'Les Carabiniers': Godard fez um filme antiguerra, antiespestáculo e com elementos neorrealistas! - Marcos Doniseti!
A produção do filme!
Este é um filme subestimado de Godard e que não foi bem recebido na época do seu lançamento, mas que posteriormente passou a ser reconhecido como um excelente filme do mestre da Nouvelle Vague.
O roteiro do filme foi baseado em uma peça de teatro de um autor italiano (Benjamin Joppolo) e foi escrito por JL Godard, Roberto Rossellini e Jean Gruault.
No filme nós temos a participação de Geneviève Galéa, belíssima atriz francesa que se casou com o compositor e cantor Guy Béart, mãe e pai da belíssima atriz Emmanuelle Béart que, diferente da mãe (que fez poucos filmes, sendo que 'Les Carabiniers' foi o último) construiu uma longa carreira e que continua na ativa.
O filme mesclou inovações técnicas quanto à fotografia e uma história com fortes tons Neorrealistas, embora sem se preocupar com a fidelidade histórica, pois Godard mistura acontecimentos de várias guerras (Primeira e Segunda Guerra Mundial, em especial) em uma única trama.
Afinal, o objetivo de Godard não era fazer um filme de guerra, sobre um conflito específico, mas sobre todas as Guerras. Na verdade, este é um filme antiguerra, tal como também era o clássico 'Paths of Glory' (Glória Feita de Sangue; 1957), de Stanley Kubrick, um cineasta genial que produzia e dirigia grandes produções, trabalhava com grandes estrelas do cinema (Kirk Douglas, Sterling Hayden, Peter Sellers) e fazia Arte, tudo ao mesmo tempo.
Godard mostra que nas guerras quem sempre são convocados para lutar e morrer são os filhos das famílias pobres e miseráveis. Os filhos dos ricos sempre se livram de fazer este sacrifício. |
No caso de Godard, um cineasta que sempre manteve o seu perfil autoral, o que ocorre até os dias atuais, trata-se de um filme de baixo orçamento e com atores e atrizes desconhecidos do grande público de cinéfilos. Em 'Les Carabiniers', nós também temos citações de Lenin (que denuncia as guerras como fruto do Capitalismo) e do poeta revolucionário Vladimir Maiakovski.
Logo, 'Les Carabiniers' também prenunciava a crescente politização da obra de Godard, o que irá desembocar em sua fase maoísta (1968-1972), quando ele integrou o Grupo Dziga Vertov, que foi criado por Godard e Jean-Pierre Gorin em 1968.
Além disso, 'Les Carabiniers' toca em um tema sensível para os franceses naquela época, que é a Guerra, pois a França vinha de duas significativas derrotas militares, na Indochina (1954) e na Argélia (1962) e era governada pelo general Charles de Gaulle, um herói da Segunda Guerra Mundial.
No filme, Godard também faz uma crítica ao próprio cinema como sendo um mero espetáculo e no qual o público confunde o que assiste com a realidade, o que fica claro na cena em que um dos camponeses (Michelangelo) vai ao cinema, vê uma mulher seminua em uma banheira e tenta entrar no filme.
Desta maneira, Godard fez um filme que é, simultaneamente, antiguerra e antiespetáculo.
Oficiais militares são enviados para comunicar aos camponeses (Ulisses e Michelangelo) que eles foram convocados, pelo Rei, a lutar na guerra. |
Aliás, nesta cena em que Michelangelo vai ao cinema, temos uma homenagem de Godard ao cinema mudo, quando o jovem camponês ao assistir um trem na tela pensa que o mesmo irá atingi-lo e coloca os braços na frente do rosto para se proteger, o que é uma clara citação do filme 'A chegada de um trem na estação' (1895), dos irmãos Lumière.
Essa visão extremamente crítica, contra as guerras e também contra o cinema espetáculo, ajuda explicar e a entender porque o filme foi mal recebido na França e não fez qualquer sucesso na época do seu lançamento.
Afinal, no filme, Godard desnuda tudo o que acontece nestes brutais e sangrentos conflitos, tais como:
- As mentiras que os governantes usam para justificar as guerras e mobilizar a população em favor das mesmas.
Exemplo concreto disso que Godard mostra em 'Les Carabiniers' é a Guerra do Vietnã (ou Guerra da Indochina, como seria o mais correto), no qual o envolvimento em grande escala dos EUA começou quando o governo ianque acusou o governo do Vietnã do Norte de ter atacado navios estadunidenses que estariam em águas internacionais.
Esse acontecimento entrou para a história como o nome de 'Incidente do Golfo de Tonkin' e 'ocorreu' em Agosto de 1964.
Venus (Geneviève Galéa) tenta convencer Michelangelo a ir lutar na guerra, pois o Rei lhes diz que, assim, eles poderão enriquecer. A realidade, depois, irá se impor e destruirá as ilusões deles. |
Depois, a Grande Mídia dos EUA divulgou essa informação como se fosse verdadeira, mas ficou provado, anos depois, que tudo não passou de uma grande campanha de Fake News promovida pelo governo dos EUA para justificar a maciça participação do país no conflito, que chegou a enviar cerca de 2 milhões de soldados para a Indochina durante o período que vai de 1964 a 1973.
No fim das contas, a Guerra do Vietnã foi um esforço bélico que custou muito caro em termos materiais, financeiros (US$ 1 Trilhão) e humanos e que se revelou inteiramente inútil, pois a guerra terminou com a derrota do Império Ianque. Ela também fraturou a sociedade dos EUA, gerando conflitos políticos e sociais crescentes, como as gigantescas manifestações antiguerra, a fuga de 2 milhões de jovens para o Canadá.
A Guerra do Iraque (2003) e as suas inexistentes armas de destruição em massa (químicas, nucleares e biológicas), que os governos dos EUA (George Bush Jr.) e do Reino Unido (Tony Blair) juravam que existiam, também são outro exemplo destas mentiras que governos usam para justificar o início de guerras brutais e criminosas;
- Roubos, saques, estupros, massacres e todo o tipo de violência contra a população civil dos países que são invadidos e atacados, algo que ocorre há milhares de anos, aliás.
A trama do filme!
A trama do filme é bem simples, embora leve o espectador a refletir sobre a verdadeira natureza das guerras, e mostra um pequeno grupo de camponeses (são apenas 4 pessoas) que vivem isolados, no meio de uma região suja e abandonada, formado por 2 homens (Ulisses e Michelangelo) e 2 mulheres (Cleópatra, a mãe, e Venus, a filha).
Os dois homens, simples e ingênuos, são convocados para o Exército e são convencidos a lutarem porque lhes é dito, por dois oficiais militares que, se participarem da guerra, eles ficarão ricos com o fruto dos saques que poderão promover livremente contra a população dos países atacados.
Logo, eles são facilmente enganados pela propaganda de guerra do governo que, no filme, é identificado com a figura de um Rei que nunca aparece, o que também acontece com os Generais que comandam as tropas. É como se eles fossem invisíveis, embora sejam os grandes responsáveis por levar o país e seu povo à uma guerra claramente criminosa e brutal e que ocorre em função de interesses sujos e escusos.
As duas mulheres (Vênus e Cleópatra) ficam na cabana, esperando pelo retorno dos dois homens da guerra, mas também apoiam a ida deles para a guerra, pois todos eles, camponeses, acreditam nestas promessas falsas e mentirosas do governo de que ficarão ricos.
Assim, Michelangelo e Ulisses (nome que é uma clara referência à 'Odisseia', de Homero) vão lutar porque foi dito que o Rei é amigo deles.
O filme, como sempre acontece na obra de Godard, possui uma série de referências e citações (históricas, literárias...). Uma delas é exibida logo no início, que é um texto de autoria do escritor Jorge Luis Borges, que diz o seguinte: "Com o passar do tempo, me encaminho a uma maior simplicidade. Utilizo as metáforas mais gastas. No final, são algo eterno: as estrelas parecem olhos, por exemplo, a morte é como um sono".
No filme, vemos cenas reais de guerras (bombardeios aéreos, ataques terrestres e navais, por exemplo) e vemos uma série de mensagens na tela, como aquela que pergunta 'O que os soldados fazem antes da batalha?', enquanto que em outra vemos a resposta "Antes da batalha, os soldados tem medo". Outra frase que aparece na tela (com fundo negro) é "Espalhamos a morte nas famílias, cumprimos nossa missão sanguinária".
Na sequência, vemos os soldados entrando nas cidades e promovendo violências contra a população civil, como sempre acontece nas guerras, já há milhares de anos, o que se tornou ainda mais violento nas guerras modernas. E uma frase diz que os soldados promoviam fuzilamentos e enforcamentos dos inimigos, o que é mostrado logo depois.
Uma outra frase diz que os oficiais distribuem livros sobre as histórias dos grandes conquistadores para que os soldados se sintam estimulados a lutar. A ingenuidade e desinformação dos soldados se verifica quando um deles tenta comprar um carro usando a carta do Rei. Eles também roubam a população civil.
Quando os dois camponeses, Ulisses e Michelangelo, voltam para casa, dizem que eles estão ricos e mostram imagens e cartões postais de inúmeros bens e propriedades que conquistaram durante a guerra (Parthenon, Ferrovias, Veículos, Monumentos...). Até que as duas mulheres (Venus e Cléopatra) dizem que nada daquilo possui qualquer valor.
Com isso, Ulisses e Michelangelo questionam os oficiais do Exército a respeito de qual será, de verdade, a recompensa que eles irão receber. Bem, não vou dizer qual foi, mas não era nada do que os dois camponeses que lutaram na guerra esperavam.
A respeito deste filme de Godard, podemos dizer: Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.
No fim, os camponeses Ulisses e Michelangelo desconfiam que foram enganados pelo Rei e pelos oficiais militares. E quando isso acontece eles terão um final bem diferente daquele que imaginavam. |
Informações Adicionais!
Título: Les Carabiniers (Tempo de Guerra);
Diretor: Jean-Luc Godard;
Roteiro: Jean-Luc Godard, Jean Gruault e Roberto Rossellini; Baseado em uma peça de teatro de Benjamin Joppolo;
Ano de Produção: 1963; Duração: 76 minutos;
Países de Produção: França e Itália; Gênero: Drama de Guerra;
Música: Philippe Arthuys; Fotografia: Raoul Coutard;
Elenco: Marino Masé (Ulisses); Patrice Moullet (Michelangelo); Geneviève Galéa (Venus); Catherine Ribeiro (Cleópatra); Odile Geoffroy (jovem comunista).
Sequência inicial do Filme:
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