'Passion': Godard fez um belo filme que mostra relação entre Cinema e Pintura e diz que não há regras para se fazer cinema!
'Passion': Godard fez um belo filme que mostra relação entre Cinema e Pintura e diz que não há regras para se fazer cinema! - por Marcos Doniseti!
'Passion' (JL Godard; 1982, 88 minutos)!
"Não tenho filosofia, não hoje. Para mim, fazer um filme é como ser um detetive, um advogado, um juiz ou um promotor trazendo evidências como em um processo judicial e tentando descobrir do que se trata."
Godard em uma entrevista de 1981, época da produção de 'Passion'.
Frases do filme:
'Você não pode se salvar salvando o mundo. É um erro'.
Frase do personagem Jerzy, em 'Passion', e que estaria fazendo, no filme, uma espécie de autocrítica de Godard sobre a sua ideia, da época do período maoísta, de que seria possível interpretar e mudar o mundo.
'Não voltarei para o Leste, camarada'.
Fala do ator-personagem Laszlo Szabo, que é uma referência ao período maoísta de Godard.
Obs: A publicação foi atualizada no dia 26/12/2023.
Sinopse do filme!
'Passion'
conta, essencialmente, três histórias que se misturam durante o filme e trata as situações por meio de uma séries de dualidades.
A primeira história envolve um cineasta polonês exilado na França (Jerzy) e que tenta dirigir um filme, mas que está repleto de dúvidas sobre o que fazer e não consegue concluir o mesmo.
A segunda história é sobre uma operária (Isabelle) que é demitida da fábrica em que trabalha e tenta organizar um movimento grevista na mesma para que seus direitos sejam respeitados.
E a terceira história é sobre um casal de pequenos proprietários (Michel, dono da fábrica que demitiu Isabelle, e Hanna, proprietária de um hotel) cujo casamento está em crise e que vive discutindo o filme inteiro.
O cineasta Jerzy acaba se envolvendo com as duas mulheres, Isabelle e Hanna, e não sabe com qual delas deve viver, mesmo sabendo que elas são totalmente diferentes uma da outra. Isso reflete as próprias dúvidas de Godard sobre o que fazer do filme que está dirigindo.
Hanna Schygulla e Godard no set de filmagem de 'Passion' (1982). Mais ao fundo vemos Michel Piccoli, em uma obra na qual Godard fez uma busca incessante por uma iluminação perfeita. |
Esse é um exemplo das dualidades que estão presentes no filme, que incluem conflitos entre Burguesia X Proletariado, Tirania X Liberdade, Homens X Mulheres, entre outras.
Godard constrói o filme em torno da rica tradição artística da Europa Ocidental, com o uso de inúmeros tableaux vivants (encenações de pinturas) de obras de artistas como Rembrandt, Goya, Delacroix, Watteau, El Greco e Jean-Auguste Dominique Ingres.
'Passion' foi o primeiro filme no qual o genial diretor de fotografia Raoul Coutard trabalhou com Godard depois de 'Weekend' (1967). No ano seguinte eles voltaram a trabalhar juntos no belíssimo 'Prénom Carmen' (1983), que conquistou o Leão de Ouro no Festival de Veneza do mesmo ano.
'Passion' reflete a crise criativa que Godard enfrentava neste período e, respeitadas as diferenças de estilo, temas e período histórico, 'Passion' pode ser considerado o '8 e Meio' do cineasta francês, sendo que também remete à sua obra-prima dos anos 1960, que foi 'Le Mépris'.
A Produção de 'Passion'!
'A Luta de Jacó com o Anjo' (1861), obra de Eugène Delacroix, que Godard encena no filme. |
Este foi o segundo filme de Godard depois que ele retomou a produção de uma obra ficcional e, digamos, um pouco mais convencional do que aquela que havia desenvolvido no período maoísta (1968-1972), quando integrou o Grupo Dziga Vertov e trabalhou com Jean-Pierre Gorin, e do período de pesquisas com Vídeo e Séries de TV (1973-1978), quando iniciou a sua vida (profissional e amorosa) com a fotógrafa e cineasta suíça Anne-Marie Miéville.
Neste belo filme de Godard vemos o cineasta fazer uma série de reflexões sobre Cinema, Pintura, História, Política, Amor, Trabalho, trabalhando ainda com uma série de dualidades (uma característica que está presente em toda a sua obra): Burguesia X Proletariado; Homens X Mulheres; Tirania X Liberdade; Produtores X Cineastas.
'Passion' veio logo depois do bonito, reflexivo, autocrítico e muito autobiográfico "Sauve qui peut" [la vie], que foi muito elogiado e alcançou um incomum sucesso comercial na trajetória de Godard.
Durante as filmagens de 'Sauve qui peut (la vie)' a atriz Isabelle Huppert perguntou para Godard o que este pensava que era paixão (tema importante do filme) e o cineasta respondeu que eles deveriam fazer outro filme juntos para descobrir. E foi o que fizeram, com este 'Passion'.
Isabelle Huppert afirmou, em uma entrevista feita logo após o falecimento de Godard, que ele lhe telefonou para trabalhar em 'Sauve que peut (la vie)'. Em 'Passion', Godard pediu que os intérpretes falassem em um certo tom, "para que soassem um pouco como citações ou oráculos".
Isabelle Huppert entrega, em 1987, o Prêmio César, honorário, para Jean-Luc Godard. |
Ela também disse que não teve nenhuma dificuldade em trabalhar com Godard nestes dois filmes e também afirmou que o pedido feito por ele para que ela gaguejasse, em 'Passion', se deveu ao fato de que ela interpretava uma operária e que, na visão de Godard, o fato dela gaguejar era 'uma forma conceitual de mostrar as dificuldades que a classe operária enfrenta' e que, assim, ela também poderia 'se colocar nessa posição de fragilidade e vulnerabilidade'.
Sobre essa visão de Godard, de que o ato de gaguejar representava a fragilidade e vulnerabilidade da classe operária, essa ideia já estava presente no filme 'Vento do Leste', de 1970, feito com Jean-Pierre Gorin, durante a fase do Grupo Dziga Vertov (1968-1972). Aliás, essa não será a única referência ao período maoísta de Godard que teremos em 'Passion'.
Godard também dizia que os trabalhadores não estavam devidamente representados nos filmes franceses, afirmação absolutamente correta e que vale para praticamente todo o cinema mundial.
A respeito do seu trabalho, em dois filmes, com Godard, Huppert disse o seguinte: "... partilhar um momento da vida de alguém como atriz com Jean-Luc Godard é uma experiência que é totalmente excepcional. Eu certamente não gostaria de perder isso. Fiz dois filmes com ele e foram momentos especiais na minha vida".
Isabelle finalizou sua entrevista dizendo, sobre Godard, o seguinte: "Até o final, ele questionou. Ele era um visionário. É por isso que somos todos órfãos agora que ele se foi".
'Passion' começa com uma espécie de pincelada no céu. Godard mostra que o filme será construído com base na Pintura. |
A ideia inicial de Godard para 'Passion' era fazer um remake de 'Toni' (1934), de Jean Renoir, filme que retrata as condições de vida dos trabalhadores franceses, mas isso não foi possível, pois ele não conseguiu comprar os direitos da obra. Quando estava na Zoetrope, de Coppola, em janeiro de 1981, Godard encontrou Hanna Schygulla e a convidou para trabalhar em seu próximo filme, o que ela aceitou.
Isso foi uma novidade para a atriz, que somente havia trabalhado em filmes de Rainer W. Fassbinder até aquele momento. Ela pediu que Godard lhe mostrasse uma história e o cineasta escreveu e lhe enviou uma sinopse de três páginas.
Além de Hanna Schygulla, Godard também conseguiu atrair Michel Piccoli (com quem trabalhou em 'Le Mépris'), Isabelle Huppert e o ator polonês Jerzy Radziwilowicz (conhecido por seus filmes políticos com Andrzej Wajda, como 'O Homem de Mármore', de 1977, e 'O Homem de Ferro', de 1981) para trabalhar no filme, montando um elenco de estrelas de alto nível.
E o cineasta também voltou a trabalhar com Laszló Szabó, ator húngaro que atuou em vários filmes da sua fase Nouvelle Vague (1959-1967), incluindo 'Le Petit Soldat' (1960), 'Viver a Vida' (1962), 'Alphaville' (1965), 'Made in U.S.A.' (1966) e 'Weekend' (1967).
Com isso, o orçamento do filme subiu para US$ 2 milhões (em valores atuais seriam US$ 6,5 milhões), um valor incomum na carreira de Godard, mas este gastou 60% do valor na produção de um 'roteiro visual', antes do início das filmagens de 'Passion', que começaram em dezembro de 1981.
Além disso, Godard estava enfrentando dificuldades para desenvolver uma história para o filme (o que ele mostrou no próprio 'Passion') e pediu a colaboração do brilhante roteirista Jean-Claude Carrière, que já havia trabalhado em 'Sauve qui peut (la vie)'.
Godard também procurou orientar os atores no sentido de se prepararem para os seus personagens.
Assim, Godard pediu que Isabelle Huppert trabalhasse em uma fábrica, pois ela interpretaria uma operária no filme, enquanto que Schygulla trabalhou como garçonete em um restaurante de beira de estrada e também pediu que Jerzy o acompanhasse diariamente para saber como era a vida de um diretor, pois ele interpretaria um cineasta no filme.
'Passion' (1982) foi antecipado por um belo curta metragem que foi filmado por Godard, no Zoetrope Studios, no início de 1981, que foi "Une Bonne à Tout Faire", no qual o cineasta encenou um tableau vivant da pintura "Le nouveau-né' ('O Recém-Nascido'; 1648), do francês Georges de La Tour.
Temas do Filme!
Jerzy entra em conflito com os produtores e decide abandonar as filmagens, mas depois é convencido por Isabelle a retomar as mesmas. |
'Passion' trata do processo de criação artística e mostra todos os fatores que estão envolvidos na criação de um filme, englobando lutas e conflitos entre homens e mulheres, produtores e cineastas, entre os próprios atores, bem como do artista com ele mesmo, que tem muitas dúvidas sobre o que está fazendo.
Neste sentido, 'Passion' (1982) remete claramente à obra-prima '8 e Meio' (1963), de Fellini, que também mostra um cineasta que está enfrentando uma crise criativa e que faz um filme sobre esse tema. Godard fez o mesmo em 'Passion', mas ele faz isso de outra maneira, e é claro que o momento histórico é outro.
Assim, as preocupações de Godard também incluem temas inexistentes na obra de Fellini. Godard também faz referências e usa elementos que estão presentes em uma das suas obras-primas, que é o belíssimo 'Le Mépris' (1963).
Afinal, em 'Passion' também temos um filme dentro do filme, bem como é mostrado o processo de criação de cada um deles, com os conflitos que se desenvolveram durante as filmagens (com atores, produtores...). E também temos, nos dois filmes, 'Passion' e 'Le Mépris', um casamento que está em crise.
Existem várias diferenças entre 'Passion' e 'Le Mépris'. Uma delas é que na época de 'Le Mépris' tinha muito mais certeza do que estava fazendo, enquanto que 'Passion' mostra um Godard repleto de dúvidas.
Além disso, em 'Le Mépris' tudo passa pela Literatura, Escultura e pelo Cinema: 'Odisseia' de Homero, 'Il Disprezzo' de Alberto Moravia, 'Le Mépris' de Godard e 'Odisseia' de F. Lang, incluindo as reproduções de esculturas dos deuses do período greco-romano. E quatro línguas são faladas no filme: Francês, inglês, italiano e alemão.
Enquanto isso, em 'Passion' tudo passa pela Pintura (a música também tem muita relevância, incluindo obras de Mozart e Dvorak) com o uso, por Godard, de vários tableaux vivants, ou seja, de encenações de pinturas que fazem parte da rica tradição artística da Europa Ocidental, com o uso de obras de Rembrandt, Goya, Delacroix, Ingres. E como parte disso temos cinco línguas que são faladas no filme: Francês, Italiano, Alemão, Polonês e Latim.
A presença do Latim em 'Passion' mostra a importância que Godard reconhece para a cultura da Antiguidade Clássica Greco-Romana, outro aspecto que também está presente em 'Le Mépris', no qual o ponto de partida do filme é a 'Odisseia' de Homero.
Portanto, o tema da tradição artística da Europa Ocidental está presente e é central nos dois filmes, em 'Le Mépris' (1963) e 'Passion' (1982). Afinal, o próprio Godard teve uma formação pessoal e familiar que está relacionada com essa herança artística, sendo que ele estudou em escolas suíças que ensinavam grego, latim e humanidades.
No entanto, 'Passion' tem um caráter mais explicitamente político do que 'Le Mépris', possuindo um protagonista de origem polonesa, o cineasta Jerzy, e temos citações sobre os acontecimentos políticos envolvendo a Polônia, no qual emergiu o sindicato 'Solidariedade', que organizou a classe operária polonesa e que acabou derrubando o regime político autoritário do país.
Isabelle olha diretamente para a câmera, quebrando a quarta parede, tal como Belmondo fez em 'Acossado' (1959). |
Para conseguir isso, o 'Solidariedade' contou com o decisivo apoio e participação da Igreja Católica para mobilizar a classe operária contra o regime político do país, chegando a possuir 10 milhões de membros, em um país que contava com 38 milhões de habitantes.
O governo polonês se dizia Comunista, mas o país ficou muito longe de atingir esse estágio de desenvolvimento, embora tenham ocorrido melhorias econômicas e sociais em saúde, educação, transportes, moradia e emprego.
O fato do governo 'comunista' polonês contar com o apoio e ter que se submeter às políticas da URSS e, logo, dos russos, piorava muito a situação política, devido às rivalidades históricas entre russos e poloneses e que permanecem até os dias atuais, nos quais a Polônia é um dos países mais empenhados em ajudar a Ucrânia na guerra contra a Rússia.
Na época da realização de 'Passion' (1982), cujas filmagens começaram no final de 1981, tivemos um Golpe de Estado na Polônia, que colocou um general no comando do governo do país (Jaruzelski) e o 'Solidariedade' foi colocado na ilegalidade, o que resultou na prisão de milhares de pessoas.
Assim, o regime político polonês assumiu uma condição muito mais repressiva do que aquela que existia até aquele momento.
Desta maneira, uma das dualidades das quais Godard trata no filme é a que existe entre Tirania e Liberdade. E para isso ele também se utiliza de um tableau vivant de Goya, que é o 'O 3 de Maio de 1808', que mostra o fuzilamento de camponeses espanhóis por tropas de Napoleão.
No tableau vivant de 'O 03 de Maio de 1808' (pintura de Goya) Godard fez um camponês fazer a saudação dos Republicanos espanhóis que lutaram contra as forças reacionárias lideradas por Franco. |
E neste tableau de Goya, vemos que Godard introduz a saudação dos Republicanos espanhóis, que lutaram contra a tirânica Ditadura de Francisco Franco (1939-1975), uma das mais sanguinárias que existiu na Europa durante o século XX.
Desta maneira, Godard mostra que os conflitos entre governos tirânicos e os povos é algo que já dura séculos na Europa. No 'Scénario du film Passion' (1983) Godard disse que o filme era sobre opressões, sendo que ele procura conectar as tiranias do passado com as do presente (exploração dos trabalhadores, ditaduras).
Logo, ao mesmo tempo que cita as guerras europeias do passado (Cruzadas; Independência dos Países Baixos; Guerras Napoleônicas) e as lutas operárias na Polônia, Godard compara e conecta as mesmas com a impotência e fraqueza dos operários no Ocidente do início dos anos 1980.
Neste período, os trabalhadores dos países industrializados enfrentavam crescentes dificuldades para lutar, o que é mostrado no filme por meio da situação de Isabelle, operária que foi demitida sem direitos e que tentou mobilizar as companheiras de trabalho para lutar, o que foi muito difícil.
Pintura 'Bacco, Vênus e Ariadne', (1576-1577), de Tintoretto. Godard disse que se inspirou nessa obra para conceber a relação romântica entre Jerzy, Isabelle e Hanna. |
Aliás, uma destas operárias (Magali), inclusive, abandonou o emprego na fábrica e passou para o lado do patrão, tornando-se uma policial. Desta maneira, personagens individuais representam setores ou segmentos da sociedade (operários grevistas, patrões, policiais).
Essa é uma característica da obra de Godard dos anos 1980 que a diferencia da sua obra nas fases anteriores de sua carreira cinematográfica.
Nos períodos Nouvelle Vague (1959-1967) e Maoísta (1968-1972) Godard partia de situações gerais para chegar ao particular. E nos períodos seguintes, que começa com 'Numéro Deux' (1975), ele irá fazer o percurso contrário, indo do particular para o geral.
Em uma entrevista publicada em julho de 1973, Godard já antecipava essa nova perspectiva sob a qual iria desenvolver as suas novas produções em, Vídeo, TV e Cinema, dizendo o seguinte:
"Percebi, depois de quinze anos de cinema, que o verdadeiro filme 'político' que eu gostaria de realizar seria um filme sobre mim, a minha esposa e a minha filha, ou seja, um filme de família".
Obs1: Godard está se referindo à Anne-Marie Miéville e à filha desta, que se chama Anne.
Hanna e Michel são casados, mas seu relacionamento está em crise, uma história muito comum nos filmes de Godard. |
Godard e Anne-Marie Miéville, cineasta de vanguarda que trabalhou e viveu junto com Godard entre 1972 e 2022, até o falecimento do cineasta, já tinham feito isso nas duas séries de TV que produziram para a TV francesa entre 1975 e 1978.
Assim, em 'Passion', ele parte da história pessoal de Isabelle para tratar da situação da classe trabalhadora do Ocidente como um todo, mostrando o processo de enfraquecimento do movimento operário naquele período.
Portanto, essa é uma outra dualidade que está presente no filme, por meio da qual Godard confronta as lutas operárias distintas, que no momento da realização do filme eram fortes na Polônia e muito mais fracas na França.
Em 'Le Mépris' também tivemos a representação de várias dualidades, mas de outro tipo, que mostravam a invasão do capital de Hollywood no cinema europeu (italiano, em especial), bem como tínhamos conflitos entre cinema comercial e cinema artístico, entre o cinema de produtor (dos grandes estúdios) e o cinema autoral (dos cineastas).
E também tivemos uma dualidade mostrando a crise do casamento entre Paul (Michel Piccoli) e Camille (Brigitte Bardot). A presença de Michel Piccoli nos dois filmes ('Le Mépris' e 'Passion') é muito representativa desta conexão existente entre os dois filmes.
A sequência de abertura de 'Passion' mostra um risco branco sendo traçado no céu, como se fosse uma pincelada sendo feita em um quadro, o que remete à criação artística, em especial, à Pintura.
Desta maneira, Godard mostra que o filme será estruturado em torno desta forma de arte, usando de vários tableaux vivants que encenam obras de grandes artistas da Pintura europeia (Rembrandt, Goya, Delacroix, Ingres).
Godard também alterna essas cenas iniciais com outras, bem rápidas, nas quais vemos alguns dos protagonistas do filme, que são a operária (Isabelle), o dono da fábrica (Michel), a proprietária de hotel (Hanna), o cineasta (Jerzy) e o produtor cinematográfico (Laszlo). Logo, ele apresenta aqueles que serão os protagonistas do filme.
E no início do filme também vemos que Godard usa a câmera procurando pelo enquadramento certo. Logo, ele mostra que está procurando criar um filme, mas que não sabe o que fazer, deixando claro as suas dúvidas e as suas incertezas.
O filme também se estrutura em torno de vários tipos de conflitos que refletem inúmeras Dualidades, incluindo: Homens X Mulheres; Burguesia X Proletariado; Tirania X Liberdade; Ditadura X Democracia; Produtor X Cineasta; Fábrica X Cinema (ambos seguem a mesma lógica, a do lucro).
Um personagem central é o cineasta Jerzy, sendo um tipo de alter ego de Godard e que está em dúvidas sobre o que fazer no filme que está dirigindo, como criar essa obra, que é algo que Godard vivenciava naquele momento na produção do próprio 'Passion'.
Aliás, esse é o mesmo título do filme dirigido por Jerzy. Portanto, a história de 'Passion' remete ao clássico '8 e Meio' de Fellini, que também conta a história de um cineasta que está em dúvidas sobre o que fazer.
Tableau vivant de 'La petite baigneuse - Intérieur de harem' ('A pequena banhista - Interior do harém'), de Jean-Auguste Dominique Ingres (1828). |
Em 'Passion', Godard decidiu que faria uso apenas de iluminação natural, e isso fez com que vários diretores de fotografia se recusassem a participar do filme.
No fim, ele convidou ao seu antigo parceiro do período Nouvelle Vague, que foi o genial Raoul Coutard, com quem Godard não trabalhava desde 'Weekend' (1967). E o Marin Karmitz, que era um dos produtores envolvidos inicialmente com a produção de 'Passion', se afastou devido à conflitos com Godard.
Assim, temos a representação destes conflitos em 'Passion', que ocorrem entre Jerzy e o produtor Laszlo e que se dão em torno da iluminação do filme, dos custos de produção e de quem deveria financiar o mesmo. No início vemos que Jerzy chegou a desistir de continuar filmando depois de quatro meses de filmagens. Ele dizia que era preciso viver as histórias antes de filmá-las.
Jerzy somente retomou as filmagens depois que Isabelle insistiu muito com ele, apelando para um sentimento de solidariedade, em uma fala que é uma referência aos acontecimentos na Polônia. Afinal, Jerzy é um cineasta polonês que está exilado no Ocidente.
Daí, vemos um tableau vivant de 'A Ronda Noturna' (de autoria de Rembrandt), que tem a sua iluminação comentada por Raoul Coutard, com este afirmando que não tem nada errado com a mesma. Assim, Godard mostra em 'Passion' que conseguiu contratar um diretor de fotografia que se dispôs a trabalhar conforme os seus desejos, sem usar de iluminação artificial na maior parte do tempo.
Em vários momentos do filme também vemos cenas distintas sendo conectadas. Assim, quando um narrador fala de olhos e lábios, logo depois vemos Isabelle de perfil, mostrando seus lábios e olhos. Quando vemos Isabelle abaixando uma lâmpada, em sua casa, logo após vemos um técnico fazendo o mesmo no set de filmagem.
Quando Jerzy vai embora, devido ao fato de não conseguir iluminar o filme do jeito que desejava, então o vemos sendo iluminado pelo Sol.
Hanna e Jerzy assistem ao vídeo no qual expressam os seus sentimentos de paixão por meio de gestos, sem usar de palavras. O mesmo acontecia quando Jerzy e Isabelle se encontravam. |
Michel é um dono de uma pequena fábrica que não paga suas dívidas e conta com a ajuda da Polícia para reprimir as operárias que se rebelam contra a demissão injusta de Isabelle. Ele também está em constante conflito com a esposa, Hanna, mostrando que seu casamento está em crise.
Também fica claro, quando Jerzy retorna para retomar as filmagens, que existe uma relação amorosa entre ele e Hanna, que é casada com Michel. Isso fica evidente com uma simples troca de olhares, logo no início do filme, sem que seja necessário que qualquer palavra seja dita.
Aliás, Godard também faz isso em outros momentos, quando mostra Jerzy e Hanna deixando claro que se amam e fazendo isso sem trocar nenhuma palavra, apenas por meio de movimentos de cabeça e unindo e acariciando as suas mãos. Godard usa de uma forma bela e poética para mostrar que os dois se amam.
No filme também é dito que não existem regras para se fazer um filme e Godard mostra isso em inúmeros momentos. Em um destes momentos nós temos uma longa sequência, no qual Isabelle está tentando unir as operárias, reunindo-as em sua casa, contra a exploração que sofrem na fábrica de Michel.
Nesta longa sequência os diálogos entre as operárias ocorrem de forma não sincronizada e também vemos Isabelle olhando diretamente para a câmera, quebrando a quarta parede, algo que Godard já havia feito em 'Acossado' (1959). E as várias histórias que estão presentes no filme não são contadas de uma maneira tradicional.
Jerzy ficava entediado quando tinha que discutir os problemas financeiros de seu filme. O mesmo vale para Godard. |
Outra ideia que é defendida no filme várias vezes é a de que 'Agir é mais importante do que falar', o que pode ser entendido como uma espécie de reconhecimento, por parte de Godard, de que analisar as situações deve ser menos importante do que atuar politicamente, o que é uma herança da época das lutas do Maio de 68 francês.
No filme também temos referências literárias, como é o caso da citação sobre 'As terríveis 5 horas da tarde', que remete a um poema de García Lorca e ao filme 'Pierrot le fou' (1965), no qual ela também está presente. Mas neste filme a Pintura é mais importante do que a Literatura.
A relação entre Amor e Trabalho é um tema central do filme, tal como aconteceu em 'Sauve qui peut (la vie), de 1979-1980'.
Afinal, Godard vinha de dois casamentos que haviam dado errado (com Anna Karina e Anne Wiazemsky), sendo que ele concluiu que isso havia acontecido em função de que não conseguiu conciliar a vida amorosa com o trabalho de cineasta. Isso explica porque 'Sauve qui peut (la vie)' e 'Passion' tem nesse tema uma importância central.
Logo no início do filme nós temos dois tableaux vivants em sequência, que são o '03 de Maio de 1808', sobre as Guerras Napoleônicas na Espanha, que mostra camponeses sendo fuzilados por soldados franceses, e da 'A Maja Desnuda'. As duas pinturas são do espanhol Francisco de Goya.
Um aspecto interessante é que no tableau vivant do '03 de Maio de 1808', de Goya, Godard coloca um camponês fazendo a saudação dos Republicanos espanhóis, representando a luta contra a Tirania em dois momentos históricos distintos, que são as Guerras Napoleônicas e a Guerra Civil Espanhola (1803-1815 e 1936-1939).
A saudação dos Republicanos espanhóis também foi feita pelo personagem Bruno Forestier em 'Le Petit Soldat' (1960), filme que marca uma transição política e ideológica de Godard, de uma visão mais conservadora para outra mais à Esquerda. E tal como o Jerzy de 'Passion', o Bruno Forestier de 'Le Petit Soldat' é, em grande parte, baseado no próprio Godard.
Godard também mostra vários relacionamentos amorosos no filme, com os personagens envolvidos com várias pessoas ao mesmo tempo, o que é uma característica dos tempos modernos. Assim, um dos homens, Bonnel, se relaciona com várias mulheres (Magali, Barbara, Sophie...).
E uma das mulheres, Sophie, também se relaciona com vários homens. Godard disse em 'Scénario du Film Passion' que sempre temos pessoas envolvidas sexualmente durante as filmagens.
O próprio Jerzy se envolve com duas mulheres (Isabelle e Hanna) e fica em dúvida com qual delas deve desenvolver um relacionamento. Ele mesmo reconhece que elas são muito diferentes e opostas (uma é aberta e a outra é fechada). No final, Jerzy viajará para a Polônia, para onde elas também estão indo, para cuidar das duas.
Também temos referência ao Rock, em seu aspecto mais comercial, aparecendo um desenho reproduzindo os membros do KISS em um jogo de fliperama. Isso também aparecerá em 'Hélas Pour Moi', de 1993).
Essa imagem pode ser interpretada como sendo uma crítica ao caráter explicitamente comercial e conformista que o Rock e a Cultura Pop adquiriram. Isso representa um claro contraste com as pretensões revolucionárias da juventude roqueira dos anos 1960.
Godard mostrou esse caráter inconformista da juventude dos anos 1960 em filmes como 'One Plus One'/'Sympathy for the Devil' (1968) e 'One Parallel Movie' (1968-1971).
Neste segundo filme nós temos uma sequência na qual o Jefferson Airplane toca no topo de um hotel (chamado Schuyler) em Nova York, em uma gelada manhã de 19 de novembro de 1968, o que aconteceu três meses antes dos Beatles fazer o mesmo em Londres (no final de janeiro de 1969).
O filme também mostra uma personagem que muda seu papel, que é Magali. Ela é uma figurante do filme de Jerzy, que se recusa a apoiar a luta de Isabelle e que abandona a filmagem, indo trabalhar como policial, defendendo os interesses da empresa de Michel e reprimindo sua antiga colega e amiga Isabelle.
Com isso, ela será substituída por Myriem (interpretada por Myriem Roussel), uma jovem surda e muda que é sobrinha de Michel, o dono da fábrica.
Myriem Roussel foi preparada por Godard para se tornar uma atriz importante em seus filmes. Ela participou de 'Passion' (1982), 'Prénom Carmen' (1983) e 'Je Vous Salue, Marie' (1985), do qual foi a protagonista. Myriem foi preparada por Godard durante 3 anos para fazer o papel de Marie nesse filme.
O cineasta Jerzy também expressa uma ideia de Godard, que é a de que a solidariedade entre as ideias é que faz uma imagem ser poderosa.
Em outra cena, a operária Isabelle questiona Sophie Loucachevsky a respeito do motivo do mundo do trabalho não aparecer no Cinema e na Televisão. Assim, Godard denuncia o caráter puramente escapista das duas mídias, que não mostram a vida das pessoas quando estão trabalhando. Isabelle diz que isso acontece porque trabalho e prazer são a mesma coisa.
Temos, logo depois, um tableau vivant de 'La petite baigneuse' ('A Pequena Banhista', 1828), de Dominique Ingres, que é a personagem interpretada por Myriem no filme.
Um vídeo mostra Jerzy e Hanna se amando por meio de gestos com a cabeça e as mãos. Isso ocorre em meio ao trabalho. União de Amor e Trabalho é algo que sempre preocupou Godard, que teve dois casamentos fracassados devido à impossibilidade prática de conciliar os dois universos.
E apesar dos vários romances que temos no filme, em nenhum momento vemos algum personagem falar a frase 'eu te amo'. Os sentimentos e os desejos sexuais dos personagens são expressos sem que isso aconteça.
Em vários momentos também aparecem as três cores da bandeira francesa, algo que era muito presente nos filmes de Godard no período Nouvelle Vague.
Godard também expressa outro pensamento seu quando Jerzy diz que os seres humanos não conseguem se comunicar, citando exemplo dos colonizadores dos EUA e dos nativos da América, que não sabiam falar corretamente a língua dos primeiros e que por isso foram exterminados.
Mas a impossibilidade de comunicação leva Jerzy a dizer que o importante não é entender, mas aceitar. Afinal, para Godard a compreensão de tudo passa pela linguagem, que é 'o lugar onde o ser humano mora', como foi dito em '2 ou 3 Coisas Que Eu Sei Sobre Ela' (1966).
Mas, agora ele já está questionando se isso é o suficiente, tanto que é dito no filme que agir é mais importante do que falar. No período final de sua vida Godard se tornará bastante cético com relação à isso, chegando a fazer um filme intitulado 'Adeus à Linguagem' (2014).
Outro aspecto da personalidade de Godard que está presente em Jerzy é que este se irrita com as questões financeiras, relativas ao orçamento do filme, que estourou, ficando muito acima do previsto. Jerzy não quer apelar para financiadores/produtores de Hollywood para fazer o filme, e o agente dele apela para os financiadores italianos (mas estes querem que o filme tenha uma história clara, que o público possa entender).
Jerzy se importa muito mais com as questões criativas relacionadas ao filme e com a sua vida amorosa, deixando em segundo plano os problemas financeiros do filme. Godard sempre enfrentou problemas para financiar os seus filmes, o que sempre o irritava.
A jovem Sarah anotando um pedido de uma maneira incomum. |
A recusa de Jerzy em pedir ajuda para produtores dos EUA (Fox, Metro...) leva o produtor Laszlo a dizer que não voltará 'para o Leste, camarada', o que é uma referência ao período maoista de Godard, da época do Grupo Dziga Vertov e ao filme 'Vento do Leste' (1970).
Desta maneira, Godard reconhece que se ele quiser continuar filmando, então será necessário fazer isso dentro das regras da indústria do Cinema, ou seja, tipicamente Capitalistas, visando o lucro, o que ele rejeita, gerando conflitos com os financiadores e produtores.
Neste sentido, temos uma cena bem representativa da trajetória de Godard, quando Isabelle fala para o seu avô que 'coma a sua sopa' e 'conte a sua história'. Esta fala remete a uma situação que ocorreu em 1968, quando Godard rompeu com um dos seus melhores amigos, que era o diretor teatral Antoine Borseiller (fez uma pequena participação em 'Masculino-Feminino').
Em 1968, Godard estava rompendo com a indústria do cinema e com o todo o sistema político, social e econômico que a sustentava, sendo que criticava todos aqueles que continuavam fazendo parte do mesmo. Daí, ele disse para Borseiller que eles não deveriam se encontrar mais, que eles não seriam mais amigos, pois Borseiller era parte do sistema.
Antoine Bourseiller, diretor teatral para quem Godard comprou um teatro, dando o mesmo de presente, contracenando com Brigitte Bardot em 'Masculino-Feminino' (1966). |
E o diretor teatral respondeu, dizendo que ainda respeitava Godard e que, se um dia desses, o cineasta decidisse restabelecer a amizade, então o mesmo seria muito bem recebido em sua casa e que lhe seria oferecido, pelo menos, um prato de sopa.
Oras, como o projeto do Grupo Dziga Vertov (1968-1972) havia desmoronado, para que Godard pudesse, novamente, fazer filmes mais 'convencionais', voltando a trabalhar com grandes produtores e fazendo filmes que seriam destinados ao circuito comercial e de festivais, ele precisou restabelecer as conexões com a indústria do cinema, a mesma que ele havia repudiado a partir de 1968 e com a qual procurou cortar os laços durante 10 anos (1968-1978).
Logo, Godard precisou voltar 'a comer a sua sopa', ou seja, ele precisou voltar a se relacionar com a indústria do cinema e com todos os seus personagens, gostasse ou não disso: produtores, distribuidores, roteiristas, atores e atrizes famosos (as estrelas, sem as quais ninguém financiaria os filmes de Godard), bem como passar a conceder entrevistas promocionais para críticos e jornalistas da grande imprensa.
Este foi o preço que Godard foi obrigado a pagar (ou seja, a sopa que ele teve que comer) para que pudesse continuar filmando, que era o que ele mais amava fazer em sua vida.
No filme, o cineasta polonês exilado Jerzy (que é, em grande parte, um alter ego de Godard) também se rebela contra isso, recusando-se a usar da narrativa tradicional e das 'regras' do cinema convencional. Godard também havia se exilado da indústria do cinema durante um longo período, entre 1968-1978, e agora estava voltando a estabelecer conexões com a mesma, pois sem isso ele não teria condições de fazer os seus filmes.
No filme é dito que não existem Regras no Cinema, o que ele deixou bem claro já em 'A Bout de Souffle' (Acossado; 1959), quando quebrou todas as regras do cinema clássico, o mesmo que Godard admirava, mas que ele percebeu que enfrentava uma grave crise e um imenso impasse criativo.
Godard sempre foi adepto do "Faça Você Mesmo', fazendo tudo do seu próprio jeito, algo que produtores e até muitos atores que trabalharam com ele não aceitavam, o que gerou inúmeros conflitos com os mesmos. E Godard também sempre foi um Libertário e um Humanista.
A melhor definição sobre Godard é a de Eric Hobsbawm, que tomou conhecimento, pelo próprio cineasta, com quem se reuniu, do projeto das 'Histoire (s) du cinéma'. Quando leu o conteúdo das 'Histoire(s)', Hobsbawm afirmou que aquele não era o projeto criado por um historiador, mas por um 'Poeta Visionário'.
Em uma sequência vemos Jerzy lutando com um figurante que interpreta um Anjo. Ela representa um tableau vivant de 'A luta de Jacó com o Anjo' (de Delacroix). Outro tableau de Delacroix que vemos é o da 'Entrada dos Cruzados em Constantinopla', no qual cavaleiros circulam entre as maquetes no set de filmagem.
Essa é uma prática muito comum no Cinema e na TV, mas que muitas vezes é escondida dos espectadores, que pensam que estão vendo explosões monumentais de edifícios, trens, aviões e navios e que seriam em tamanho natural. Assim, nesta sequência Godard denuncia o caráter falso e ilusório de muito que é mostrado no Cinema e na TV.
Isabelle procura conexão com a Natureza, passeando à beira de um rio, se dependurando nos galhos de árvores. Essa procura pela vida em meio à natureza é algo que Godard também fez, quando foi viver com Anne-Marie Miéville na pequena cidade suíça de Rolle, que é cercada por uma natureza exuberante, incluindo o Lago Léman (que fica na fronteira entre a França e o cantão suíço de Vaud), montanhas, florestas, ventos, etc.
Neste filme também temos, como em muitos filmes de Godard, referências esportivas e vemos um vídeo que mostra uma competição de atletismo. Afinal, Godard sempre gostou muito de esportes, praticando-os desde a sua infância. Ele disse, em uma entrevista, que jogava futebol, esquiava, nadava e jogava basquete. Em suas fase adulta, ele jogou muito tênis de quadra.
Hanna e Isabelle em uma bela cena de 'Passion'. |
Em uma cena um personagem diz que Delacroix pintou guerreiros, santos, mas também pintou flores e logo depois vemos Hanna em meio a plantas e saindo com flores em suas mãos, que ela arremessa contra o marido, Michel, com quem está brigando.
Isabelle decide fazer amor com Jerzy e depois recita o 'Agnus Dei' (Cordeiro de Deus) nua sobre a cama, pouco tempo depois de vermos uma mulher acariciar um cordeiro e subir uma escada.
Isso ocorre porque os filmes de Godard dos anos 1980 e 1990 passaram a incluir referências espirituais, metafísicas e religiosas, o que representou uma mudança em relação às sua fases anteriores, nas quais estes temas não estavam presentes.
Godard afirmou, uma vez, que 'o cinema produz memórias, enquanto a TV produz esquecimento'. E essa ideia é reproduzida em 'Passion' quando Jerzy está assistindo imagens de Hanna em vídeo e diz que ele está fazendo isso para tentar se esquecer dela.
No fim do filme nós vemos Michel falar que procurou uma frase definitiva, mas que não a encontrou, o que reflete claramente a frustração de Godard com o próprio filme, pois ele ficou insatisfeito com o resultado final.
E foi justamente por isso que Godard fez, depois, um novo filme, que foi o 'Scénario du Film Passion', no qual procurou desconstruir a história do filme 'Passion' e refletir sobre os motivos de não ter atingido aos seus objetivos.
Resumo do Filme!
Jerzy e Isabelle terminam por se amar, mas os sentimentos deles são expressos por meio de gestos, não de palavras. |
Em 'Passion' vemos Godard trabalhando com inúmeros elementos criativos, tais como:
- Seu passado cinematográfico ('Le Mépris', 'Pierrot le fou', 'Vento do Leste');
- Da chamada Grande História da Europa (Cruzadas, Guerras Napoleônicas, Guerra Civil Espanhola, Independência dos Países Baixos);
- Da história do Cinema '(8 e Meio', de Fellini, e 'Le Mépris', do próprio Godard);
- Da Arte Europeia (Rembrandt, Goya, Delacroix, El Greco, Ingres, Watteau);
- Do momento da realização do filme (Polônia, Solidariedade, Tirania, Liberdade, Lutas Operárias, Exploração Capitalista, conflitos entre Homens e Mulheres, entre Cineastas e Produtores);
- De uma visão crítica sobre a Televisão e o Vídeo (produzem esquecimento), bem como sobre a Indústria do Cinema (pois esta visa o lucro, não a arte).
- Do cineasta mergulhado em suas próprias dúvidas e incertezas sobre a obra que está tentando criar e que fica insatisfeito com o resultado final.
Hanna anda em meio a natureza, em uma cena de caráter fortemente pictórico. Esta sequência remete às obras de Antoine Watteau, que retratava cenas bucólicas, de pessoas em meio à natureza. |
Informações Adicionais!
Título: Passion (Paixão);
Diretor: Jean-Luc Godard;
Roteiro: JL Godard e Jean-Claude Carrière;
Gênero: Drama; Duração: 88 minutos;
Países de Produção: França, Itália e Suíça;
Ano de Produção: 1981-1982;
Música: Ravel, Mozart, Dvorak, Fauré, Beethoven;
Fotografia: Raoul Coutard;
Produção: Sonimage; Sara Films; Films A2;
Montagem: Jean-Luc Godard;
Figurinos: Rosalie Varda e Christian Gasc;
Elenco: Michel Piccoli (Michel Boulard); Hanna Schygulla (Hanna); Isabelle Huppert (Isabelle); Jerzy Radziwilowicz (Jerzy); Laszló Szabó (Laszló Szabó); Myriem Roussel (Myriem); Manuelle Baltazar (Manuelle); Magali Campos (Magali); Sophie Loucachevsky (mesmo nome); Patrick Bonnel (Bonnel); Sarah Cohen-Sali (Sarah).
Prêmio: Grande Prêmio Técnico no Festival de Cannes (1982) para Raoul Coutard.
Belíssima colagem feita por Rosalie Varda (filha de Agnès), em homenagem a Godard, logo após o falecimento do cineasta (13/09/2022). Rosalie foi a figurinista do filme 'Passion'. |
Tableaux Vivants!
Os tableaux vivants que foram filmados por Godard são:
"A Ronda Noturna", de Rembrandt;
"O Parasol", "O Três de Maio de 1808", "La Maja Desnuda" e "Carlos IV de Espanha e sua Família", de Goya;
“O Banhista de Valpinçon” e “O Banho Turco”, de Ingres;
"Entrada dos Cruzados em Constantinopla" e "Jacó lutando com o anjo", de Eugène Delacroix;
"Assunção da Virgem", de El Greco;
"O Embarque para Cythera", de Watteau.
Links:
Hanna tenta convencer Manuelle a ir embora junto com ela, mas a jovem diz que não tem interesse. |
Informações sobre 'Passion' no IMDB:
https://www.imdb.com/title/tt0084481/fullcredits/?ref_=tt_cl_sm
Curta metragem 'Une Bonne à Tout Faire' (JL Godard; 1981):
https://www.youtube.com/watch?v=KJnHVtFYXsM&t=303s
Texto sobre 'Une Bonne à Tout Faire':
https://cinemaclassicecult.blogspot.com/2023/05/une-bonne-tout-faire-1981-godard-mostra.html
Entrevista com Isabelle Huppert:
https://variety.com/2022/film/news/isabelle-huppert-appreciation-jean-luc-godard-dies-1235372330/
Poema de Federico García Lorca - 'A Captura e a Morte':
http://www.algumapoesia.com.br/poesia/poesianet059.htm
Texto sobre a criação do quadro 'A Ronda Noturna', de Rembrandt:
https://www.culturagenial.com/quadro-a-ronda-noturna-rembrandt/
Manuelle dança em meio à neve e ao gelo. |
Biografias de pintores cujas obras são mostradas ou citadas no filme:
Antoine Watteau:
https://thaisslaski.com.br/antoine-watteau-as-festas-galantes-do-rococo-frances/
Eugene Delacroix:
https://www.ebiografia.com/eugene_delacroix/
Francisco de Goya:
https://www.ebiografia.com/francisco_de_goya/
Rembrandt van Rijn:
https://www.ebiografia.com/rembrandt/
Jean-Auguste Dominique de Ingres:
http://www.historiadasartes.com/prazer-em-conhecer/ingres/
Jerzy consegue convencer Manuelle a ir embora com ele para a Polônia quando diz que aquilo não é um carro, mas um tapete voador. |
A luta com o anjo: Baudelaire e Delacroix:
https://artepensamento.ims.com.br/item/a-luta-com-o-anjo-baudelaire-e-delacroix/
A Quarta Cruzada dos cristãos, que conquistou Constantinopla, em 1204:
https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/quarta-cruzada.phtml
'A Ronda Noturna': Análise da obra mais famosa de Rembrandt:
https://abra.com.br/artigos/a-ronda-noturna-analise-da-obra-mais-famosa-de-rembrandt/
Rosalie Varda e sua colagem em homenagem à Godard:
https://www.troiscouleurs.fr/article/godard-vu-par-rosalie-varda
Trecho do Filme 'Passion', no qual Godard filma 'O 3 de Maio de 1808', de Goya, enquanto toca o 'Requiem', de Mozart:
Trecho do filme com Hanna Schygulla:
Obs: A publicação foi atualizada no dia 26/12/2023.
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