'Numéro Deux': Godard analisa criticamente a sua fase Maoísta, faz pesquisas com Vídeo e, junto com Anne-Marie Miéville, lança as bases de sua reinvenção como cineasta!
'Numéro Deux': Godard analisa criticamente a sua fase Maoísta, faz pesquisas com Vídeo e, junto com Anne-Marie Miéville, lança as bases de sua reinvenção como cineasta! - Marcos Doniseti!
Texto revisto e atualizado no dia 26/04/2020!
"Numéro Deux": Primeiro filme de Godard após o fim do 'Grupo Dziga Vertov'!
Este filme foi roteirizado por Godard e Anne-Marie Miéville em 1975 e foi o primeiro que o gênio da Nouvelle Vague dirigiu após o fim do projeto revolucionário levado adiante pelo Grupo Dziga Vertov, que encerrou as suas atividades em 1972, quando Godard e Gorin tomaram a decisão de terminar com o mesmo.
'Numéro Deux' foi quase todo filmado em Vídeo, para que fosse possível reduzir os custos, e somente no final do mesmo é que temos imagens que foram feitas em 35mm.
'Numéro Deux' antecipa algumas das principais questões que Godard começará a desenvolver em seu trabalho a partir do lançamento de 'Sauve qui peut (la vie), que foi filmado em 1979 e lançado em 1980, que deu início ao chamado 'Período Tardio', como o denominou o crítico Jonathan Rosenbaum, da obra de Godard.
Esta nova fase da carreira de Godard se iniciou após ele mergulhar em um período de crise pessoal, política, bem como de desilusão e melancolia, o que fica bem claro neste 'Numéro Deux', e que será bastante produtiva, com o cineasta produzindo e dirigindo dezenas de novas produções.
E logo no começo do filme, Godard e Anne-Marie já vão avisando que este será um filme politizado e pornográfico ao mesmo tempo. Assim, veremos cenas de sexo e de manifestações políticas na França da época. Essa mistura de questões sexuais, comportamentais, históricas e políticas estará presente na obra de Godard posteriormente.
Entre os temas que são analisados no filme, nós temos:
- O desencanto de Godard com o Cinema, que se mostra incapaz de captar e mostrar toda a realidade, bem como de transformá-la, tal como ele havia tentado fazer nos anos anteriores;
- A questão da sexualidade e do comportamento, mostrando a mudança do papel da mulher na sociedade;
- Conflitos crescentes nos relacionamentos entre homens x mulheres, com o filme mostrando uma crescente tomada de consciência destas últimas a respeito das situações em que são exploradas e nas quais a sua voz e os seus desejos não são levados em consideração, seja pelos patrões, seja pelos seus parceiros, seja mesmo pelo diretor do filme, ou seja, o próprio Godard;
- Crise da instituição familiar, mostrando conflitos entre avôs e netos, pais e filhos, marido e mulher;
- Crise Econômica, marcado por um crescente nível de desemprego, que estava aumentando bastante em 1975, quando o filme foi realizado, em função do início de uma Recessão em quase todo o mundo desenvolvido a partir do final de 1973, quando estourou o primeiro 'Choque do Petróleo';
- A presença de ideias de origem Anarquista no filme, como a música (La Balatta del Pinelli) que é tocada no filme e que foi feita em homenagem a um militante anarquista italiano (Pinelli) que foi falsamente acusado de envolvimento em um atentado terrorista que ocorreu na 'Piazza Fontana', em Dezembro de 1969, em Milão, e que acabou morrendo durante um interrogatório policial. A polícia italiana divulgou uma falsa versão de que ele havia cometido suicídio.
Assim, se o Maoísmo da fase 'Dziga Vertov Group', em especial, dos anos anteriores sai de cena na obra de Godard, as ideias e posturas do Anarquismo vão ficar mais presentes em sua nova fase, o que o levará a criticar e condenar os sistemas políticos de forma geral, devido ao caráter autoritário e repressivo dos mesmos, nas suas produções posteriores.
É bom lembrar que essa relação com o circuito comercial e com os Festivais não existiu na fase Maoísta Revolucionária, quando Godard e Gorin tentaram romper totalmente os laços com a indústria cinematográfica que era controlada pelo Estado e pelos Capitalistas.
Gorin era crítico de cultura do jornal "Le Monde", sendo um jovem maoísta que exercerá uma crescente influência sobre Godard depois que trabalhou como consultor do cineasta em 'A Chinesa' (1967).
Desta maneira, Godard reconhecerá, em 'Numéro Deux' e mais ainda nos seus filmes subsequentes, alguns dos equívocos cometidos nessa fase Maoísta Revolucionária, fato este para o qual ele conta com a contribuição importante de reflexões críticas feitas por Anne-Marie.
Anne-Marie terá um papel fundamental na reinvenção de Godard como cineasta, o que permitiu que ele retomasse a sua carreira rumo a um Cinema, como eu já disse, mais 'convencional' a partir do 'Sauve qui peut (la vie)'.
Aliás, um dos momentos mais interessantes do filme é quando Sandrine dança com a filha a música "La Balatta del Pinelli", sobre a morte do militante anarquista italiano Giuseppe Pinelli que morreu enquanto era interrogado pela Polícia italiana, pois havia sido falsamente acusado de envolvimento nos atentados da 'Piazza Fontana', que ocorreram em Milão, em Dezembro de 1969.
Na época, a Polícia italiana tentou culpar forças de Esquerda pelos atentados, mas depois descobriu-se que eles foram obra da Extrema-Direita, que pretendia criar uma situação de caos e desordem na Itália que justificasse a implantação de uma Ditadura Militar no país.
Também vemos cenas, em vídeo, de manifestações operárias na França, durante o Primeiro de Maio, que travavam uma dura luta contra o aumento do desemprego e da inflação em um período Recessivo da economia mundial. E o noticiário mostra que existia (como sempre aconteceu e ainda ocorre em nossa época) uma divisão entre as forças operárias de Esquerda e as de Extrema Esquerda.
Desta maneira, este filme de Godard também se relaciona com acontecimentos históricos, políticos e sociais daquela época, o que sempre foi uma característica importante na obra do cineasta. E ainda mostra as memórias de lutas de um veterano militante da CGT, que narra alguns dos acontecimentos de sua vida.
Porém, Godard faz tudo isso em um ambiente de clausura. A maioria das imagens é feita dentro da casa e as poucas imagens externas que temos foram feitas de dentro da casa para fora ou então chegam por meio da TV e do Vídeo.
Assim, Godard continua observando o mundo, mas sem mergulhar no mesmo, tal como havia feito nos anos anteriores, quando viajou por inúmeros países (Reino Unido, Itália, Tchecoslováquia, EUA, Canadá, Palestina) para levar adiante um projeto de cinema comprometido com uma causa revolucionária, mas que acabou não dando certo.
Desta maneira, tudo é filmado e mostrado a partir da residência da família francesa que vemos no filme (Pierre, Sandrine e os filhos Vanessa e Nicolas), o que mostra a situação em que Godard irá trabalhar a partir deste momento.
Esta residência é vista, por Godard/Miéville, não apenas como se fosse apenas uma casa, mas também como uma espécie de fábrica, pois é o local de trabalho da mulher.
Desta maneira, enquanto o marido (Pierre) sai para trabalhar, Sandrine também trabalha, e muito, dentro de sua casa, cuidando dos filhos, fazendo a comida, lavando a roupa. E depois ainda tem relações sexuais com o marido que volta do trabalho. Assim, Godard mostra que a residência é, também, uma unidade de produção, pois ali também se trabalha muito.
E até pelos questionamentos que Sandrine faz sobre o seu relacionamento com Pierre, este irá admitir que, de fato, não a escuta, ignorando aos seus desejos. Ele não sabe nada sobre a máquina de lavar, por exemplo, que é o instrumento de trabalho dela. Porém, mais ao final, vemos ele enxugando a louça que ela lavou.
Assim, Godard mostra que tal como as lutas operárias modificaram as relações com os patrões, as lutas das mulheres também terão o mesmo efeito no seu relacionamento com os homens. Este são obrigados a mudar a sua postura e a maneira como se relacionam com as mulheres, processo este que afetou ao próprio Godard.
Logo, ao mesmo tempo em que Godard irá se fechar dentro de sua casa, vivendo enclausurado, indo morar na pequena cidade suíça de Rolle, que fica próxima de Genebra, onde se estabeleceu, depois de 40 anos vivendo em Paris, ele continuará atento e se informando sobre tudo o que acontece no mundo.
Portanto, este 'Numéro Deux' é um trabalho importante e pode ser considerado um filme de transição, que faz a ponte entre várias fases da carreira de Godard, incluindo a Maoísta, a de pesquisas com Vídeo e a do chamado 'Período Tardio' e, por isso mesmo, ele merece ser conhecido.
Informações Adicionais!
Título: Numéro Deux (Número Dois);
Diretor: Jean-Luc Godard;
Roteiro: Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville;
País de Produção: França;
Ano de Produção: 1975;
Duração: 83 minutos;
Gênero: Documentário; Filme Ensaio;
Elenco: Sandrine Battistella, Pierre Oudrey.
Link:
Trecho do filme - La Balatta del Pinelli:
La Balatta del Pinelli:
https://www.youtube.com/watch?v=HpoxMytNvOc
Pino Masi canta 'La Balatta del Pinelli":
https://www.youtube.com/watch?v=v1KHIjIn6VU
Versões da letra de 'La Balatta del Pinelli':
https://www.antiwarsongs.org/canzone.php?lang=it&id=2300
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