"Le Livre D'Image": Em filme-ensaio excepcional, experimental e questionador, Godard denuncia os idiotas sanguinários e criminosos que governam o mundo!

"Le Livre D'Image": Em filme-ensaio excepcional, experimental e questionador, Godard denuncia os idiotas sanguinários e criminosos que governam o mundo! - Marcos Doniseti!
"Le Livre D'Image" (2018): O novo filme de Godard é um 'Filme-Ensaio' e no qual ele reflete sobre as guerras e a trágica situação mundial. Apesar disso, o Gênio da 'Nouvelle Vague' transmite uma mensagem de esperança ao final.

"Le Livre D'Image" - Godard fez um 'Filme Ensaio' inovador e politizado!

Assisti a d
uas sessões consecutivas do filme 'Imagem e Palavra', do genial Jean-Luc Godard, neste final de semana. Isso mesmo... Assisti ao filme duas vezes seguidas (no Espaço Itaú de Cinema, na Rua Augusta), no Sábado, nas sessões de 18h10 e 20h00, aproveitando que sou cliente do banco e, assim, tenho direito à meia-entrada (R$ 19,00 o ingresso).

Obs: Esclarecendo: Assisti ao filme no dia 16/03/2019. 

Aliás, o título original ("Le Livre D'Image") parece bem mais adequado para o que é esse belo filme de Godard. Assisti ao filme duas vezes, no entanto, não apenas pelo preço do ingresso, mas porque os filmes de Godard exigem muito do público, como já comentei aqui no grupo em outro texto. Se alguém deseja começar a entender os filmes do genial cineasta franco-suíço, então é necessário assistir aos mesmos várias vezes.

E afirmo que
assistir 'Imagem e Palavra' duas vezes ainda é pouco. Esse é o tipo de filme que precisa ser visto com cuidado e muitas vezes, pois há muitos detalhes que passam desapercebidos quando assistimos ao mesmo apenas uma ou duas vezes. E rever a este belo filme outras vezes é o que irei fazer quando o mesmo for lançado em DVD aqui no Brasil. Espero que esse lançamento não demore.

O título original do filme "Le Livre D'Image" significa 'O Livro Ilustrado' e é exatamente isso que é este novo e excelente 'Filme-Ensaio' do revolucionário cineasta franco-suíço, que também possui elementos de documentários. Neste belo filme, Godard mostra que ainda não parou de experimentar com a linguagem cinematográfica e faz isso com as imagens e sons que estão presentes nesta sua nova e brilhante produção. 

Na verdade, Godard, ao realizar 'Imagem e Palavra', escreveu um livro, mas adaptando o mesmo para a linguagem cinematográfica, é claro. No entanto, o mesmo é um 'livro Ilustrado', ou seja, no qual as imagens são o mais importante, embora as experimentações com os sons também estejam muito presentes. 

Assim, 'Le Livre D'Image', para demonstrar o seu nítido caráter literário, é dividido em várias partes, ou seja, em capítulos. Este recurso também foi usado por Godard em outros filmes, como foi o caso do "Notre Musique" ('Nossa Música'; 2004), no qual tivemos uma divisão em três partes (Inferno, Purgatório, Paraíso). 

"Le Livre D'Image" ('O Livro Ilustrado'; 2018) é um excelente 'Filme Ensaio' de Godard, que faz uma série de inteligentes reflexões sobre a sangrenta história dos séculos XX e XXI. No filme, Godard (inspirado pelo Cubismo e por Brecht) faz uma colagem de vídeos, filmes, fotos, sons, músicas e textos de uma textura aparentemente caótica, mas que possui, sim, lógica, coerência e sentido.

Aliás, é justamente pelo fato de que a imagem é o mais importante que, em vários momentos do filme, o som quase desaparece (ou some totalmente) e não temos a legendagem daquilo que está sendo falado. E antes do filme começar lemos um aviso no qual ficamos sabendo que foi o próprio Godard que pediu para que nem tudo fosse legendado. E o seu pedido foi atendido, é claro.

Inclusive
, na segunda sessão (que quase lotou a sala, que tem 88 lugares... na primeira sessão, das 18h10, tinha cerca de 45) a que assisti algumas pessoas riram quando viram este aviso, como se estivessem pensando 'Só o Godard, mesmo...'. Diminuir o volume, não usar da legendagem... Estes são recursos usados por Godard para que o público fique concentrado nas Imagens e não nas falas ou mesmo nos sons.

Desta maneira, os sons no filme também são usados de forma experimental por Godard. Em algumas cenas o som some quase que por completo, em outras ouvimos sons em apenas um lado do cinema, em outros momentos temos várias falas simultâneas e sobrepostas e em outros o volume aumenta de intensidade rapidamente.

Assim, além da complexa riqueza visual que vemos neste belo e lúcido "Le Livre D'Image", este novo filme de Godard também se caracteriza como uma inovadora e muito rica experiência sonora.
Cena de "Le Livre D'Image", filme no qual Godard faz uma série de experimentos sonoros e visuais, mostrando que o caráter inquieto, inovador, ousado e criativo de sua obra não foi abandonado, mesmo aos 88 anos de idade.

Entendo que ao promover todas estas experiências e inovações o genial e inquieto Godard, além de expandir a linguagem cinematográfica, também deseja que o público se preocupe em assistir ao filme, priorizando as imagens, deixando sons ou qualquer elemento do filme em segundo plano, evitando que os mesmos possam distrair o público. 

Logo, fica claro que Godard deseja que o público concentre a sua atenção nas imagens. Afinal, trata-se de um 'livro ilustrado' ao que estamos assistindo.

"Le Livre D'Image", de fato, é uma interminável, mas coerente, colagem que se utiliza de centenas das mais variadas fontes (literárias, cinematográficas, pictóricas...) e que mostra o quanto o século XX foi violento  e destrutivo, com suas guerras brutais. E é justamente por isso que vemos cenas da Primeira e da Segunda Guerra Mundial, de vítimas do Nazismo, de Hitler, bem como de outros conflitos que ocorreram naquele século violentíssimo, que foi o mais sanguinário da história.

E o que Godard demonstra é que toda essa violência e brutalidade, agora, tem continuidade no século XX.

Em "Le Livre D'Image" o grande Godard se utiliza de cenas de inúmeros filmes, vídeos e documentários para montar esse sangrento painel do horror que tivemos nestes dois últimos séculos, que foram, disparados, os mais brutais e sangrentos da história da humanidade. Então, essa obra também é rica e complexa no aspecto visual, como habitualmente acontece em todos os seus filmes.

'Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague' é um excelente documentário sobre a história do mais revolucionário movimento cinematográfico da história e da relação entre os seus dois principais representantes. É altamente recomendável para quem ainda não sabe muito a respeito da trajetória de Godard.

Assim, no início de 'Imagem e Palavra' vemos uma sequência de cenas violentas, de inúmeras guerras, e no momento seguinte Godard usa de uma cena de outro filme na qual a personagem grita 'Por Favor! 'quatro vezes, como que implorando para que esse derramamento de sangue irracional, ilógico, sem sentido e interminável tenha um fim. 

E logo depois temos uma sequência na qual vemos que as guerras tiveram continuidade (Segunda Guerra Mundial; Nazismo) e um personagem de outro filme grita 'Que Horror!' quatro vezes. Logo, Godard demonstra a sua incredulidade pelo fato de que, mesmo depois de tanto sangue derramado, essa violência não tenha cessado. 

Assim, o apelo pelo fim das guerras, que muitas vezes foi feito ao longo da história, foi totalmente em vão. Elas continuam nos dias atuais. Godard não apenas mostra cenas de guerras atuais, como também procura analisar os motivos que as levam a acontecer, identificando nos interesses geopolíticos das potências imperialistas a razão primordial para as mesmas, o que é confirmado pela história dos últimos séculos.

Jean Seberg e Jean-Paul Belmondo em Cena do clássico 'Acossado' (1960), no qual o personagem dele (Michel) fala diretamente com o espectador e no qual Patricia (personagem de Seberg) olha diretamente para a câmera na cena final. Tais recursos também eram usados por Brecht em sua obra teatral.

Além disso, porque um nação Imperialista como são os EUA invadem e destroem nações como Síria, Líbia e Iraque? Godard responde: Petróleo. Estes são países que ou possuem muito petróleo (Líbia e Iraque) ou que são pontos de passagem para se fazer o transporte do produto (Síria), sem o qual a economia do Ocidente deixaria de funcionar. 

Afinal, o petróleo é o sangue do organismo do Capitalismo Globalizado. E Godard mostra que se derrama muito sangue (humano) para que o fornecimento do sangue da economia capitalista global não seja interrompido. 

Na longa lista de filmes dos quais Godard extrai imagens para fazer essa vasta colagem em "Le Livre D'Image" temos alguns que são dele mesmo, incluindo 'Le Petit Soldat' (1960), "Les Carabiniers" (1963), "Alphaville" (1965), "WeekEnd" (1967), "Tout Va Bien" (1972), "Helas Pour Moi" (1993), "Notre Musique" (2004) e ''Adieu a Langage" (2014)

E também inúmeros outros filmes, dos mais variados cineastas, são usados para fazer essa genial colagem, incluindo "Um Cão Andaluz" (Luis Buñuel, 1929), "Notorious" (A. Hitchcock; 1946), "Paisà" (R. Rossellini; 1946), 'Le Plaisir' (Max Ophuls; 1952), "La Strada" (1954), "Assim é a Aurora" (Luis Buñuel, 1956) e "Uccellacci e Uccellini" (Pier P. Pasolini, 1966), só para citar alguns. 
Cena do clássico filme "Le Plaisir" (Max Ophuls, 1952) que Godard usou em "Le Livre D'Image". Nesta cena, um homem idoso dança animadamente até cair, enquanto teve energia. A cena pode ser interpretada como uma alegoria do próprio Godard que, mesmo aos 88 anos de idade, continua realizando filmes ousados, experimentais e inovadores, como é o caso deste belo 'Imagem e Palavra', mostrando que sua energia criativa ainda não se esgotou, mas que pode estar próxima do final, infelizmente. Seria esta uma maneira de Godard dizer que este é o seu último filme? 

Aliás, o material utilizado por Godard é muito vasto em "Le Livre D'Imagem" e isso demonstra o quanto o cineasta fez uma pesquisa detalhada e minuciosa para montar o seu filme, sendo que esse trabalho deve ter demorado bastante tempo para ser finalizado, com certeza. Logo, mais do que filmado, este filme foi montado, pois bem poucas cenas foram filmadas pelo próprio Godard para criar "Le Livre D'Image"

Entre as cenas que foram filmadas por Godard estão a das sequências que mostram a vida em um país fictício ('Dofa') e cuja história (parte ficcional e parte documentário) foi baseada em um livro ('Ambição no Deserto') de um escritor egípcio e árabe, que foi Albert Cossery. Cossery viveu muitos na França e escrevia em francês, sendo que se tornou amigo de consagrados escritores franceses, como Albert Camus, Jean Genet e Boris Vian. 

Bem, é verdade que sou muito suspeito para comentar filmes do Godard, que é meu cineasta preferido, mas o fato é que "Imagem e Palavra"/"O Livro Ilustrado" é um filme excelente, sendo superior ao "Adeus a Linguagem" (2014). Entendo que este novo filme de Godard está no mesmo nível do ótimo 'Notre Musique' (2004).

Aliás, é bom ressaltar que Godard usou, neste novo "Filme-Ensaio", várias cenas que já haviam sido utilizadas em sua monumental "História do Cinema", que começou a ser realizada em 1989, com dois episódios, e que foi concluída dez anos depois, em 1999, com mais seis episódios. 

E fica claro que existe uma clara ligação entre essa série sobre a história do Cinema que foi realizada por Godard e os longas-metragens semificcionais que ele produziu posteriormente, que foram "Éloge de L'Amour" (2001), 'Notre Musique' (2004), 'Film Socialism' (2010), 'Adieu a Langage' (2014) e "Le Livre D'Image" (2018). 

E neste novo filme nós também temos cenas que foram extraídas de "Notre Musique" (2004), principalmente aquelas que são relacionadas com a guerra. E Godard também fez uso de partes da trilha sonora de "Notre Musique" em "Le Livre D'Image", o que comprova a forte conexão temática existe entre os dois filmes.

Cena de 'Notre Musique' (2004), ótimo filme de Godard no qual temos algumas cenas que ele reaproveitou em 'Le Livre D'Image', (2018). Estes dois excelentes filmes tratam de alguns temas semelhantes, principalmente as guerras e a violência dos séculos XX e XXI, embora quatorze anos os separem. Essa é uma maneira de Godard mostrar que a humanidade não mudou e continua tão brutal e violenta quanto no sanguinário século anterior.

Mas, se no belo 'Notre Musique' (2004) Godard também mostrava a violência e brutalidade em que a humanidade mergulhou nos séculos XX e XXI, agora os assuntos tratados foram diferentes. 'Notre Musique' procura refletir sobre os conflitos entre Israel e os Palestinos e as guerras que envolveram os países e povos que integravam a então Iugoslávia (Bósnia, Sérvia, Croácia, Eslovênia) sendo que grande parte do mesmo foi filmado em Sarajevo. 

Enquanto isso, 'Le Livre D'Image' (2018) foca na questão do Oriente Médio, região riquíssima em petróleo e que por isso mesmo atrai a cobiça dos grandes impérios mundiais desde que as gigantescas reservas do produto foram descobertas na região, a partir das últimas décadas do final do século XIX.

Assim, entendo que não seria nenhum absurdo colocar o belíssimo "Éloge de L'Amour" como o ponto de partida de uma espécie de 'Pentalogia Humanista' e que é completada por 'Notre Musique' (2004), 'Film Socialism' (2010), 'Adieu a Langage' (2014) e 'Le Livre D'Image' (2018). 

Logo, estes cinco filmes são, essencialmente, o que podemos chamar de 'Filmes-Ensaio', de teor altamente reflexivo e com conteúdos filosóficos, nos quais Godard comenta sobre a situação atual da Humanidade, contendo inúmeras reflexões a respeito da história violenta e brutal dos séculos XX e XXI. 

Em todos estes filmes Godard estabelece claramente uma conexão entre o passado e o presente, procurando recuperar e valorizar a memória histórica, o que foi, também, o tema principal do belíssimo "Éloge de L'Amour" (2001). 

Nestes cinco filmes Godard deplora a brutalidade e a violência que fez milhões de vítimas nestes dois últimos séculos e procura analisar o estado atual do planeta, apontando para os principais conflitos e problemas globais: guerras, mudanças climáticas, violência, desigualdades sociais crescentes, imperialismo cultural, entre outros temas altamente relevantes. 
Cena de 'Adeus a Linguagem' (2014) mostra que a obra de Godard foi muito influenciada pela Pintura. A técnica da colagem, que ele usa em muitos dos seus filmes, incluindo este "Le Livre D'Image" (2018), é criação dos pintores ligados ao Cubismo.

E o cineasta franco-suíço também lamenta a incapacidade do Cinema de influenciar os acontecimentos, para que um mundo melhor seja construído, ao mesmo tempo em que reflete sobre a natureza deste Cinema, dizendo que mostrar a violência do mundo por meio de imagens também é um ato de violência. 

Aliás, basta ver qualquer imagem ou fotografia de pessoas mortas em guerras, com seus corpos estraçalhados e, muitas vezes, com pedaços dos mesmos espalhados pela superfície, para se constar que Godard está absolutamente correto em sua observação. 

Assim, "Le Livre D'Image" é um típico filme de Godard, ou seja, ele tem uma narrativa hiper fragmentada, é bastante reflexivo e possui um tom filosófico, promovendo também um questionamento da própria atividade cinematográfica, além de fazer inúmeras experiências sonoras e visuais.

E este novo e belo filme de Godard ainda conta com um infindável número de citações e referências (literárias, cinematográficas, pictóricas, videográficas...), possuindo também um caráter bastante politizado, características que estão presentes em grande parte, desde o início, da sua vasta e genial obra.

Porém, essa fragmentação aparentemente caótica (que é fortemente inspirada nas concepções teatrais do dramaturgo alemão Bertolt Brecht) não significa que não existe uma conexão entre tudo o que vimos no filme. Portanto, o caráter caótico da obra, neste filme de Godard, é apenas aparente. 
Cena de seu clássico "Alphaville" (1965), que Godard usou em "Le Livre D'Image", mas que apareceu muito rapidamente e de forma desbotada. Obs: Esta é a cena original, do filme de 1965.

Segundo a estudiosa Nádia Borges Lima, Bertolt Brecht, em sua obra teatral, procurava promover uma "quebra da continuidade teatral da peça a favor de uma sucessão de quadros que concomitantemente se opõem e dialogam". 

Ela diz que Brecht conseguia isso por meio do uso de vários efeitos, tais como: ruptura do efeito de suspense; passagem da prosa ao verso; falas sussurradas ao mesmo tempo em que uma cena acontece; atores que deixam seus personagens para se dirigirem diretamente ao público (quem não se lembra de Jean-Paul Belmondo fazendo isso logo no começo de 'Acossado'?).

Então, se analisarmos os filmes de Godard, iremos constatar que ele usa de muitos destes recursos em sua obra, inclusive neste "Le Livre D'Image". Logo, a influência de Brecht sobre a obra de Godard é antiga e bastante significativa. 

Obs1: Estas informações sobre a obra de Brecht foram retiradas do texto "Brecht e a sua contribuição para o pensamento do escritor francês Roland Barthes", de autoria de Nádia Borges Lima. 

Então, pode-se afirmar que existe, sim, uma ligação entre as cenas, diálogos, frases, vídeos, sons e músicas que Godard usa em seus filmes, formando um todo lógico e coerente, embora sob uma aparência caótica. 
Jean-Luc Godard completou 88 anos em 03/12/2018 e, mesmo assim, continua experimentando com a linguagem do Cinema. Ele também é o único, entre os principais cineastas do mundo, que denuncia os crimes dos governantes imperialistas, que destroem nações com suas guerras criminosas, e aos quais classifica como sendo 'idiotas sanguinários' e canalhas que promovem uma 'fraude universal'.

Mas esse é o estilo de Godard e quem não está acostumado ou não aprecia o mesmo terá muitas dificuldades para assistir ao filme. Quando alguém decide assistir a um filme de Godard, tal pessoa deve se preparar para isso. E se não estiver disposta a se preparar, então que fique longe da obra de Godard, que não é para todos, embora eu pense que o cineasta franco-suíço faça filmes para atingir um público amplo, é claro. 

A questão é que ele não faz concessões para conseguir atingir esse objetivo. Infelizmente, grande parte do público não está acostumado com esse gênero de filme (Filme Ensaio) e, em função disso, não se interessa em ver os filmes de Godard e quando o faz, assiste apenas uma vez e já sai dizendo que 'o filme é chato'. Porém, tais pessoas não fazem qualquer esforço para tentar entender os filmes de Godard. 

Obs2: Escrevi e publiquei um texto, aqui no blog, que trata exatamente disso, ou seja, sobre o que é necessário fazer para se assistir e entender um filme de Godard (ver link abaixo).

Alguém imagina, por exemplo, ver em um filme de Spielberg ou de Tarantino as afirmações feitas por Godard neste "Le Livre D'Image" e nas quais ele denuncia os crimes das grandes potências imperialistas, que promovem inúmeras guerras pelo mundo afora, destruindo nações inteiras e transformando as vidas de milhões de pessoas em um inferno? 

Claro que não. Porém, no caso de Godard é exatamente isso que acontece. 

Godard coloca o dedo na ferida e aponta os responsáveis pela destruição de povos e nações, que são os governantes das nações mais poderosas, as potências imperialistas (vide a destruição que a OTAN promoveu na Líbia, Síria e Iraque). E quando vemos a bandeira dos EUA e as cores da Alemanha, da França, Itália e Grã-Bretanha neste filme fica claro a quais potências Godard está se referindo.

"Guernica", quadro cubista de Picasso, tem uma aparência fragmentária e, aparentemente, caótica. Muitos poderiam não ver lógica, coerência ou sentido nesta obra. Mas entendo que tais pessoas estão equivocadas. E o mesmo pode ser dito a respeito dos filmes mais recentes de Godard, que possuem uma aparência caótica e fragmentária, mas que possuem, sim, lógica, sentido e coerência.

O filme de Godard é, essencialmente, um verdadeiro manifesto antiguerra e o mesmo também condena fortemente a islamofobia que passou assolar a Europa nos últimos anos.

Assim, embora os temas do filme sejam universais e digam respeito à uma realidade que é global (desejo de paz, solidariedade humana, as mudanças climáticas, desigualdades sociais) entendo que 'Imagem e Palavra' me pareceu ser um filme essencialmente direcionado para o público europeu. 

Godard, o Ocidente e a voz que é negada aos árabes e muçulmanos!

Godard mostra que os árabes e os muçulmanos estão sendo, cada vez mais, perseguidos e discriminados no Velho Mundo e que isso é feito sem que eles sejam ouvidos. A voz deles é silenciada pelo Ocidente, o que Godard não apenas denuncia neste filme, como também mostra como é possível agir de outra maneira, radicalmente diferente, permitindo que eles se expressem. 

Inclusive, em vários momentos do filme nós vemos um intertítulo (temos vários no filme) no qual se lê "Sous Les Yeux de d'Occident" ('Sob os olhos do Ocidente').

O interessante é que por meio do uso desta frase, além de Godard denunciar o fato de que o Ocidente não permite que os árabes e muçulmanos se expressem, ao empregar a mesma o genial cineasta franco-suíço também faz referências a um livro de Joseph Conrad (de título semelhante) e a um filme de Marc Allégret (de 1936) e que foi baseado na obra do escritor britânico-polonês (Conrad nasceu na Polônia, mas depois adotou a nacionalidade britânica).
Cena de 'Imagem e Palavra' que mostra o celuloide sendo manipulado por mãos humanas. E Godard diz, no início do filme, que as mãos é que dão origem ao pensamento. Logo, se as mãos manipulam o celuloide, então as imagens são frutos do pensamento humano. Assim, Godard mostra que as imagens podem ser usadas com inúmeras finalidades, inclusive políticas. E o uso da tecnologia digital está presente nesta obra fantástica de Godard. 

Assim, não é à toa que a 'islamofobia' está sendo utilizada politicamente por grupos de Extrema-Direita em inúmeros países da Europa e que, ao agirem desta maneira, eles estão conseguindo crescer política e eleitoralmente em países importantes da Europa (Alemanha, França, Itália, Espanha, Grã-Bretanha, Hungria, Polônia, entre outros).

Godard também tocou no ponto central quando comenta a respeito do mundo árabe e muçulmano, pois ele mostra, em seu filme, que no Ocidente fala-se muito sobre os árabes e muçulmanos, bem como a respeito das guerras que assolam o Oriente Médio e do Terrorismo que é praticado por alguns grupos de extremistas islâmicos, mas ele mostra que, no Ocidente, nunca se dá voz para que os árabes e muçulmanos possam se expressar. 

Logo,
Godard deixa claro que é apenas a voz do Ocidente que é ouvida e que os árabes e muçulmanos são silenciados. E assim a história que é contada para o mundo contém apenas uma versão dos acontecimentos, a do Ocidente, que se apresenta como sendo um força civilizadora e democrática, embora as grandes potências ocidentais estejam sempre apoiando e dando sustentação às mais terríveis ditaduras pelo mundo afora, inclusive no próprio Oriente Médio, o que é o caso da Arábia Saudita, por exemplo.

Desta forma, a desinformação, o preconceito, o ódio e a intolerância contra os árabes e muçulmanos se disseminam pelo mundo inteiro. Afinal, os muçulmanos são mostrados pela Mídia ocidental como se todos eles fossem seguidores da Al-Qaeda, Boko Haram e do 'Estado Islâmico' e tivessem um pôster de Bin Laden em suas residências, o que é uma mentira gigantesca.
O capítulo 4 de "Le Livre D'Image" é intitulado 'O Espírito das Leis', o que é uma referência à obra de Montesquieu, publicada em 1748 e que serviu de base para o sistema político liberal implantado no Ocidente nos dois séculos subsequentes. Porém, em "Imagem e Palavra" Godard mostra que as leis são impostas por aqueles que detém o maior poderio militar e que controlam a narrativa histórica, ou seja, por aqueles que tem voz.

Na verdade, são bem poucos os muçulmanos que apoiam o Terrorismo promovido por estes grupos extremistas. E os terríveis atentados terroristas que ocorreram em duas mesquistas na Nova Zelândia, há poucos dias (15/03/2019), no qual morreram 50 ,muçulmanos, são o resultado direto dessa islamofobia que está se espalhando pelo mundo inteiro.

Aliás, quando vi Godard comentando (em 'Imagem e Palavra') sobre a maneira como os árabes e muçulmanos são retratados pelo Ocidente naquele exato momento eu já pensei no que havia ocorrido na Nova Zelândia. Logo, a realidade do mundo atual insiste em mostrar que Godard acertou em cheio na análise que faz neste ótimo "Le Livre D'Image". 

E quando também vi, no mesmo "Le Livre D'Image" uma cena na qual um estudante de escola secundária desfere vários tiros dentro da unidade escolar, atingindo várias pessoas, é claro que o 'Massacre de Suzano' também veio imediatamente à minha mente. Portanto, Godard mostra, de forma lúcida e correta, o quanto a violência está se disseminando por todo o planeta e atingindo a grupos bem específicos, pois ela possui um nítido caráter político, étnico, classista e religioso.

Além disso, a Mídia esconde das pessoas o fato de que muitos destes grupos de extremistas islâmicos que temos pelo mundo foram, em muitos momentos, financiados, treinados e armados pelas potências ocidentais.
Cena do filme 'Imagem e Palavra' que mostra integrantes do 'Estado Islâmico' jogando pessoas ao mar. No filme, Godard desenvolve uma reflexão a respeito da atual e caótica situação política do Oriente Médio. E muitas imagens do filme foram trabalhadas e modificadas digitalmente por Godard. 


Na parte final do filme, vemos que Godard reflete e faz corretas e pertinentes observações e comentários sobre a situação política do Oriente Médio. E para fazer isso ele faz uso de um romance intitulado "Une ambition dans le désert" ('Ambição no Deserto', que foi lançado no Brasil em 2008), que é de autoria de um escritor egípcio chamado Albert Cossery



Godard usa do livro de Cossery para comentar e refletir sobre o contexto histórico e político dessa violenta região que é o chamado Oriente Médio, cujas relações com a Europa já tem milhares de anos e que sempre foram marcadas por inúmeros conflitos e incompreensões (vide as 'Cruzadas', por exemplo). 

No livro de Cossery e no filme de Godard, temos o governante (Ben Kadem) de um país fictício ('Dofa') que passa a se preocupar pelo fato de que inúmeros atentados terroristas começaram a acontecer em sua nação, mesmo com o território desta não possuindo petróleo. 

Inclusive, pelo que li da sinopse do livro de Cossery, pode-se afirmar que Godard foi bastante fiel ao conteúdo da obra desse escritor egípcio, árabe e muçulmano, o que faz com que essa parte de 'Imagem e Palavra' tenha um tom de documentário e não de ficção. 

E deve-se também ressaltar que ao usar do livro do egípcio Cossery para construir essa parte do seu filme, Godard se utilizou do "Le Livre D'Image" para dar a palavra aos árabes e muçulmanos, que puderam expressar, assim, o que pensam a respeito da situação em que vivem. Esse trecho do filme reflete a visão de Cossery sobre os acontecimentos no Oriente Médio.
Capa do livro 'Ambição no Deserto', de autoria do escritor egípcio Albert Cossery e no qual Godard se baseou para comentar a situação atual do Oriente Médio.

Portanto, ao mesmo tempo em que Godard critica o Ocidente pelo fato de que este nega aos árabes e muçulmanos a chance de se expressarem, de mostrarem quem eles são, ele usou seu filme para permitir que a voz deles se fizesse presente e pudesse ser ouvida.  

A partir disso, Godard mostra o quanto essa violência que se espalha pelo Oriente Médio e pelos países muçulmanos tem raízes no intervencionismo dos países imperialistas do Ocidente nestas regiões. 

Portanto, "Le Livre D'Image" pode ser considerado, perfeitamente, uma mistura de ficção e documentário, o que Godard sempre defendeu. Sua obra foi bastante influenciada por dois excelentes documentaristas, ambos ligados à 'Nouvelle Vague', que foram Jean Rouch e Chris Marker. Inclusive, Godard também chegou a dizer que "Todos os grandes filmes de ficção tendem ao documentário, como todos os grandes documentários tendem à ficção". 

Logo, compreende-se claramente o motivo de que principalmente a segunda parte deste filme se parecer com um documentário. 

Assim, sabe-se perfeitamente que os EUA, por exemplo, foram os responsáveis por fornecer armamentos modernos aos chamados 'Mujahedin' afegãos que lutavam contra os soviéticos no Afeganistão, que foi a primeiro guerra contemporânea no qual milhares de extremistas islâmicos, que eram originários de dezenas de países, participaram e estabeleceram conexões que, até hoje, são usadas para promover atentados e guerras em inúmeros países. 


Desta maneira, foi nesse momento histórico, que contou com a fundamental participação dos EUA, que se formou o 'Taleban' e que surgiram os primeiros indícios do que viria a ser a  futura 'Al-Qaeda', liderada por Bin Laden, um milionário saudita que se aliou ao EUA e que ajudou estes extremistas islâmicos durante a guerra contra os soviéticos (1978-1989). 
Cena de 'Paisà' (Roberto Rossellini; 1946), um clássico do Neorrealismo italiano, na qual soldados nazi-fascistas jogam guerrilheiros da Resistência italiana no mar. A semelhança com a cena seguinte, na qual terroristas do 'Estado Islâmico' fazem a mesma coisa é evidente. Assim, Godard mostra que a natureza da violência não se alterou ao longo do tempo.

E o então presidente dos EUA (Ronald Reagan) chamava esses extremistas islâmicos que lutavam contra os soviéticos no Afeganistão de 'Combatentes da Liberdade'. A ironia é que, atualmente, os mesmos EUA lutam contra esses 'Combatentes da Liberdade' (no Afeganistão) que, na década de 1980, foram financiados, treinados e armados pelos próprios EUA. 

Mas agora os EUA os classificam de 'Terroristas' e não mais de 'Combatentes da Liberdade', pois eles se transformaram em seus inimigos. É como Godard diz, de certa maneira, neste belo filme: Quem tem voz, conta a história que mais lhe convém. 

Neste aspecto, Godard faz analogias históricas corretas e muito interessantes em 'Le Livre D'Imagem', o que acontece, por exemplo, quando ele mostra uma cena de 'Paisà' (1946), clássico do Neorrealismo italiano que foi dirigido por Roberto Rossellini (um dos diretores que Godard mais admira) e no qual soldados nazi-fascistas jogam guerrilheiros da Resistência italiana (os 'Partigiani') no mar. 

E logo depois nós vemos uma cena (de uma reportagem de TV feita em 2016), que foi modificada digitalmente por Godard, e na qual os terroristas do 'Estado Islâmico' fazem o mesmo, atirando na nuca de várias pessoas e jogando os seus corpos no mar.
Praticamente 75 anos separam esses dois momentos históricos, mas o perspicaz Godard mostra que há muito em comum entre eles.

Portanto, em função de tudo o que vimos durante 84 minutos de duração, o filme de Godard tinha tudo para ter um final triste, melancólico e marcado por total desespero. Inclusive, nos momentos finais do filme, ele cita uma frase de Elias Canetti que aponta para isso, algo como 'não somos tristes o suficiente para que este mundo seja melhor'.
No final do filme, Godard mostra a imensa lista de filmes, vídeos, imagens, textos e músicas que usou para criar esse belo "Le Livre D'Image", no qual demonstra a sua inquietação com a situação atual do planeta, cujo meio ambiente está sendo devastado. 

É como se Godard estivesse perguntando 'o quanto o mundo ainda terá que piorar para que as pessoas tomem a iniciativa de tentar melhorar o mesmo?'.

No entanto, Godard termina o filme dizendo que se o passado é imutável, então as esperanças também são imutáveis e que precisamos recuperar as mesmas esperanças que tínhamos quando éramos jovens. 

O gênio Jean-Luc Godard está com 88 anos de idade e, mesmo assim, depois de tantos anos tentando mudar um mundo que é profundamente injusto, violento e cruel, ainda não desistiu de lutar para transformar a realidade, mostrando que possui muita energia, embora, no final do filme, ouçamos ele tossindo e tendo dificuldades para falar. 

Aliás, isso também aconteceu quando ele concedeu uma entrevista para jornalistas no Festival de Cannes e que foi feita pelo celular. Percebe-se que Godard estava com uma aparência envelhecida e tossindo bastante. Espero que ele ainda permaneça por muitos anos entre nós, pois o mundo precisa de cineastas que tem coragem suficiente para afirmar que somos governador por idiotas sanguinários e por criminosos que promovem uma fraude universal. 

E se este belo "Le Livre D'Imagem" ('Imagem e Palavra') foi o derradeiro e último filme de Godard, então pode-se concluir que ele fechou a sua fantástica e gloriosa carreira com chave de ouro, ou melhor, com uma Palma de Ouro. 

Obs3: "Le Livre D'Image" recebeu uma Palma de Ouro Especial no Festival de Cannes de 2018. E foi mais do que merecido. 

Muito obrigado por tudo, Gênio!
Jean-Luc Godard: Sua vasta, genial, influente e diversificada obra abrange mais de 140 trabalhos, entre curtas e longas-metragens, documentários, trabalhos para a TV e segmentos para outros filmes.

Links: 

Godard e a Literatura:

https://oglobo.globo.com/cultura/livros/os-cruzamentos-entre-os-filmes-de-jean-luc-godard-a-literatura-18573287

Atentados contra mesquitas matam 49 na Nova Zelândia:

https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/15/internacional/1552616642_719105.html

Massacre em escola de Suzano:

https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/15/politica/1552684730_810514.html

Texto de Inácio Araújo sobre 'Notre Musique' (2004):

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2801200512.htm

Godard mostra e questiona a violência do Mundo:

https://www.comunidadeculturaearte.com/le-livre-dimage-godard-questiona-e-mostra-nos-a-violencia-do-mundo/

Jean-Luc Godard e a colagem:

https://cinemaeuropeu.blogspot.com/2012/02/jean-luc-godard-e-colagem.html

A obra de Pablo Picasso e a sua influência sobre o Cinema:

https://www.conexaoparis.com.br/2015/10/21/relato-de-uma-exposicao-picasso-em-paris/

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