'Le Mépris' ('O Desprezo') - Godard valoriza a cultura clássica, mostra o colapso de um casamento e demonstra seu desprezo pelo cinema comercial de Hollywood!

'Le Mépris' ('O Desprezo') - Godard valoriza a cultura clássica, mostra o colapso de um casamento e demonstra seu desprezo pelo cinema comercial de Hollywood! - Marcos Doniseti!

'Le Mépris' ('O Desprezo'; 1963): Filme de Godard é baseado em um livro de Alberto Moravia e mostra o fim de um casamento e crítica o cinema comercial de Hollywood, além de conectar tais histórias com inúmeras referências históricas e culturais, principalmente com a 'Odisseia', de Homero.

A Produção de 'Le Mépris'!

'Le Mépris' é uma produção de 1963, sendo considerado um dos melhores filmes realizados por Godard na época em que a sua carreira estava no auge. Ele foi o sexto longa-metragem do cineasta francês, que dirigiu 17 filmes entre 1959 e 1968, sem contar com alguns curtas e segmentos em outros filmes.

Este foi, por exemplo, o caso do segmento 'Il Nuovo Mondo' no longa 'Ro.Go.Pa.G', produção de 1964 que foi filmada junto com Roberto Rosselini, Pier Paolo Pasolini e Ugo Gregoretti. Nesta obra cada um dos quatro cineastas se ocupou de um segmento do filme.

Os filmes de Godard, nos anos 1960, já eram caracterizados por inúmeras reflexões de caráter filosófico e existencial, que eram inseridas em meio a trama mais convencional, o que também acontece neste excelente 'Le Mépris', mas naquele período a sua obra possuía uma leveza, frescor e humor que, infelizmente, acabou desaparecendo em seus filmes mais recentes. 

A abertura do filme também é bastante incomum, com o próprio Godard anunciando quem são os atores, atrizes, produtores, roteirista, músico e fotógrafo do filme. Logo, não há créditos iniciais. Assim, em 'O Desprezo' Godard continua inovando a forma de trabalhar a linguagem cinematográfica.

A sequência de abertura de 'Le Mépris' dura 3 minutos e 15 segundos e mostra a mais bela e sensual atriz do mundo (na época), Brigitte Bardot, seminua. Os tons variam, mudando de vermelho para branco e, depois, para o azul, que são as cores da bandeira francesa. 

Obs1: De fato, essa 'inovação' de Godard não foi tão inovadora quando se pensa, pois no filme de Policial Noir 'Naked City' (dirigido por Jules Dassin e que é uma produção de 1948), o produtor do mesmo (Mark Hellinger) também começa o filme falando quem são os atores, atrizes e demais participantes do mesmo, bem como a maneira pela qual o filme foi realizado, com cenas filmadas nas ruas de Nova York e com a participação de cidadãos comuns no papel de coadjuvantes (o que mostra a nítida influência do Neorrealismo italiano). A diferença é que, no caso do filme de Dassin nós temos a exibição de créditos após o final do filme, o que não acontece no filme de Godard. Outra diferença importante é que em 'Le Mépris' é o próprio diretor (Godard) quem faz a narração, o que é uma maneira de diferenciar o Cinema feito em Hollywood (controlado pelos produtores) daquele feito pelos cineastas da Nouvelle Vague (que é o Cinema Autoral, controlado pelos diretores). Logo, Godard usa do mesmo recurso que Hellinger usou, mas de maneira distinta e com significados diferentes.

Nos filmes de Godard também é comum termos uma frase que, de certa maneira, acaba resumindo se não todo o filme, pelo menos dá uma boa ideia do que veremos em grande parte do mesmo. E nos filmes do genial cineasta francês deste período isso sempre acontecia. Em 'Bande à Part' (que já foi comentado por mim aqui no blog) também temos um pequeno texto que resume a trama do filme.

E neste clássico 'O Desprezo' isso também ocorre quando, logo no começo, é citada uma frase que Godard atribui ao crítico André Bazin (que foi da revista 'Cahiers du Cinema', tal como Godard, Truffaut , Rivette, Rohmer e Chabrol, ou seja, a nata da 'Nouvelle Vague'), que é a seguinte: 'O Cinema substitui um mundo por outro mais em harmonia com nossos desejos'.

Mas, segundo um importante estudioso (Jean-Louis Leutrat) da obra de Godard a frase citada foi dita por outro crítico (chamado Michel Mourlet).

De acordo com Leutrat, Godard costuma brincar com as falsas atribuições, mudando os textos, quebrando-os, com o objetivo de fazer um outro texto. Tal prática foi bastante comum, segundo Leutrat, entre a realização de 'À Bout de Souffle' ('Acossado'; 1960) e de 'Pierrot le Fou' (O Demônio das Onze Horas; 1965).

Em 'Le Mépris' a atriz Giorgia Moll interpreta uma tradutora que se chama Francesca Vanini, que é uma referência a um filme de Roberto Rossellini (Vanina Vanini; 1961), que é um dos cineastas que Godard mais admira. O papel dela é importante pois, no filme, são faladas quatro línguas: alemão, inglês, francês e italiano. Mas as traduções dela nem sempre são literais, pois ao traduzir ela promove mudanças, como fazem os tradutores. Assim, o tema da tradução se torna importante no filme. 

Independente disso, ela resume muito bem o que será visto no filme 'Le Mépris', que é uma adaptação bem livre da obra de Alberto Moravia. O livro de Moravia tem como tema a adaptação para o cinema do poema épico Odisseia, de Homero, o que também é o tema de 'Le Mépris'. E o genial Godard conclui dizendo que o seu filme é a história desse mundo, no qual a criação artística, sim, é relevante e não o lucro.

Obs2: As informações sobre as citações nos filmes de Godard e a verdadeira autoria da frase citada por ele em 'Le Mépris' foram retiradas do livro 'Godard, Cinema, Literatura', de Mário Alves Coutinho (Editora Crisálida; página 146).

Neste momento, vemos a câmera de Godard filmando o câmera do filme que estava sendo realizado na trama (Ulisses, dirigido por Fritz Lang) e, depois, o câmera aponta o seu instrumento para a câmera de Godard. Portanto, Godard está dizendo que este filme é, na verdade, sobre o Cinema e trata das condições em que os filmes são realizados. 

Assim, Godard aponta claramente para o fato de que, em sua visão, a busca pelo lucro não é compatível com a criação de uma verdadeira obra de Arte, sendo que ele deixa claro, na conclusão do filme, que a cultura jamais deverá ser guiada com base nas regras do mercado, que é exatamente o que o produtor interpretado por Jack Palance defende.

Em relação ao livro de Alberto Moravia (Il Desprezzo; 1954) Godard introduziu várias mudanças, sendo que uma das mais importantes foi a criação de uma nova personagem, que é Francesca Vanini, uma tradutora, que não existe no livro de Moravia. Por meio dela, Godard provoca toda uma discussão a respeito da importância da tradução, mas também faz uma homenagem a Roberto Rossellini, que é um dos cineastas que ele mais admira.

Godard chegou, até, a publicar uma entrevista com Roberto Rossellini em uma edição da 'Arts', quando ele era crítico da revista, mas a entrevista nunca aconteceu. Ela foi inteiramente inventada por Godard. Mas o resultado final ficou tão bom que o próprio Rossellini deu a sua aprovação, o que mostra o quanto Godard conhecia as ideias, os métodos de trabalho e a obra do grande mestre do Cinema italiano.

Obs3: A informação sobre essa entrevista fictícia de Godard com Rossellini foi retirada do livro 'História do Cinema Mundial' (Papirus Editora, página 236; Fernando Mascarello) no capítulo dedicado à Nouvelle Vague e que é de autoria de Alfredo Manevy.

Momento da sequência de abertura, que mostra Camille e Paul felizes, em que o tom muda para o branco. O produtor Prokosch irá usar dessa relação para convencer o roteirista Paul Javal a fazer as mudanças no roteiro do filme, dirigido por Fritz Lang, pois o roteirista precisa de dinheiro para manter o elevado padrão de vida que desfruta com a belíssima esposa, que é interpretada por Brigitte Bardot. 

A Trama do Filme! 

A trama do filme é relativamente simples e mostra um cineasta alemão (Fritz Lang, interpretando ele mesmo) que está dirigindo um filme na Itália (nos estúdios da Cinecittà, em Roma) que se chama 'Ulisses' e que, é claro, se baseia na Odisseia de Homero. 

Assim, temos um caso clássico de metalinguagem neste filme de Godard, que mostra, de fato, quais são as condições em que um filme é realizado. Portanto, 'Le Mépris' é um filme no qual o tema principal é o próprio Cinema. 

Mas o roteirista do filme (Paul Javal) sofre fortes pressões por parte do produtor do filme, um americano arrogante (Jeremy Prokosch, interpretado por Jack Palance), para que mude a história, a fim de tornar a mesma mais acessível ao grande público e, desta maneira, ele possa lucrar com a obra. 

Obs4: É bom ressaltar que o próprio 'Le Mépris' é uma coprodução que envolve capital de produtores dos EUA (Joseph E. Levine), Itália (Carlo Ponti) e França (Georges de Beauregard). Não é à toa, assim, que a língua dos três países é usada no filme. E o alemão é utilizado porque é a língua de Fritz Lang, que é o herói dos dois filmes, o de Godard (Le Mépris) e o do próprio Lang (Odisseia).

Para conseguir isso, Prokosch oferece uma boa soma (10 mil dólares) para que Paul aceite promover tais mudanças na história. Inicialmente, Paul pensa seriamente em aceitar a proposta, pois deseja terminar de pagar o novo apartamento que ele e a sua belíssima esposa (Camille) acabaram de comprar. Paul também diz que está aceitando mudar o roteiro porque deseja agradar à sua bela esposa. 

Assim, são razões estritamente pessoais (amorosas e materiais), e não artísticas, que acabam sendo os motivos pelos quais Paul mostra-se disposto a mudar o roteiro que havia escrito originalmente para o filme.

A sequência de abertura termina em tom azul. Ela representa não apenas um relacionamento feliz de Paul e Camille, mas a união entre a cultura francesa humanista, herdeira da Grécia e Roma Antigas, e o capital francês nacionalista e democrático que respeitaria a liberdade criativa dos artistas. 

Quanto à Fritz Lang ele deixa que o roteirista tome a decisão e reconhece que o filme pertence, de fato, ao produtor inteiramente desprovido de ética que é Jeremy, mostrando que não tem poder algum sobre a obra e que fará aquilo que lhe será determinado. Mas quando o produtor quis lhe dar ordens sobre como proceder, Fritz Lang se recusou, pois não aceita macular a obra de arte em troca de lucro. 

Portanto, é a figura do diretor que irá se apresentar como o defensor do Cinema enquanto obra de arte. Assim, Fritz Lang é o herói (o Ulisses) deste filme (sobre a Odisseia) que ele realiza dentro do filme (Le Mépris) de Godard.

Logo, Fritz Lang (o diretor) garante o triunfo do Cinema Autoral sobre o Cinema Comercial de Hollywood, o que explica a sequência final de 'Le Mépris', na qual Prokosch e Camille tem um final trágico, enquanto Lang conclui o filme da maneira que desejava.

Neste contexto, Godard está claramente usando a trama de 'Le Mépris' para defender e valorizar o chamado 'Cinema Autoral' (do qual ele e os cineastas da Nouvelle Vague eram os principais representantes e defensores no início dos anos 1960), deixando claro a sua visão altamente negativa a respeito dos roteiristas, que são mostrados como mercenários que estão dispostos a mudar as histórias que escrevem em troca de um bom dinheiro.

Godard e os cineastas ligados à Nouvelle Vague sempre foram duros críticos de um Cinema produzido sob a hegemonia dos roteiristas, o que aconteceu, principalmente, no cinema francês dos anos 1930, época que predominou o chamado 'Realismo Poético', e que ainda predominava na década de 1950. 

E os produtores também são exibidos como pessoas interessadas apenas no lucro que um filme poderá proporcionar e que não ligam a mínima para a relevância artística de uma obra.

Jeremy Prokosch (interpretado por Jack Palance) é um produtor que se preocupa apenas com o lucro e que pouco se importa com a qualidade de uma obra de arte. Jeremy diz que sempre que ouve a palavra cultura, ele saca o seu talão de cheques. Jeremy se considera um sucessor dos Deuses da Antiguidade, que manipulavam inteiramente aos seres humanos. 

Neste contexto, o produtor Jeremy diz uma frase muito famosa, que é 'Quando ouço falar em cultura, eu saco o meu talão de cheques', o que é uma referência a uma frase muito parecida, que muitos atribuem ao líder nazista Hermann Goering, que teria dito 'Quando ouço falar em cultura, eu saco o meu revólver'. 

Obs5: Segundo Arnaldo Niskier informou, em texto publicado na 'Folha de S.Paulo' de 17/02/2004, a frase 'Quando ouço falar em cultura, saco o meu revólver' é de uma peça de teatro antinazista de autoria de Hanns Jost, que foi encenada em 1933. 

Outro fato importante que deve ser ressaltado é que o belo 'Le Mépris' pode ser analisado sob várias perspectivas, pois temos vários diferentes temas, cinco pelo menos, neste filme, cada um deles tratando de um conflito em particular, que estão devidamente relacionados entre si, que são: 

A) A crise e o conflito entre Paul e Camille, que são casados e cuja relação está correndo o risco de terminar; 

B) A criação de uma obra de arte cinematográfica, com Godard defendendo o 'Cinema Autoral' e condenando o "Cinema Comercial' de Hollywood; 

C) A valorização da Cultura Clássica (da Odisseia de Homero, em especial), de caráter humanista, em contraposição com a cultura moderna (Capitalista), da qual a França seria a herdeira;

D) A adaptação e recriação de obras de Arte!

E) As línguas e as diferentes formas de se traduzir!

A primeira história mostra o relacionamento de um casal (Camille e Paul) que também se divide em três partes: 

A) Inicialmente, fica claro que Paul e Camille se amam intensamente; 

B) Depois, vemos o início da crise entre o casal, devido ao fato de Paul ter estimulado o envolvimento de Camille com o produtor Jeremy, que gera fortes discussões entre os dois, levando-a dizer que não o ama mais e que o despreza;

C) E a terceira parte mostra o fim do casamento de Paul e Camille e o final trágico que ela terá.

Nesta cena, ao fundo, vemos o cartaz do filme 'Viver a Vida', de Godard, do qual a sua esposa (Anna Karina) foi a protagonista. Inúmeros outros filmes são citados em 'Le Mépris', tais como 'Psicose' (Hitchcock) e 'Viaggio in Italia' (Rossellini), que foram dirigidos por dois cineastas que eram muito admirados pelos membros da Nouvelle Vague. Filmes de Howard Hawks (Rio Bravo; 1959) e de Nicholas Ray (Bigger than Life; 1956) também são citados. 

A belíssima cena de abertura de 'Le Mépris' é um plano longo que dura 3 minutos e 15 segundos, sendo que a mesma foi filmada em vários tons, começando com vermelho e, depois muda para branco e azul, que são as cores das bandeiras da França. Nesta cena o casal faz declarações de amor um para o outro. 

Depois, porém, Paul estimula a sua bela esposa, Camille, a entrar no carro (Alfa Romeo) de Jeremy, como se estivesse empurrando a esposa, querendo usar a mesma para faturar um pouco mais com o roteiro que escreveu para o filme 'Ulisses' que será dirigido por Fritz Lang. No fundo vemos o cartaz do filme 'Viver a Vida', de Godard, do qual a sua esposa (Anna Karina) foi a protagonista. 

E tal cena também mostra o lindo corpo desnudo da belíssima Brigitte Bardot e nela toca o maravilhoso 'Theme de Camille', composto por Georges Delerue, que é um dos pontos altos deste filme e que também pode ser considerada uma das obras-primas das trilhas sonoras da história do Cinema mundial.

No filme, veremos o desenvolvimento da crise e o colapso de um casamento, que é o de Camille (Interpretada por Brigitte Bardot) e Paul (Michel Piccoli).

A destruição deste relacionamento é provocado pela atitude de indiferença (de desprezo...) que Paul adotou em relação ao fato de que Jeremy convidou Camille para um jantar, ao qual ele iria comparecer mais tarde, como se o marido a estivesse estimulando a ter um caso com o rico e poderoso produtor. Paul age desta maneira porque deseja ser bem pago por Jeremy.

A visão do estúdios da Cinecittà, em Roma, deixa claro a imensa diferença em relação aos cenários naturais, que foram amplamente utilizados por Godard em seus filmes, incluindo 'Le Mépris', é claro. Os estúdios parecem mortos quando comparados com as locações naturais feitas em Roma e na Ilha de Capri. 


Paul estimulou a esposa a aceitar o convite, fato este que a deixa muito triste e abalada, pois ama o seu marido imensamente e não esperava essa atitude de sua parte. Paulo praticamente a empurrou para o lado (ou para o colo...) de Jeremy, como se ele desejasse que a esposa fosse seduzida pelo endinheirado produtor.
 

A visão do estúdios da Cinecittà, em Roma, deixa claro a imensa diferença em relação aos cenários naturais, que foram amplamente utilizados por Godard em seus filmes.

Obs6: Nesta sequência em que Camille entra no Alfa Romeo de Jeremy vemos os cartazes de vários filmes afixados na parede e um deles é 'Vivre sa Vie' ('Viver a Vida'), produção de 1962 que teve Anna Karina, que era casada com Godard desde 1961, como protagonista. Seria essa uma maneira de Godard dizer que o filme 'Le Mépris' está, de alguma maneira, relacionado com os problemas que enfrentava no relacionamento com Anna Karina? Na época do lançamento do filme (Outubro de 1963) essa hipótese chegou a ser cogitada. Aliás, a própria Anna Karina, disse em entrevista (de Janeiro de 2016) que existem elementos do relacionamento dela com Godard que estão presentes em 'Le Mépris'. Também é interessante notar que em 'Le Mépris', Camille também usa de uma peruca na qual a cor do seu cabelo é negro, o que deixa a loura Brigitte Bardot muito parecida com Anna Karina, a esposa de Godard naquele momento.

A atitude de Paul fará com que, a partir daí, a belíssima Camille passe a tratar o marido com indiferença e desprezo, afastando-se cada vez mais do mesmo, recusando-se até a mesmo a continuar dormindo com ele na mesma cama, inventando a desculpa de que não gosta de dormir com a janela aberta.

No apartamento de Paul e Camille vemos a escultura que representa a Cultura Clássica, de caráter humanista, enquanto que Camille simboliza a Cultura Francesa que é a herdeira das tradições e dos valores da Grécia e da Roma Antigas.

Porém, inicialmente, ela não diz qual é o verdadeiro motivo dessa atitude com o marido. Mas é claro que Paul sabe a razão deste comportamento de Camille, porém isso é algo que ele somente irá reconhecer quando ela já tinha tomado a decisão de abandoná-lo. 

Camille e Paul passam boa parte do filme discutindo a respeito do motivo dela ter passado a agir desta maneira, sendo que ela acaba reconhecendo que não o ama mais e que passou a desprezar o seu marido. Afinal, ela sentiu-se desprezada pelo marido quando o mesmo não se importou com o fato de que ela fosse jantar com Jeremy.

E durante a discussão entre Paul e Camille o movimento da câmera de Godard acompanha a fala dos dois, indo da direita para a esquerda e vice-versa, movimentando-se horizontalmente.

Esta cena lembra um duelo típico de um filme de Western e também uma partida de tênis, com os jogadores jogando a bola para o adversário. Logo, a cada 'disparo' ou 'raquetada' desferida por Camille ou Paul o movimento da câmera acompanhava o que eles diziam, o que é outra inovação do genial cineasta francês que, aliás, é um grande apreciador de Tênis, sendo que até já foi assistir a partidas no torneio de Roland Garros. 

Posteriormente, em uma segunda oportunidade, quando Jeremy convida a todos (Paul, Camille, Fritz Lang) para irem juntos para a sua propriedade em Capri (ilha localizada no sul da Itália, próxima a Nápoles, e que é banhada pelo Mar Tirreno), Paul voltou a permitir que a sua jovem e belíssima esposa fosse passear no barco de Jeremy, adotando novamente uma postura de indiferença com relação ao fato de que o rico produtor dos EUA estava nitidamente interessado em seduzir a bela e sensual Camille.

Camille passou a usar uma peruca de cabelos negros, que a deixou muito parecida com Anna Karina, que na época era casada com Godard.

Enquanto Camille e Jeremy somem no mar, com o barco dele, Paul e Fritz Lang estabelecem um paralelo entre a história de Ulisses e Penélope com a situação do casamento de Paul e Camille. Paul fala que Ulisses saiu de casa e demorou dez anos para voltar porque não amava mais a mulher, interpretação essa com a qual Fritz Lang não concorda.

Então, foi por isso que Ulisses teria permitido que os pretendentes tentassem seduzir Penélope, mas que, depois, quando retornou para Ítaca, e para corrigir tal situação, ele percebeu que seria necessário que eliminasse os mesmos. Essa é uma interpretação bem diferente daquela que tradicionalmente é usada para se compreender a Odisseia.

Assim, é sugerido que Paul (que possui uma arma) somente irá recuperar o amor de Camille caso ele decida eliminar Jeremy. Mas isso não acabará acontecendo, pois a jovem, bela e desprezada Camille irá tirar as balas da arma de Paul, deixando claro que nem mesmo isso irá fazer com que ela decida retomar o relacionamento com o marido. 

Esta segunda iniciativa de Paul de estimular o envolvimento de Camille com Jeremy provocará o colapso final do casamento deles, fazendo com que ela decida ir embora para Roma, sozinha, com o produtor, no 'Alfa, Romeo' do mesmo. Nesta frase, Camille faz um trocadilho bem evidente, relacionando a história de 'Romeu e Julieta' com a marca de veículos italiana Alfa Romeo.

Ela disse isso talvez com a intenção de deixar claro que pretendia iniciar um relacionamento com Jeremy. Mas o destino não permitirá que isso vá acontece.

Camille olha, decepcionada, para Paul, que a estimulou para que ela fosse passear, sozinha, de barco com o produtor Jeremy. Esse comportamento de Paul fará com que ela decida deixá-lo. 

Talvez isso seja, inclusive, uma indicação de que o casamento do diretor com a bela e jovem atriz dinamarquesa já estivesse vivendo uma séria crise naquele momento, algo que ficou mais evidente no excepcional e belo filme 'Une Femme Mariée' ('Uma Mulher Casada'), que é uma produção de 1964, ou seja, que foi realizado um ano após a filmagem deste 'Le Mépris'.

Obs7: Em uma sequência na qual Jeremy, Fritz Lang e Paul estão assistindo a cenas do filme de Lang vemos uma frase escrita na parede da sala, que é de autoria de Lumiere e que diz: 'O Cinema é uma invenção sem futuro'. Parece que Lumiere se enganou...

Cinema Autoral (Nouvelle Vague) X Cinema Comercial (Hollywood)! 

Também é possível analisar o filme de Godard com base no conflito entre o 'Cinema Autoral' da Nouvelle Vague francesa e o 'Cinema Comercial' de Hollywood.

Desta maneira, podemos encarar a atitude de Paul, o roteirista que aceita se vender ao produtor dos EUA, vindo de Hollywood, e que usa a esposa para seduzir o mesmo (Jeremy), como a defesa da entrega do controle do cinema francês para Hollywood. 

Na época em que Le Mépris foi realizado o capital originário dos EUA estava, literalmente, invadindo a Itália, onde os profissionais de cinema italianos eram tão bons quanto os dos EUA (ou até melhores) e os custos de produção eram muito inferiores aos que vigoravam em Hollywood. E com esse filme Godard demonstra que temia que o mesmo acontecesse com o cinema francês.

Visão noturna de Roma. O contraste com a cena que mostrou os estúdios da Cinecittà é marcante. A cidade transpira vida, enquanto os estúdios parecem mortos.

Portanto, a bela Camille representaria o cinema francês que deseja permanecer sob o controle nacional, ou seja, que não aceita ser entregue ao capital vindo dos EUA (simbolizado por Jeremy) e o roteirista Paul simboliza o capital francês que deseja se associar aos EUA pois iria lucrar muito mais com essa sociedade.

No entanto, com base no que vimos em 'Le Mépris', Godard deixa claro que existiam, na França, setores interessados (representados por Paul) em se associar ao capital originário dos EUA. E na visão de Godard, essa atitude (de Paul), de querer entregar o controle do cinema francês (simbolizada por Camille) para os EUA (Jeremy), seria uma tragédia para a produção cinematográfica francesa, o que explicaria a sequência de encerramento do filme.

Essa interpretação também explicaria a cena de abertura, na qual Camille e Paul estão juntos, na cama (quando aparecem as cores da bandeira francesa), e ainda demonstram que se amam intensamente, pois naquele momento ele ainda não havia aceitado a proposta de Jeremy.

Logo, o capital francês (Paul) e o cinema francês (Camille) ainda estavam unidos, o que explica a felicidade do casal naquele momento, pois essa união é que permitiria que a França desenvolvesse um Cinema dominado por padrões artísticos elevados (ou seja, o 'Cinema Autoral' da Nouvelle Vague) e não em função de objetivos meramente comerciais (visando o lucro), que era o de Hollywood.

O relacionamento entre Paul e Camille está em pleno processo de desintegração. Assim, ela passa a agir de maneira independente, se afastando cada vez mais do marido, ao qual passou a desprezar. 

Logo, na visão de Godard, somente com a manutenção dessa unidade nacional em torno da defesa da cultura francesa (e do seu Cinema, em especial) é que o país poderia preservar a sua liberdade e criar uma arte verdadeira, não comercial, sem ser controlada por produtores ambiciosos e que não possuem qualquer preocupação artística.

A adaptação e recriação de obras de Arte!

Segundo a teórica literária canadense Linda Hutcheon, "o processo de adaptação pode envolver uma mudança de mídia, de gênero, de foco e contexto, como contar a mesma história de um ponto de vista diferente, em um processo de recriação ou reinterpretação".

Obs: Citação retirada do ensaio 'Recriação de uma obra literária: Dois irmãos em HQ', de Simone Paula M. Tinti, em 'Darandina - Revista Eletrônica, volume 10, número 2'. 

Um aspecto do filme que não é muito comentado está relacionado com a adaptação e a recriação de obras de Arte, por meio de sucessivas adaptações.

O filme de Godard é uma adaptação do livro, de mesmo título do filme, do escritor italiano Alberto Moravia. O livro deste, por sua vez, é uma adaptação da 'Odisseia', de Homero. E a 'Odisseia', sob a forma literária é, também, resultado da transcrição da sua versão original, que era transmitida oralmente, para a forma de texto, ou seja, literária.

E dentro de 'Le Mépris' nós temos um outro filme, dirigido por Fritz Lang, que é uma adaptação da 'Odisseia' de Homero.

E ainda temos uma outra adaptação em 'Le Mépris', pois este é, de certa maneira, a versão pessoal de Godard para o filme 'Viaggio in Italia' (1954), de Roberto Rossellini, diretor que era o mais admirado pelos cineastas da Nouvelle Vague.

No início do filme, Francesca faz uma tradução literal e outra não literal das falas de Prokosch.

Portanto, temos cinco momentos de adaptação e, logo, recriação da 'Odisseia', que estão presentes em 'Le Mépris':

1) A Odisseia de Homero, literária, que tem origem na Odisseia oralmente transmitida;

2) O livro de Moravia, que é uma adaptação da 'Odisseia' de Homero;

3) O filme de Godard, que é uma adaptação do livro de Moravia ('Il Desprezzo');

4) O filme de Fritz Lang, que é uma adaptação da 'Odisseia' de Homero;

5) O filme 'Le Mépris', que também é uma adaptação de 'Viaggio in Italia', de Rossellini.

Oras, em todos estes momentos ocorreram mudanças na obra que estava sendo adaptada, pois sempre se perde ou se acrescenta algo no momento em que a adaptação está sendo feita. Assim, a obra é constantemente recriada ou reinterpretada, tal como disse Linda Hutcheon.

Nesta sequência, em determinado momento, Francesca traduz apenas uma parte do que Prokosch falou, omitindo outra.

As línguas e a tradução em 'Le Mépris'!

O filme de Godard também pode ser analisado sob outra perspectiva, que é a da questão das línguas que são faladas no filme e que são traduzidas no mesmo, o tempo inteiro, por uma das suas personagens, a Francesca Vanini, que é a assistente do produtor cinematográfico Jeremy Prokosch (Jack Palance).

No filme são faladas 4 línguas, que são o o alemão (Fritz Lang), o italiano (assistentes de Lang), o inglês (Jeremy Prokosch) e o francês (Paul e Camille). E a única personagem que domina as 4 línguas é a Francesca, interpretada por Giorgia Moll, atriz cujo pai era alemão e a mãe era italiana.

Assim, essas duas línguas a Giorgia Moll já as dominava por origem familiar, sendo que ela também era fluente em inglês e francês. Logo, a própria atriz que interpretou Francesca era fluente nas 4 línguas que são faladas em 'Le Mépris', o que facilitou muito para Godard.

E neste aspecto, da tradução e recriação de uma obra de arte, Francesca é a personagem central do filme.

E um outro aspecto interessante deste trabalho de tradução que Francesca faz no filme é que ela faz diferentes tipos de tradução. Em um primeiro momento ela traduz tudo, literalmente, o que o Prokosch diz. Depois ela traduziu de maneira não literal outra fala dele, embora preservasse o sentido do que Prokosch havia dito.

Nesta sequência, Francesca não irá traduzir o que o Prokosch diz, mas fará uma interpretação pessoal da fala dele.

Em outro momento, Francesca traduziu apenas uma parte do que ele disse, omitindo outra parte. E no final do filme, quando os personagens estão na vila Capri, na casa modernista de Curzio Malaparte, ela não faz uma tradução, de fato, de uma fala de Prokosch, mas a interpreta de forma absolutamente pessoal.

Logo, temos quatro diferentes maneiras de se traduzir e, logo, de recriar uma obra de arte que estão presentes em 'Le Mépris'.

Cultura Clássica X Cultura Moderna! 

A jovem e bela Camille representa o cinema francês, a cultura nacional francesa, orgulhosa das suas realizações e da sua história, e que também é apresentada como sendo a herdeira e a representante de uma Cultura Clássica, originária da Grécia e da Roma da Antiguidade.

Em diversos momentos do filme vemos Godard defendendo essa visão, como na sequência do apartamento, em que Paul e Camille discutem a respeito dos problemas que o seu casamento está enfrentando.

As estátuas greco-romanas: Ulysses, Penélope e Netuno. Os olhos coloridos são uma referência de Godard a uma afirmação de Platão, de que os olhos merecem as mais belas cores, pois eles eram a parte mais bonita do corpo. E as estátuas da Grécia Antiga eram, de fato, coloridas. Foram os artistas do Renascimento que branqueou as obras, para diferenciar as mesmas da colorida arte medieval.

Nesta sequência, a imagem de Camille lembra, claramente, a escultura feminina que aparece em muitos momentos desta sequência. Ela também é mostrada folheando um livro de fotos que reproduzem imagens dos antigos romanos fazendo amor. 

E também vemos, em vários momentos, imagens de estátuas romanas, que eram cópias das originais gregas. E nelas os olhos das estátuas sempre aparecem coloridos, o que é uma referência de Godard a uma afirmação de Platão, que dizia que os olhos de uma estátua mereciam as mais belas das cores, pois eram a parte mais bonita do corpo humano. 

Aliás, foi confirmado que as estátuas gregas eram bastante coloridas, mas essas cores foram se desgastando com o tempo. Foram dois arqueólogos (Vinzenz Brinkman e sua esposa Ulrike Koch-Brinkman) que usaram de técnicas modernas que comprovaram esse colorido das estátuas da Grécia Antiga.

E os artistas do Renascimento foram os responsáveis pelo fato de que, para romper com a arte dominante no período medieval (que tinha muitas cores), passaram a fazer obras (estátuas, edifícios...) na cor branca, para diferenciar a Arte renascentista da medieval.

Paul admite, finalmente, que sabe o real motivo que levou Camille a ter passado a sentir desprezo por ele.

Paul, por sua vez, aparece usando uma toalha para cobrir o seu corpo e que lembra, claramente, as roupas usadas pelos antigos gregos e romanos. 

Logo, para Godard, a cultura francesa (simbolizada por Camille) é a herdeira desta antiga cultura greco-romana e os franceses tem a missão de garantir que os valores da mesma sejam preservados, o que a coloca em conflito com a cultura moderna, capitalista, baseada nas regras do livre-mercado. Esta cultura comercial visa apenas obter o máximo de lucros e, no filme, é simbolizada pelo personagem do autoritário produtor Jeremy.

E o final do filme mostra que, para Godard, caso a cultura francesa e o Cinema francês, em especial, passem a se guiar pelos interesses dos capitalistas isso representará a destruição desta rica e valiosa tradição cultural do Ocidente e que possui uma inequívoca essência humanista. 

Portanto, não é à toa que este clássico e belo filme de Godard é considerado, por muitos, um dos seus melhores trabalhos, bem como também é um dos mais importantes filmes do Pós-Guerra.

Camille, no Alfa Romeo de Jeremy, foge para Roma. Mas a fuga terminará em tragédia. Godard, portanto, está dizendo que, a união entre o capital estrangeiro, que visa apenas o lucro, com a cultura francesa humanista, será catastrófica para a França. 

Informações Adicionais! 

Título: Le Mépris ('O Desprezo');
Diretor: Jean-Luc Godard;
Roteiro: Jean-Luc Godard (é uma adaptação livre do livro 'Il Disprezzo', de Alberto Moravia, de 1954);
País de Produção: França e Itália;
Ano de Produção: 1963;
Duração: 103 minutos;
Gênero: Romance; Drama; 
Música: Georges Delerue;
Fotografia: Raoul Coutard;
Elenco: Brigitte Bardot (Camille Javal); Michel Piccoli (Paul Javal); Fritz Lang (ele mesmo); Jack Palance (Jeremy Prokosch); Giorgia Moll (Francesca Vanini); Jean-Luc Godard (assistente de Fritz Lang).

No 'filme dentro do filme' Ulisses volta para Ítaca, em pose triunfal, representando a vitória do Cinema Autoral (Nouvelle Vague), de inspiração humanista, sobre o Cinema Comercial de Hollywood, que visa apenas o lucro. 

Links: 

Entrevista com Anna Karina; Ela comenta sobre a relação com Godard na época da produção de 'Le Mépris': 

http://www.anothermag.com/design-living/8242/anna-karina-talks-bardot-and-inspiring-jean-luc-godard 

Anna Karina comenta sobre seu trabalho e relacionamento com Godard: 

https://www.comunidadeculturaearte.com/anna-karina-relembra-a-sua-vida-com-jean-luc-godard/ 

Godard, o reinventor do Cinema: 

http://miltonribeiro.sul21.com.br/2010/11/07/o-reinventor-do-cinema/ 

Anna Karina: 

http://miltonribeiro.sul21.com.br/2009/10/10/porque-hoje-e-sabado-anna-karina/ 

Texto de Arnaldo Niskier: 

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200410.htm 

Bande à Part: 

http://popeseries.blogspot.com/2016/06/filme-bande-part-ou-godard-reinventando.html

Comentários

Postar um comentário