'Soft and Hard': Godard e Anne-Marie criticam a hegemonia da TV e refletem sobre o Cinema e a comunicação entre as pessoas!

'Soft and Hard': Godard e Anne-Marie criticam a hegemonia da TV e refletem sobre o Cinema e a comunicação entre as pessoas! - Marcos Doniseti!

'Soft and Hard' (1985): Filme de teor reflexivo e no qual Godard e Anne-Marie Miéville debatem sobre Cinema, Televisão, Filosofia e as dificuldades de comunicação entre as pessoas.

Godard: 'Respeito o Cinema porque eu sinto que ele é uma imagem de mim mesmo'! 

Este filme foi realizado conjuntamente por Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville, sendo produzido em associação com o Channel 4 britânico. E no mesmo eles debatem sobre Cinema, Televisão, Filosofia e também sobre aquele que tinha sido o filme mais recente lançado por Godard naquele ano de 1985, que foi 'Détective'. 

Godard e Anne-Marie Miéville, que era fotógrafa, passaram a colaborar intensamente a partir dos primeiros anos da década de 1970, quando ele sofreu um grave acidente de motocicleta e ficou hospitalizado por um longo período de tempo, sendo que ela o ajudou muito em sua recuperação. Depois disso, eles fizeram pesquisas com Vídeos e realizaram vários trabalhos juntos, tanto no Cinema, quanto na TV.

Assim, Anne-Marie participou ativamente dos primeiros três filmes que Godard realizou após o fim do Grupo Dziga Vertov, que fez uso intenso do Vídeo, bem como fez duas séries de TV junto com o mesmo.

Essas pesquisas com Vídeo que foram feitas com Anne-Marie e levaram Godard a introduzir várias inovações em seu trabalho, como ocorreu nos seus futuros longas-metragens. Assim, Godard filmou Roteiros em formato de Vídeo, como aquele que foi feito para "Sauve qui peut (la vie)", uma produção de 1980 que relançou a sua carreira junto a um público mais amplo, e a realização de Vídeos Pós-Filmes, o que tivemos no caso de 'Passion' (1982) e do belíssimo 'Je Vous Salue, Marie' (1985). 

"Soft and Hard" mostra a vida simples dos dois na pequena cidade suíça de Rolle, de pouco mais de 5 mil habitantes e que está localizada próxima à Lausanne e Genebra, mostrando momentos pessoais, como passar roupa, trabalhar, Godard 'treinando' dentro da casa com a sua raquete de tênis.

Godard em imagem de 'Soft and Hard', no qual ele diz que a sua vida e o Cinema formam um todo. Nesta cena, ao telefone, ele conversa sobre a produção do seu filme posterior, que foi 'King Lear'.

Godard e Anne-Marie também fazem algumas reflexões filosóficas, que são muito tradicionais na obra 'godardiana' e que estão presentes desde os seus primeiros filmes. E no caso de 'Soft and Hard' os temas principais são a Arte e a Beleza (Godard) e a Criação (Anne-Marie).

E o ponto de partida e de desenvolvimento para esse debate entre ambos que veremos durante o filme são textos de autoria do filósofo alemão Martin Heidegger a respeito da Linguagem, bem como trechos da obra 'A Morte de Virgílio', de autoria do escritor austríaco Hermann Broch. 

Obs1: No Brasil o livro de Heidegger foi lançado com o título 'A Caminho da Linguagem'. E o livro de Broch foi lançado com o título 'A Morte de Virgílio'.

Godard diz que 'A Beleza se revela ao Homem apenas como crueldade' e comenta sobre 'O Desespero da Arte e as suas tentativas desesperadas de criar o imperecível com meios perecíveis' Enquanto isso, Anne-Marie pergunta
'Quando a Criação existia, livre da forma? Quando?'.

E aquela reflexão que dá o tom de todo o filme é falada, por Godard e Anne-Marie, logo no início, quando eles dizem que "Ainda estávamos procurando pelo caminho para a nossa linguagem", o que tanto pode remeter ao trabalho deles como cineastas e artistas, como também pode se referir ao relacionamento dos dois que, na época, viviam juntos, bem como à maneira como a Cinema e a Televisão se relacionam. 

Logo, a maior parte do filme mostra Godard e Anne-Marie na sala de estar conversando e o diálogo entre eles começa quando vemos escrito 'Dois Amigos' sobre uma tela negra. A conversa ocorre durante 30 minutos e envolve temas como Televisão, Cinema e o filme 'Détective', que Godard havia lançado naquele mesmo ano e sobre o qual Anne-Marie deixa claro que não gostou muito.
 
Anne-Marie Miéville é uma cineasta com trajetória própria, mas também realizou vários trabalhos com Godard, com o qual contribuiu para que o mesmo pudesse se reinventar, o que o levou a iniciar uma nova fase em sua carreira após o fim do 'Grupo Dziga Vertov', em 1972, principalmente em pesquisas com Vídeo.

Esta conversa é, periodicamente, interrompida por imagens publicitárias e noticiários de TV, o que é uma maneira de demonstrar o quanto esta prejudicou o Cinema, como se a TV tivesse interrompido e prejudicado a evolução da linguagem cinematográfica. Porém, é interessante chamar a atenção para o fato de que o filme foi produzido em associação com um canal de TV britânico (Channel 4).

Nesta conversa, Godard critica o impacto que a Televisão teve no sentido de retirar do Cinema a hegemonia da representação visual, ressaltando o aspecto negativo desta mudança, pois enquanto no Cinema é possível a um cineasta expor a sua visão pessoal sobre qualquer tema, na Televisão isso não acontece, pois ela subjuga os Sujeitos. 

O filme foi gravado em Vídeo, o que remete às pesquisas e projetos que Godard e Anne-Marie desenvolveram em conjunto nos anos 1970 sobre essa que, naquela época, era uma nova mídia. Aquele foi um período no qual eles fizeram vários filmes e séries de TV juntos e nos quais o Vídeo teve uma grande importância, tal como aconteceu em filmes como'Numéro Deux' (1975), 'Comment ça va?' (1976) e 'Ici et Ailleurs' (1976).

Uma ideia que está muito presente nos trabalhos de Godard a partir das suas experiência com Vídeo é a de Dualidade, incluindo as relações entre Patrões X Trabalhadores, Homens X Mulheres, Matéria X Espírito, Cinema X Televisão. 

Assim, em uma cena de 'Soft and Hard' isso fica bem evidente, quando vemos o nome do filme escrito na tela e, em primeiro lugar, temos uma bonita cena da natureza (lago, matas) e logo depois o título do filme aparece sobre um fundo com uma tela negra. 
 
Imagens sobrepostas mostram Godard fazendo a leitura do trecho de um livro (A Morte de Virgílio, de Hermann Broch) dentro de um veículo e, ao mesmo tempo, vemos nuvens no Céu, passando a ideia de Dualidade envolvendo Matéria e Espírito.

No começo de 'Soft and Hard' vemos Godard e Anne-Marie falando ao mesmo tempo sobre alguns dos principais temas e assuntos que estavam em evidência na época da realização do filme, como o avanço da Televisão, a ascensão do Dólar na economia mundial, as viagens espaciais, o fim da invencibilidade do tenista John McEnroe, a fome na África e os avanços da computação. 

A conexão dos seus filmes com os principais temas do momento em que eles são realizados é um dos principais aspectos da obra de Godard que sempre foi um cineasta cujo trabalho sempre teve fortes componentes sociológicos, bem como históricos, artísticos e filosóficos. 

Os filmes de Godard reúnem elementos de todas as Artes, sejam as famosas e clássicas Belas Artes (Pintura, Teatro, Música, Arquitetura, Escultura e Literatura), sejam as novas formas de Arte, como o próprio Cinema e a Pop Art (Música Pop, Quadrinhos, Grafite, etc). Neste filme, por exemplo, temos citações a filmes como 'E o Vento Levou' e 'Janela Indiscreta'. 

E já no início de "Soft and Hard", Godard avisa que no filme nós teremos duas visões distintas a respeito do Cinema, que é a dele e a de Anne-Marie. Assim, enquanto para um deles (Godard) o 'Eu' e 'as Coisas' são idênticos, para a outra (Anne-Marie) eles são apenas objetos.
 
O título do filme sobre uma tela negra. Outras expressões também são usadas em situação semelhante, tais como 'Two Friends', 'Soft Talk' e 'Hard Dream'.

Godard e Anne-Marie também fazem uma dura crítica à Televisão, que matou o 'Eu', os Sujeitos, que desapareceram com a hegemonia da mesma, o que não acontece no Cinema. Eles dizem que não faltavam assuntos sobre os quais as pessoas, os mais diferentes 'Eus' ou Sujeitos, poderiam conversar, existindo uma grande massa de objetos, mas eles afirmam que os Sujeitos haviam desaparecido.
 
Em 'Soft and Hard', Anne-Marie também apresenta uma visão crítica a respeito do Cinema criado por Godard, criticando especificamente os diálogos do filme 'Détective' (1985), lançado pouco antes deste 'Soft and Hard' e no qual Godard mostra a incapacidade das pessoas de se comunicar.
 
Porém, Godard rebate a crítica de Anne-Marie, dizendo que respeita profundamente o Cinema, pois ele permite que o seu 'Eu' possa se projetar e, ao mesmo tempo, permite que ele estabeleça um diálogo com os outros.
 
Logo, Godard reconhece que o Cinema é a Arte que faz com que ele se conecte com o Mundo, com os Outros.
 
E tal como acontece com todos os seus filmes, estes exigem que sejam vistos mais de uma vez para que possamos começar a compreendê-los e a penetrar em seu universo. Muitas pessoas não conseguem compreender os filmes de Godard porque se recusam a fazer isso, limitando-se a assistir aos mesmos apenas uma vez, o que não é o suficiente.
 
Em 'Soft and Hard' Godard também tem a oportunidade de esclarecer para as pessoas porque seus filmes são tão pessoais e diferentes de todos os outros e, também, porque eles exigem um esforço intelectual maior para que possam ser devidamente decifrados. E em 'Soft and Hard', Godard deixa claro que os seus filmes são uma extensão dele mesmo, do seu 'Eu'.
 
Assim, para Godard, Cinema e Vida formam um todo, ou seja, são uma coisa só. 

As ideias de Martin Heidegger sobre a Linguagem são uma das fontes dos debates entre Anne-Marie e Godard em 'Soft and Hard'.

Godard e Anne-Marie também comentam sobre o filme 'Détective', que havia sido lançado por Godard pouco tempo antes, no mesmo ano de 1985 de 'Soft and Hard', como se tais comentários constituíssem um 'extra' do filme, antecipando aquilo que se tornou comum nos DVDs e BluRays posteriormente. 
 
Mas a questão é que os primeiros DVDs somente foram lançados pouco mais de 12 anos depois, por volta de 1997/1998 (no Japão e nos EUA). Assim, Godard promovia mais uma inovação em sua carreira, criando os 'Extras' dos DVDs antes mesmo que esta mídia fosse criada.
 
Durante o filme em vários momentos nós vemos frases e expressões que aparecem em letras grandes e sobre uma tela negra, tais como 'Soft and Hard', 'Talk Between Two Friends', 'Hard and Soft', 'Two Friends', 'Soft Talk', 'Hard Dream', entre outras.
 
E também temos imagens sobrepostas, congeladas e arrastadas, técnicas que Godard usou, por exemplo, em seu belo filme 'Sauve qui peut (la vie)', produção de 1979/1980 que marcou o seu retorno à criação de um Cinema um pouco mais 'convencional'.
 
Este filme é importante também porque ajuda a compreender a trajetória posterior de Godard, pois vários elementos deste filme estarão presentes em sua obra posteriormente e ajudam a compreender o trabalho do genial cineasta francês.
 
Portanto, por todos estes motivos, este é um filme muito relevante para todos aqueles que admiram e acompanham a evolução do trabalho de Godard e querem tentar compreender como se desenvolveu a sua carreira, em especial a partir dos anos 1980.
 
Anne-Marie Miéville e Godard conversam sobre Cinema, Televisão e as dificuldades de comunicação entre as pessoas.

Informações Adicionais! 

Título: Soft and Hard;
Diretor: Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville;
Roteiro: Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville;
Duração: 49 minutos;
País de Produção: França e Reino Unido (Channel Four);
Ano de Produção: 1985; 
Elenco: Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville. 

Links: 

Texto sobre 'Soft and Hard':
https://www.closeupfilmcentre.com/vertigo_magazine/issue-30-spring-2012-godard-is/for-a-reconsideration-of-soft-and-hard/ 

Resenha do livro 'A Caminho da Linguagem', de Martin Heidegger:
http://www.consciencia.org/resenha-do-livro-a-caminho-da-linguagem-de-martin-heidegger 

Godard in the Age of Video:
https://www.jonathanrosenbaum.net/2018/06/godard-in-the-age-of-video/

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