, o que não será nada fácil, pois tudo o que ele mostrou é o que tem acontecido no mundo nas últimas décadas.

Afinal, negar que no Capitalismo existe luta de classes e que o Capitalismo Neoliberal restringe a ascensão social a uma pequena elite é desconhecer tudo o que está acontecendo no mundo nas últimas décadas. E quem se nega a reconhecer isso, então sugiro que tal pessoa procure se atualizar e se informar melhor, pois os conhecimentos da mesma estão muito defasados. 

E os livros que indiquei nesse texto são ótimos pontos de partida para se começar a entender o fenômeno do Precariado, que é o principal tema de 'Parasite'.

Kim Ki-woo, no mundo real, promete a si mesmo que irá melhorar de vida e que irá comprar a antiga casa do Park e na qual o pai está vivendo no porão. Ele não abandona o sonho da ascensão social, mas agora tentará atingir o seu objetivo sem o uso de 'malandragens', e sim por meio do estudo e do esforço individual.

Links:

Vídeo - Qual é o conceito de Precariado? O sociólogo brasileiro Ruy Braga explica:
https://www.youtube.com/watch?v=ZT471IlJ7Vg

Guy Standing (entrevista): Sistema atual não premia nem o talento e nem o trabalho duro:
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/10/economia/1494440370_281151.html

Ruy Braga analisa o fenômeno dos 'Coletes Amarelos' na França:
https://blogdaboitempo.com.br/2018/12/10/o-colete-amarelo-de-e-p-thompson/

Ricardo Antunes: 'Na Escravidão o trabalhador era vendido. Na Terceirização, é alugado':
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/201cna-escravidao-o-trabalhador-era-vendido-na-terceirizacao-ele-e-alugado201d/

Como os filmes 'Coringa' e 'Bacurau' questionam o Capitalismo e as desigualdades sociais:
https://elasdisseram.com/index.php/2020/01/joker-bacurau/

'O Privilégio da Servidão': Livro do sociólogo brasileiro Ricardo Antunes analisa quais são as principais características do proletariado contemporâneo, incluindo os trabalhadores precários.

'Bacurau', 'Coringa' e 'Parasite': A desigualdade social nas telas e um apelo por mudança: 

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Cinema/Bacurau-Coringa-e-Parasita-a-desigualdade-social-nas-telas-como-apelo-para-a-mudanca/59/45978


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